10 de junho de 2022

A Marvellous Light: uma fantasia de péssimos (e hilariantes) costumes


Edwin olhou para a cabeça de Robin, agora enterrada em suas mãos. Tinha sido, mais uma vez, um dia longo e tenso, e eles ainda tinham a noite para atravessar. Ele se aproximou e tocou a nuca de Robin, dois dedos dobrados sob a gola engomada. Robin ficou imóvel com o contato. Edwin moveu os dedos, um leve roçar para frente e para trás, em algum lugar entre conforto, convite e um pedido de desculpas. E a admissão, mesmo em sua própria cabeça: não sou nada como você, e ainda assim me sinto mais eu mesmo com você.

No começo de 2021, recebi uma newsletter da Tor editora anunciando os lançamentos esperados para o ano. Entre os títulos elencados, chamou-me a atenção A Marvellous Light, da Freya Marske, por duas razões: primeiro, a comparação de que esse título seria algo como “Vermelho, Branco e Sangue Azul encontra Jonathan Strange e Mr. Norrell” - dois livros que entraram para a minha lista de favoritos por motivos bem diversos, de tal maneira que a propaganda me deu a isca inicial para ser puxada pelo anzol.

A segunda razão foi a piada das tags do AO3 no final da sinopse.

Para os que não são leitores habituais de fanfics, o AO3 - ou Archive of Our Own - é hoje um dos principais repositórios de histórias escritas por fãs de todo e qualquer fandom que possa lhe passar pela cabeça. Uma das grandes sacadas da plataforma é seu sistema de tags, que permite filtrar e encontrar histórias sob medida para o gosto do freguês (ou excluir gatilhos, o que também é importante).

Enfim, o “rótulo” de A Marvellous Light nos informa que a história contém:

- Desportista jovial com surpreendentes camadas e bibliotecário rabugento que pensa demais e tem poderes de menos

- Tensão sexual não resolvida

- Tensão sexual muito bem resolvida

- Fantasia de Péssimas Maneiras

- Sofrimento/conforto

- Atados por laços de sangue

- Mangas arregaçadas nos antebraços

- Luxúria gratuita por bibliotecas

- Casas sencientes que te amam

- Labirintos homicidas

- Entretenimento náutico (um tropo homoerótico classicamente inglês)

Engasguei de rir na parte dos barcos, lembrando-me imediatamente de Três Homens e uma Canoa: sem esquecer o cachorro, do Jerome K. Jerome. E com certeza me identifico com o sentimento de luxúria por bibliotecas. As mangas arregaçadas é o que se passaria por pornografia eduardiana, considerando os tantos metros de pano com que todo mundo se cobria (sempre bom lembrar a fixação dos vitorianos com calcanhares e pernas de mesa). Mas o que realmente me conquistou foi a “fantasia de péssimas maneiras”, ecoando as comédias de costumes de Oscar Wilde (citado inclusive a determinada altura do enredo), com pitadas de magia, intriga e mistério, narrada de forma intercalada por sir Robert “Robin” Blythe (o desportista jovial) e Mr. Edwin Courcey (bibliotecário rabugento).

Um erro administrativo termina com Robin sendo nomeado para o Departamento de Assuntos Internos e Denúncias Especiais - onde ele descobre não apenas que magia é real, como existe uma sociedade mágica organizada no Reino Unido. Sua nova função, junto com Courcey, é servir de intermediário entre os corpos burocráticos dos mágicos e não mágicos (um tipo de situação que sempre me faz pensar no Pratchett - e há algumas tiradas de chapéu no livro ao estilo de sir Terry), inclusive com poderes de investigação e fiscalização.

O antecessor de Robin, Reggie Gatling, sumiu sem deixar rastros após sair para verificar relatos de fantasmas e outras aparições num local não autorizado. Quando Robin, assumindo o posto, não apenas é ameaçado para achar um suposto contrato - mas também amaldiçoado com um feitiço-tatuagem capaz de causar dores excruciantes de forma aleatória -, fica claro que algo mais sinistro está ocorrendo por trás da cortinas. Edwin não confia em Robin, mas as coisas começam a acontecer tão rapidamente que ele não tem escolha além de agir em conjunto com o baronete.

Os dois viajam de Londres para o interior, na mansão dos Courcey e sua gigantesca biblioteca de títulos mágicos - onde, para azar de Edwin, sua irmã está recebendo amigos para um fim de semana repleto de entretenimento mágico - e, por vezes, bem perigoso para alguém que não possui magia.

