3 de junho de 2022
O Resumo da Ópera: perdida na biblioteca
Chegamos ao meio do ano e, como de praxe, é tempo de fazer um apanhado geral das leituras que não ganharam análises mais completas cá no blog. Sim, sim, vamos a mais um Resumo da Ópera!
2022 não tem sido um ano fácil (eu não me lembro quando foi a última vez que pude dizer o contrário disso…); e os dois últimos meses, em particular, foram pesados, com várias doenças na família e mais de uma perda. Normalmente, isso seria razão para estar lendo mais - o escape da literatura definitivamente é uma das minhas formas de terapia -, mas tenho tido menos tempo de forma geral.
Four Lost Cities: a Secret History of the Urban Age, de Annalee Newitz
Esse foi um que apareceu na lista de indicados ao Goodreads Choice Awards na categoria História e Biografia ano passado. Considerando meu interesse por História e documentários sobre arqueologia, tornei-me a imagem do gato de botas com olhos brilhantes e pidões ao ler a sinopse dele.
Com linguagem informal, num misto de pesquisa técnica e diário de viagem, Newitz nos leva a explorar quatro cidades perdidas, como prometido pelo título: Pompéia, na Itália, Angkor no Camboja, Çatalhöyük na Turquia (ainda tentando descobrir como se pronuncia essa) e Cahokia nos Estados Unidos. Cidades importantes que, por desastres naturais ou desastrosas opções de seus governantes foram abandonadas - da noite para o dia ou ao longo de gerações.
Four Lost Cities tem muita informação nova que vem sendo descoberta nos últimos anos, despidas de preconceitos coloniais ou criações narrativas pensadas sobre medida para conquistar público pagante (estou olhando para você, Pompéia). Ótimo material, descontraído sem ser raso demais, perfeito para abrir o apetite para maiores pesquisas.
A Invenção dos Direitos Humanos: uma história, de Lynn Hunt
Li esse por recomendação de uma amiga especialista em direitos humanos - estava trabalhando um artigo sobre o assunto (embora com um viés um pouco diferente) e o comentário dela me fisgou. O curioso é que nem de longe eu esperava o conteúdo que encontrei; talvez porque minha expectativa ia mais para o foco no Direito e na História e o que encontrei foi… Literatura.
Hunt traz aqui aquela ideia de fortalecimento da nossa capacidade de empatia como uma das funções primordiais da ficção - opinião de que compartilho e sempre repito cá no blog. A redução de custos editoriais com a invenção e aperfeiçoamento das máquinas de impressão, o aumento da população alfabetizada mesmo nas classes mais baixas (afinal, mercantilistas precisavam de uma mão-de-obra que soubesse contar) e, por consequência, de um público leitor, trouxeram consigo uma democratização não apenas no acesso a histórias, como também nas histórias contadas.
Em outras palavras, através da ficção, tornou-se mais fácil quebrar barreiras, colocar-se numa posição de enxergar o ponto de vista do Outro, um Outro que poderia ser de espectros sociais e culturais completamente diferentes daquele do Leitor. A tese de Hunt é que, ao colocar-se no lugar do Outro através da ficção, a noção de Igualdade se torna mais preemente nessas sociedades de leitores (a esfera pública); da Igualdade é apenas um passo para o lema da “Liberdade, Igualdade, Fraternidade”, e daí para a invenção de direitos humanos universais, conexo simplesmente ao ser humano.
Em resumo: a leitura de ficção literária abriu a mente das pessoas, tornaram-nas (um pouco mais) tolerantes, capazes de enxergar o Outro como um ser humano igual a elas e, por consequência, sujeito de direitos. Há mais em análise aqui, mas essa é a grande síntese (e sacada) da tese por trás de A Invenção dos Direitos Humanos. Fora da caixinha, definitivamente, mas excepcional em seu alcance.
The Time-travelling Caveman, de Terry Pratchett
Essa foi minha primeira leitura do ano, seguindo minha tradição de celebrar o Ano Novo começando uma leitura do Pratchett. Trata-se de uma antologia de contos que ele escreveu bem jovem, quando ainda trabalhava como jornalista em vários veículos de comunicação.
São histórias interessantes para observar a evolução do autor, sua experimentação com humor e estilo que iriam descambar no Discworld. Não têm o mesmo tom satírico de seus melhores romances - mesmo porque, foram escritos para uma audiência mais jovem. Mas já trazem algo da voz inconfundível e situações hilariantemente absurdas que caracterizam sir PTerry - como a do conto que dá título à coletânea, e traz um neandertal tendo de provar numa Corte de Justiça que é humano o suficiente para não ser exposto num zoológico.
Uma boa pedida para começar a doutrinar as criancinhas desde cedo na leitura de Terry Pratchett.
The Magic of Terry Pratchett, de Marc Burrows
Tendo terminado a leitura dos volumes de Discworld e meio que ‘poupando’ outros livros do Pratchett para o futuro (mantendo minha auto-ilusão de que sempre terei algo novo seu para ler), vou catando títulos escritos sobre ele, começando por essa biografia do Burrows.
