14 de junho de 2022
Tradução - Rotas de Fuga
A primeira vez que ouvi falar do artigo Rotas de Fuga foi numa correção de citação - uma frase que era originalmente atribuída a J. R. R. Tolkien, mas que era na verdade da Ursula Le Guin, parafraseando ideias de Tolkien (deixei-a destacada na tradução, logo abaixo; sério, se jogá-la numa ferramenta de busca, só vai achar resultados atribuindo-a ao Tolkien…). Essa questão da fantasia escapista volta e meia me retorna à mente e a citação completa da Le Guin foi força motriz de alguns dos ensaios que mais gostei de escrever.
Enfim, demorei para conseguir achar o artigo completo: jogando a citação no Google, o máximo que descobri inicialmente é que ele aparecia na coletânea The Language of the Night. Nem o título certinho do ensaio eu sabia. Toda vez que me lembrava do assunto, pesquisava de novo, redescobria que o livro estava esgotado e não havia e-book - e edições usadas antigas custavam os olhos da cara ou não entregavam no Brasil.
Idas e vindas depois, achei parte do livro digitalizada no Google Livros, descobri enfim o título do ensaio em que a citação aparecia e encontrei-o no Internet Speculative Fiction Database, que, por sua vez, deu-me o caminho para encontrar a versão digitalizada da revista Galaxy vol. 35, de dezembro de 1974, na qual o ensaio fora originalmente publicado.
Obrigada, Internet!
Foi uma jornada longa atrás de um ensaio de pouco mais de três páginas, escrito há quase cinquenta anos (bem antes até de eu nascer), um pouco datado em algumas referências (demorei um minuto para entender que os nomes citados eram de críticos grandes na época), mas, enfim, é um daqueles textos seminais que vale muito a pena compartilhar (inclusive para reconhecer a autoria da tão famosa citação).
Antes de começar, habitual aviso de todas as minhas tentativas de tradução: não sou tradutora profissional, fiz o possível para não perder nada do original, até mesmo incluindo links, grifos, ênfases e acréscimos em frases para não deixar abertura a ambiguidades. Assim, recomendo para quem puder, leia a versão direto do inglês.
Agora, sem mais delongas…
Ensaio que, segundo a própria Le Guin, é uma amálgama e sumário de várias palestras dadas a grupos de professores especializados em Ficção Científica, publicado originalmente na Galaxy Magazine vol. 35, em 1974
No encontro de 1974 da Associação de Pesquisa da Ficção Científica, evento anual que gosto de chamar de “A Noiva de Frankenstein no Bosque Acadêmico”, Alexei e Cory Panshin se manifestaram eloquentemente contra o ensino da Ficção Científica nas escolas e faculdades. Parecia um pouco quixotesco, já que seu público era formado por professores de ficção científica - pessoas tão interessadas e comprometidas com o assunto que vinham de todo o país para falar sobre ele e aprender a fazê-lo melhor -; num contexto em que milhares de escolas de ensino médio oferecem agora cursos de ficção científica; e mesmo os mais prepotentes departamentos de inglês no ensino superior estão se esforçando para conquistar o campo. Acho que não há muito o que questionar agora, e manter os professores longe de Aldebarã. Eles já estão lá. E aquele rosto olhando pela janela do quinto andar da Torre de Marfim, ora, são os Pequenos Homens Verdes. Pelo meu lado, aceito alegremente essa miscigenação, e estou interessada simplesmente no que poderá vir a ser a prole desse casamento da Academia com a Ficção Científica.
Pois, sem dúvida, o recente aumento no ensino de FC há de afetar como escrevemos FC. Nosso público aumentou imensamente; e pela primeira vez, nós no gueto da FC estamos começando a receber críticas – não o desprezo dos esnobes literários, e nem as explosões de elogios e condenações de devotos ciumentos, leais, de dentro da comunidade; mas críticas reais, por pessoas treinadas e inteligentes, que leram amplamente tanto dentro como fora do campo. Esta pode ser a melhor coisa que já aconteceu à Ficção Científica, sua validação - tanto para os leitores quanto para seus escritores - como poderosa e responsável forma de arte.