Robin pode parecer à primeira vista um grandalhão forte sem muita coisa na cabeça, mas as aparências, como Edwin aprende, enganam: ele é um profundo conhecedor de arte, um irmão dedicado e, sob o plácido semblante, Robin tem uma excelente capacidade de julgar caráter. Edwin, por sua vez, é um amante de livros introvertido, cujos poderes ficam muito aquém do padrão de sua linhagem (algo importante na sociedade em que vive), características que causam constante atrito com a família.

O relacionamento dos dois evolui aos poucos, mas de forma convincente e surpreendentemente terna (não desconsiderando as cenas mais tórridas que eventualmente ocorrem). É interessante notar que, embora o romance se desenvolva num período e contexto social em que a homossexualidade não era considerada apenas reprovável, mas também uma conduta criminosa (de onde vem a referência a Wilde no texto, em específico, a prisão do autor); e os dois tenham consciência de que precisam manter seus encontros em segredo, a autora consegue dar uma nota de leveza e humor, até otimismo, ao processo. Ambos os personagens conhecem suas preferências e os riscos que correm, mas não há crises existenciais ou pânico gay, nem prenúncio de algo trágico à vista. A sexualidade de Edwin, em especial, é conhecida e até razoavelmente aceita pela família e conhecidos (talvez por sua vocação mágica?).

Já li mais de um artigo de opinião sobre a necessidade de histórias que possuam representatividade, mas que não acabem sempre em tragédia - até pouco tempo atrás, boa parte das obras que traziam protagonistas LGBTQI+ iam por esse caminho que, verdade seja dita, ainda é a experiência de muitos da comunidade (intolerância, perseguição, condenação…). Não se pode negar a realidade, ainda há muito que se fazer em prol de minorias de uma maneira geral, mas oferecer histórias que trazem esperança e uma construção positiva de identidades que fogem do “padrão” também faz parte desse caminho.

De outro turno, o sistema mágico que Marske montou é bem costurado e enraizado no folclore inglês, com direito a referências a cortes féericas, contratos sobrenaturais, longas linhagens familiares e terras ancestrais saturadas de magia. O uso da magia é teoricamente acompanhado de uma conduta ética cuja base fundamental é o consentimento - existe um contrato, um vínculo entre as partes, para que a magia funcione e, para que um contrato seja válido, é necessário autonomia e capacidade dos contratantes (alô, direito civil). E isso serve não apenas para as pessoas, mas também mansões ancestrais em terras tão imbuídas de poder que elas se tornaram sencientes (que é onde entramos pelo labirinto homicida já anteriormente citado nas tags).

Edwin, apesar do pedigree impecável, tem poucas reservas mágicas e costuma utilizar barbantes em complexas camas de gato para focar seus feitiços (o que de novo me lembrou Pratchett e suas bruxas, que usam um mecanismo bem parecido, com barbantes e tudo o mais que encontram no bolso). Isso parece uma desvantagem, especialmente se considerarmos o bullying praticado por seu irmão mais velho… mas talvez signifique que Edwin tem talento para outras formas de magia. E outros dons também, como sua memória, lógica e capacidade investigativa.

Quanto a Robin… bem, ele talvez não seja tão mundano quanto aparenta…

O conflito maior por trás do mistério referente ao desaparecimento de Gatling, a maldição sobre Robin e a busca por trás de algo chamado “O Último Contrato”, têm a ver com a busca de certas pessoas por alternativas de poder que independam da cláusula de consentimento.

The Marvellous Light é o primeiro título de uma trilogia e o segundo volume está previsto para novembro desse ano, trazendo como protagonista a irmã de Robin, Maud Blyth. Estou na expectativa da continuação, mas, devo dizer que, embora haja pontas soltas na resolução do problema maior que absorve a série, considerei o final do primeiro volume satisfatório e bem amarrado em si mesmo.

Foi uma leitura divertida, com personagens cativantes, pelos quais torci intensamente - Robin e Edwin são adoráveis -, uma construção de mundo que me deixou com água na boca (quero mais casas com vontade própria!), e um mistério que me absorveu a atenção. Um dos melhores do ano (pelo menos até aqui).

Nota:
(de 1 a 5, sendo: 1 – Decepção; 2 – Mais ou Menos; 3 – Interessante; 4 – Recomendo; 5 – Merece Releitura)

Ficha Bibliográfica

Título: A Marvellous Light
Autor: Freya Marske
Editora: Tor
Ano: 2021

Onde Comprar

Amazon


A Coruja


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Um comentário:

  1. Desconfio que comprarei para meu kindle. Parece muito bom. E sim, pelo amor de Deus mais leituras LGBTQ+ sem a "jornada gay"... Esse tipo de literatura é muito boa, então obrigada por essa dica!

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