O autor não conheceu Pratchett pessoalmente, mas teve a oportunidade de conversar com muitos amigos e colaboradores. Para além disso, Burrows é, confessadamente, fã da obra do autor e, como tal, seu livro é menos uma biografia pormenorizada e mais uma declaração de amor.
Para tanto, Burrows usa do humor, das notas de rodapé e de uma boa análise correlacional da evolução de estilo e temas nos livros de sir PTerry com os fatos de sua biografia. Há admiração e afeto em cada linha de The Magic of Terry Pratchett, um sentimento com que posso me identificar integralmente. Não é uma obra definitiva (algo que se espera do livro de Rob Wilkins, previsto para setembro), mas é uma excelente pedida para os amantes do Cara de Chapéu.
Tolkien e a Grande Guerra: o limiar da Terra-média, de John Garth
Eu já tinha esse título na minha lista de desejados bem antes de descobrir que ele sairia em português. Gosto de biografias e gosto de ler sobre meus autores favoritos (vide a entrada acima), de forma que não é surpresa que Tolkien e a Grande Guerra - obra em que o filme com Nicholas Hoult foi baseado - tenha entrado no meu radar.
Aqui, Garth explora especificamente o impacto da Primeira Guerra Mundial na vida e obra do Tolkien: o que a vida nas trincheiras custou ao homem por trás da Terra-média, as amizades interrompidas pelo conflito. Embora o próprio Tolkien desgostasse da ideia de leitores usando a biografia dos autores para interpretação; é inegável que compreender o contexto da vida de um escritor nos dá novas camadas de significado para um texto (olá, Eco).
Eu tinha conhecimento de boa parte do que é relatado neste volume (acho que essa é bem a quinta biografia do Tolkien que leio, ou adjacente biográfico, se for contar as cartas), mas Garth tem uns insights bem interessantes sobre o legendarium, que foi composto por esse período. Uma boa pedida para que tem interesse de se aprofundar na análise da Terra-média.
Ferreiro do Bosque Maior, de J. R. R. Tolkien
Já tinha lido esse conto antes, na coletânea Tales from the Perilous Realms; tinha sido o meu favorito da coleção e não resisti a essa nova edição da HarperCollins. Tamanho de bolso, capa dura, toda ilustrada com o belo traço de Pauline Bayes, é um daqueles volumes que é pura delicadeza na forma e no conteúdo, uma edição de colecionador.
É um conto de fadas sobre Faërie, sobre arte, no que ela tem de belo e de terrível. Sobre o que acontece quando a meros mortais é permitido um vislumbre para além do véu: do deslumbre, mas também dos perigos. De encontrar o extraordinário, e do risco de perder de vista o caminho para casa. É um tema comum nos contos de fadas, que aqui é executado com a maestria poética do mestre Tolkien.
O Fascismo Eterno, de Umberto Eco
Volume curtinho, transcrição de uma palestra dada pelo Eco sobre o conceito de fascismo, e sobre como usamos a palavra para abarcar uma quantidade de significados e regimes autoritários que nem sempre têm muito a ver entre si.
O que ele faz aqui é listar uma série de características básicas do que seria o fascismo “destilado”, baseando-se na experiência pessoal de ter vivido sob o regime de Mussolini. Sendo uma transcrição, mantém bastante do tom oral original - informal, fluido, finamente irônico.
Constitui, porém, mera pincelada, comentário, não um estudo aprofundado. É uma leitura interessante, mas que precisa de algo complementar para compreender bem a questão.
Impossible Things, de Connie Willis
Coletânea de contos publicada em 1994, Impossible Things reúne onze histórias da Willis, passando da sátira ao romance, da ficção científica ao drama e incluindo três vencedores do Nebula (The Last of the Winnebagos, Even the Queen e At the Rialto).
Eu já tinha lido a maioria deles em outras antologias; e pelo menos um deles em português: Jack, sobre um vampiro em Londres no auge dos bombardeios na Segunda Guerra apareceu aqui em O Grande Livro dos Vampiros. Mas Willis é uma daquelas autoras que creio valer a releitura - e costuma estar em sua melhor forma quando trabalha histórias curtas. Adoro os romances dela, mas não nego o fato de que em obras mais longas ela por vezes se torna repetitiva.
Na verdade, se eu fosse editora dela no Brasil, teria escolhido apresentar o público daqui primeiro aos contos - A Lot Like Christmas era uma fantástica pedida para ser lançado no Natal e cultivaria uma base de leitores antes de trazer outros trabalhos mais complexos. Connie Willis é uma das mais premiadas autoras de ficção científica da atualidade (onze Hugos e sete Nebulas). Considerando que só dois títulos de uma enorme bibliografia foram traduzidos até hoje, só imagino que ela não tenha feito o sucesso que a editora esperava e, em vez de organizarem um bom projeto de divulgação e marketing, simplesmente abandonaram a possibilidade de novos lançamentos.