Um gueto é um lugar confortável e reconfortante para se viver, mas também é um lugar incapacitante no qual existir. A essência de um gueto, afinal, é que você é forçado a viver lá. Escolher o gueto quando se é livre para escolher a comunidade maior é um ato de covardia. Agora que as paredes estão caindo, acho que cabe a nós atravessar os escombros e encarar a cidade lá fora. Não precisamos perder nossa solidariedade ao fazê-lo. A solidariedade, a lealdade, não é uma prisão, onde não se pode escolher: é uma escolha feita livremente. Mas, igualmente, não devemos esperar ser recebidos com canções de louvor por todos os estranhos por aí. Por que deveríamos ser? Também somos estranhos para eles. Se temos fraquezas, devemos aprender a criticá-las; se temos pontos fortes, devemos prová-los.
Uma forma de mostrar nossa força é ajudando os críticos sérios da FC a montar um aparato crítico, um conjunto de padrões adequado ao estudo e ensino da FC. Alguns dos critérios pelos quais o romance convencional é discutido e julgado se aplicam à FC, outros, não. Os professores não podem passar de Um Conto de Duas Cidades para O Homem do Castelo Alto sem mudar de marcha; se o fizerem, um livro ou outro será mal interpretado, maltratado. Felizmente, em pelo menos duas áreas, a FC estabeleceu suas próprias normas e as tem aplicado com severidade crescente, na escrita, no ensino da escrita, e no ensino da Ficção Científica como Literatura.
A primeira delas é o critério de coerência intelectual e plausibilidade científica.
O cânone básico da Fantasia, obviamente, é: você é quem cria as regras, mas depois, tem obrigatoriamente de segui-las. A Ficção Científica refina esse enunciado: você cria as regras, mas dentro de certos limites. Uma história de ficção científica não deve desprezar a evidência da ciência, não deve, como diz Chip Delany, negar o que se sabe ser conhecido. Ou, se o fizer, o escritor deve conhecer o argumento científico e defender a liberdade que tomou quanto a ele, seja com uma hipótese genuína ou com uma sólida e convincente farsa. Se eu der velocidade mais rápida que a da luz às minhas naves espaciais, devo estar ciente de que estou contradizendo Albert Einstein e aceitar as consequências – todas as consequências. Nisto, precisamente, reside o prazer estético único da Ficção Científica, no intenso, coerente acompanhamento das implicações de uma ideia: seja ela um pouco de tecnologia ainda distante da nossa realidade, ou uma teoria de mecânica quântica, ou uma projeção satírica de tendências sociais atuais, ou um mundo inteiro criado por extrapolação da biologia e da etnologia. Quando uma ideia desse tipo é consistentemente trabalhada em termos materiais, intelectuais, sociais, psicológicos e morais, algo sólido foi feito, algo real: algo que pode ser lido, ensinado e julgado diretamente em seus próprios termos. O “senso de admiração” não é um perfume tênue, está embutido em uma boa história, e quanto mais de perto você observa, mais forte é o sentimento de admiração.
Uma segunda crítica é a da competência estilística.
Você sabe como era a FC na Era de Ouro da Ficção Científica. Você sabe. Era assim. “Ah, professor Higgins,” murmura a esbelta e vivaz Laura, “mas me diga como funciona o desnudificador antipastomatérico?” Então o professor Higgins, com um sorriso gentil e distraído, explica como funciona o equipamento por cerca de seis páginas, num palavrório incompreensível e indecifrável. Então o capitão da nave entra em cena, com um sorriso tenso e torcido em seu rosto magro e bronzeado. Seus olhos cinzentos de aço brilham. Ele acende um cigarro e inala profundamente. “Ah, Capitão Tommy”, Laura pergunta com um aceno animado de sua cabeça, “há algo de errado?” — “Não preocupe sua bela cabecinha com isso,” o Capitão responde, inalando profundamente. “Há uma frota de nove mil monstros de lodo Gloobianos a bombordo, isso é tudo.” E assim por diante. Você conhece o tipo. A Ficção Científica americana costumava ser uma mídia popular, pop, e tudo o mais. Agora não é mais - ou não toda ela, de qualquer maneira. Ela se juntou à FC inglesa e europeia, esparsa, mas nunca boba (a não ser quando nos imitou), e que sempre fez parte da grande tradição da ficção. E assim será julgada - não como bobagem, não como lixo -, como ficção.
O que estou dizendo não é nem evidente nem uma opinião popular. Dentro do gueto da FC, muitas pessoas não querem que seus livros, ou os livros de seus escritores favoritos, sejam julgados como Literatura. Eles querem o refugo, e se ressentem amargamente quando esse refugo é esteticamente julgado. E fora do gueto, há críticos que gostam de ficar acima da FC, esnobando-a, e, portanto, querem que ela seja vista como lixo, vulgar, desprezível. Havia muito dessa veia no artigo outrossim perspicaz de Gerald Jonas no New Yorker, e é uma das muitas mãos que Leslie Fiedler costuma jogar. Felizmente é um jogo em que nosso melhor crítico de FC, Darko Suvin, nunca aposta. Considero esse desprezo mero pretexto, uma atitude arrogante tanto para com os livros quanto para com seus leitores.
Há uma área em que a Ficção Científica mais frequentemente falhou em se julgar, mas foi julgada com mais severidade por seus não-partidários. É uma área em que precisamos urgentemente de crítica inteligente e debate. O argumento mais antigo contra a Ficção Científica é a um só tempo o mais superficial e mais profundo: a afirmação de que Ficção Científica, como toda Fantasia, é escapista.
Esta afirmação é superficial quando feita por gente superficial. Quando um corretor de seguros lhe diz que a Ficção Científica não lida com o Mundo Real, quando um calouro de química lhe informa que a Ciência desmentiu o Mito, quando um censor suprime um livro porque ele não se encaixa nos cânones do Realismo Socialista e assim por diante, isso não é crítica; é intolerância. Se vale a pena responder, a melhor resposta é dada por Tolkien, autor, crítico e estudioso. Sim, ele disse¹, a Fantasia é escapista, e essa é a sua glória. Se um soldado é aprisionado pelo inimigo, não consideramos que é seu dever escapar? Os agiotas, os sabe-tudo, os autoritários nos colocam a todos na prisão; se valorizamos a liberdade da mente e da alma, se somos partidários da liberdade, então é nosso óbvio dever escapar, e levar conosco tantas pessoas quanto conseguirmos.
Mas pessoas que não são tolas ou intolerantes, pessoas que amam tanto a arte quanto a liberdade, críticos tão responsáveis quanto Edmund Wilson, rejeitam a ficção científica categoricamente como um gênero que simplesmente não vale a pena discutir. Por quê? O que os torna tão seguros disso?
A pergunta, afinal, deve ser feita: de que se está escapando e para o quê?
Evidentemente, se estamos fugindo de um mundo que consiste em Newsweek, Pravda e Relatórios do Mercado de Ações, para afirmar a existência de um mundo primário e vívido, uma realidade mais intensa onde existem alegria, tragédia e moralidade, então estamos fazendo algo bom, e Tolkien está certo. Mas e se fizermos exatamente o contrário? E se estivermos fugindo de um mundo complexo, incerto e assustador de morte e impostos para um lugar agradável e simplesmente aconchegante, onde os heróis não precisam pagar impostos; onde a morte acontece apenas para vilões; onde a Ciência, mais a Livre Iniciativa, mais a Frota Galáctica em seus uniformes pretos e prateados, podem resolver todos os problemas; onde o sofrimento humano é algo que pode ser curado – curado como o escorbuto? Esta não é uma fuga do que é falso. Esta é uma fuga para a impostura. Isso não nos leva na direção dos grandes mitos e lendas, que é sempre a direção de uma intensificação do mistério do real. Isso nos leva para o outro lado, para uma rejeição da realidade, ou ainda, direto para a loucura: regressão infantil, ou delírio paranóico, ou isolamento esquizóide. O movimento é retrógrado, autista. Nós escapamos nos trancando na prisão.
E dentro da cela acolchoada as pessoas sentam e dizem: Nossa, você leu a última história de Arroto, o Bárbaro? É a melhor.
Eles não se importam se alguém de fora está ouvindo. Eles não querem saber que existe um lado de fora.
Como as obras mais famosas de Ficção Científica são social e eticamente especulativas, o gênero tem a reputação de ser inerentemente “relevante”. Acusado de escapismo, defende-se apontando para Wells, Orwell, Huxley, Gapek, Stapledon, Zamyatin. Mas isso não vai dar certo: não para nós. Nenhum desses escritores foi americano. Meu sentimento é que a ficção científica americana, enquanto se apoia na reputação de grandes obras europeias, ainda se apega à tradição popular de escapismo.