Impossible Things, neste aspecto, também era uma ótima pedida para apresentação aos noviços, e satisfatório para os fãs que já conhecem a autora. São contos que atravessam vários gêneros, alguns bem curtos, outros com tamanho de noveleta, e muitos com temas super atuais, a despeito de quase 30 anos da primeira publicação (até acabei usando Ado como gancho para uma das crônicas da newsletter). Como amostra do talento de Willis, Impossible Things é, sem dúvida, uma excelente porta de entrada.
Ahmed e as máquinas esquecidas, de Ray Bradbury
Ahmed perde-se da caravana do pai uma noite no deserto, e encontra enterrado na areia a estátua colossal de um velho deus que o leva numa jornada através das estrelas, do sonho e da natureza do tempo, da capacidade de voar, no sentido literal e metafórico.
Pequena fábula ilustrada, Ahmed e as máquinas esquecidas traz o característico tom poético de Bradbury - com imagens que me lembraram muito o soneto Ozymandias de Percy Shelley, embora haja mais esperança no coração desse conto. A aventura vivida por Ahmed é costurada pelo debate filosófico que ele mantém com o deus, e o enredo aparentemente simples traz ângulos de reflexão inesperados. Bradbury sendo Bradbury, enfim.
A Srta. Butterworth e o barão louco, de Julia Quinn
Priscilla Butterworth é uma heroína gótica de respeito, com direito a passado trágico, vilões luxuoriosos e mortes misteriosas por pombos. Não, espera aí… pombos?
Leitores habituais da Julia Quinn provavelmente vão se lembrar do hilariante e absurdo romance gótico assinado por uma tal “Sarah Gorley”, lido e comentado por vários personagens em diferentes títulos: parte de um debate animado entre Lady Danbury e Hyacinth em Um Beijo Inesquecível e numa representação dramática de Sebastian em O Que Acontece em Londres. Dentro da ação normal desses livros, A Srta. Butterworth e o barão louco aparece em pequenos trechos, suficiente, contudo, para se tornar memorável e render muitos pedidos à Quinn para a obra completa.
E, finalmente, aconteceu. A Srta. Butterworth e o barão louco é exatamente tão ridículo como aparentava, uma animada paródia gótica, com o bônus de uma narrativa em quadrinhos, ilustrada pela irmã da Julia, Violet Charles (que faleceu tragicamente num acidente de carro ano passado, junto com o pai da autora, o que torna esse lançamento um tanto melancólico também).
Mas um alerta: não o recomendo como leitura independente, ponto de entrada na obra da Quinn: a grande graça afinal, é encaixá-lo no universo maior da autora; inclusive no que diz respeito a real identidade de Sarah Gorley.
Call us what we carry, de Amanda Gorman
Quando Biden foi empossado ano passado, fiz questão de assistir a cerimônia - havia ali um sopro de esperança e possibilidade de mudança que, espero, possa nos alcançar até o final desse ano. Um dos pontos altos do evento foi a leitura que a jovem Gorman fez de The Hill We Climb. Foi um poema arrebatador e uma imagem incrivelmente forte e assim, coloquei Gorman na lista para ficar de olho (é, eu sei, tenho muitas listas…).
Não sou uma leitora usual de poesia - ou talvez deva dizer não era, tendo em vista que venho adicionando mais do gênero no meu cardápio livresco -, mas me agradou muito a coletânea apresentada em Call us what we carry. É interessante notar que muitos dos poemas reverberam as manchetes que acompanhamos nos dois últimos anos, do movimento Vidas Negras Importam ao luto traumático decorrente da pandemia.
Pergunto-me se será uma coletânea que vai envelhecer bem - alguns dos temas estão bem enraizados em questões contemporâneas, outros são mais universais -, mas para o momento, é uma leitura aguda, repleto de boas reflexões.
Poems to Fall in Love With, de Chris Riddell
Ano passado já tinha devorado Poems to Save the World With, com poemas selecionados e ilustrados por Chris Riddell. Continuei a coleção (o terceiro volume está a caminho) com essa coletânea de poemas românticos e não me arrependo de nada.
Do título já fica claro o que se esperar. É claro que toda coletânea do tipo sempre vai encontrar críticas do tipo “ah, mas esqueceu tal e qual soneto famoso”, mas, bem, não haveria papel suficiente no mundo para abarcar os favoritos de todo mundo - as escolhas aqui vão do gosto de Riddell e essa é a natureza de um livro como ele.
De toda maneira, Riddell traz uma boa gama de poetas clássicos e modernos, casando maravilhosamente com o projeto gráfico - da capa a cada uma das ilustrações. Poems to Fall in Love With é de fato para se apaixonar, numa edição perfeita tanto para presentear quanto para ter como uma jóia na estante.
A Coruja
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