Isso é exagerado e talvez injusto. A FC americana recente está cheia de histórias sobre totalitarismo, nacionalismo, superpopulação, poluição, preconceito, racismo, sexismo, militarismo e assim por diante: todos as questões “relevantes”. Again, Dangerous Visions foi quase um regular volume didático sobre Questões (tive uma história em um dos capítulos). Mas o que me preocupa é que muitas dessas histórias e livros foram escritos em um tom selvagemente hipócrita, um tom que implica que há uma resposta, uma resposta simples, “e por que todos vocês malditos idiotas não conseguem ver isso?”. Bem, eu chamo isso de escapismo: o levantar sensacionalista de uma questão real, seguida por uma rápida evasão do peso, da dor e da complexidade envolvidas em verdadeiramente, experimentalmente, tentar compreender e lidar com essa questão. E, a propósito, não estou falando apenas sobre as escolas de FC reacionárias e de respostas fáceis, os tecnocratas, cientologistas, “libertários” e assim por diante, mas também sobre o niilismo chique incorporado pretensiosamente por muitos talentosos escritores americanos e ingleses da minha geração. A aniquilação é a resposta mais fácil de todas, você apenas fecha todas as portas.
Se a Ficção Científica tem uma grande dádiva a oferecer à Literatura, acho que é apenas esta: a capacidade de enfrentar um universo aberto. Fisicamente aberto, psiquicamente aberto. Nenhuma porta fechada.
O que a ciência, da física e astronomia à história e psicologia, nos deu, é o universo aberto: um cosmos que não é uma hierarquia simples e fixa, mas um processo imensamente complexo no tempo. Todas as portas estão abertas, desde o passado pré-humano, passando pelo incrível presente, até o terrível e esperançoso futuro. Todas as conexões são possíveis. Todas as alternativas são pensáveis. Não é um lugar confortável e reconfortante. É uma casa muito grande, uma casa repleta de frestas por onde penetra o ar frio. Mas é a casa em que moramos.
E a Ficção Científica parece ser a arte literária moderna que é capaz de viver naquela casa enorme e álgida, e sentir-se em seu lar lá, e brincar com as palavras subindo e descendo as escadas, do porão ao sótão.
Acho que é por isso que as crianças gostam de Ficção Científica, e exigem que lhes ensinam sobre ela, que lhes permitam estudá-la, levá-la a sério. Eles sentem esse potencial que o gênero tem para brincar e dar sentido e beleza ao nosso mundo de conhecimento e percepção terrivelmente ampliado. E é por isso que me aflijo quando vejo a Ficção Científica falhar em fazê-lo, recorrendo a garantias tolas e simplistas, ou choramingando ‘ai, ai, arrependa-se’ ou refugiando-se em mera ilusão.
Por isso, saúdo o estudo e o ensino da FC – desde que os professores nos critiquem, com exigência, com responsabilidade, e façam com que os alunos nos leiam com exigência, com responsabilidade. Se a FC for tratada, não como lixo, não como escapismo, mas como uma arte - intelectual, estética e eticamente responsável -, uma grande forma de arte, ela se tornará exatamente isso: cumprirá sua promessa. A porta para o futuro estará aberta.
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Notas da tradutora
¹ Eis a citação original de Tolkien, no ensaio Sobre Estórias de Fadas, de onde Le Guin parafraseou:
Afirmei que o Escape é uma das principais funções das estórias de fadas e, uma vez que não as desaprovo, está claro que não aceito o tom de escárnio e pena com o qual o termo "Escape" é agora tão frequentemente usado: um tom para o qual os usos da palavra fora da crítica literária não conferem garantia em absoluto. No que os mais usuários do termo gostam de chamar de Vida Real, o Escape é evidentemente, via de regra, muito prático e pode mesmo ser heroico. Na vida real, é difícil culpá-lo, a menos que fracasse; na crítica, ele parece ser pior quanto melhor se dá.
Evidentemente estamos confrontados com um mau uso de palavras e também uma confusão de pensamento. Por que dever-se-ia escarnecer de um homem se, achando-se na prisão, ele tenta sair e ir para casa? Ou se, quando ele não pode fazê-lo, pensa e fala de outros temas que não carcereiros e paredes de prisão? O mundo lá fora não se tornou menos real porque o prisioneiro não consegue vê-lo. Ao usar "escape" dessa maneira, os críticos escolheram a palavra errada e, além do mais, estão confundindo, nem sempre por erro sincero, o Escape do Prisioneiro com a Fuga do Desertor.
² É bem interessante a escolha de "portas" na explicação de Le Guin e lembrou-me muito outro ensaio/palestra: Em Busca de Portas, da Victoria Schwab, que toca em alguns dos assuntos apresentados aqui e pode ser encarado como uma leitura complementar.
A Coruja
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