1 de julho de 2020

O Resumo da Ópera - O Ano Já Pode Acabar?


O primeiro semestre acabou e isso significa que é hora de fazer o balanço de meio do ano - ou o resumo da ópera do que andei lendo por esses meses. A despeito da quarentena - ou talvez por causa dela - até consegui dar uma boa baixada na lista de livros não lidos que estavam à espera na estante, incluindo alguns que estavam há mais de quatro anos esperando… Enfim, nesse apanhado do que andei lendo tem de tudo um pouco: clássicos, romance, policial, não ficção…

Nem acredito que ainda temos um semestre inteiro pela frente, já que cada mês de 2020 tem sido equivalente a dez anos enquanto continuamos trancados em casa. Pelo menos temos os livros...


Rastro de Sangue: Jack, o Estripador, de Kerri Maniscalco
Fiquei bem empolgada quando vi a capa desse livro pela primeira vez: o mistério por trás dos crimes de Jack, o estripador, intriga-me um bocado e já li ou assisti várias versões da história por aí. Como gosto e estou acostumada a romances vitorianos (passado à época ou escritos no período), fiquei, claro, ainda mais empolgada. A sinopse ainda me prometia uma protagonista feminina forte, decidida e inteligente, a enfrentar preconceitos e estereótipos.

A ideia toda, em si, era muito boa. Mas a execução deixou um bocado a desejar. Pelo que percebi, esse foi o primeiro livro da autora e ela não é muito boa com transições de cena, as coisas acontecem de forma meio abrupta. O mistério central é meio óbvio e eu descobri o assassino nos primeiros capítulos. A linguagem e reconstituição histórica também deixam a desejar e, num livro de época, esses detalhes são essenciais para que o leitor entre naquele estado de suspensão de descrença. A própria protagonista, em vez de me passar a imagem de garota forte e decidida, deixou-me com uma profunda impressão de imaturidade impulsiva.

Sério: se sou uma moça nobre na Londres vitoriana, e decido sair de casa completamente sozinha, sem avisar a ninguém, para ir andar pelas ruas de Whitechapel à noite, desarmada, quando tenho plena consciência que um assassino está caçando naquele lugar - isso não é coragem, é tola insanidade suicida.

A fascinação de Audrey Rose por autópsias é interessante, seu relacionamento com Thomas Cresswell tem momentos bem divertidos e intensos, mas acho que o livro teria funcionado melhor se ambientado nos dias de hoje, talvez com um imitador de Jack. Não seria tão difícil adaptar os dilemas da protagonista e ficaria minimamente mais crível.


Mulheres, Mitos e Deusas, de Martha Robles
Descobri esse livro logo após ler História da Bruxaria. Ambos são do selo Goya da Aleph e seguem a mesma linha editorial então, como gostei muito do primeiro, coloquei Mulheres, Mitos e Deusas na lista. Aí no início da quarentena teve uma baita promoção de e-books e ele estava por menos de dez reais, de forma que comprei sem piscar o olho.

Não prestei muita atenção na premissa, fiquei sob a impressão de que era um estudo histórico nos moldes do outro livro e foi só quando comecei a leitura que me dei conta de que era algo bem diferente do que eu estava esperando. Trata-se de uma coletânea de pequenos perfis de figuras femininas importantes - reais ou fictícias - ao longo do tempo e em diversos temas, do místico-religioso à literatura e poder. Começa num tom bem didático e impessoal, mas aos poucos a autora passa a partilhar experiências pessoais e há até alguns capítulos experimentais em que ela assume o papel da biografada e conta sua história em primeira pessoa.

Esse passear entre diferentes estilos me fez estranhar um pouco o ritmo do livro. Ele não é exatamente o que eu estava querendo quando comecei a lê-lo - quando parei para refletir o porquê disso, dei-me conta de que imaginava algo na linha de Mulheres que Correm com Lobos -, mas funciona como um bom livro de referências.


As Sereias de Titã, de Kurt Vonnegut
Sou fã assumida do Vonnegut desde que li pela primeira vez Matadouro 5. A forma como ele utiliza um humor absolutamente nonsense para expôr a insanidade da guerra, da sociedade de consumo, das relações modernas de poder é provocante e, por entre os risos, rende muita reflexão. E, embora Vonnegut tenha escrito de forma bem atrelada à Guerra Fria, sua crítica continua válida para nós.

As Sereias de Titãs traz viajantes espaciais, lavagem cerebral, planos mirabolantes, mártires e até uma nova religião, tudo com o escopo de encontrar um sentido para a existência humana. Achei um enredo ainda mais tresloucado que o já citado Matadouro 5 e Cama de Gato; quase não consegui fazer sentido de tudo o que acontecia na primeira parte do livro, mas quando afinal entendi os objetivos de Rumfoord, a estória me fisgou de verdade.

Do que li do autor até o momento (preciso ler ainda mais, porque Vonnegut é realmente genial), achei esse é o mais filosófico de todos. Há questões interessantes a se pensar sobre livre-arbítrio, considerando o dom de Rumfoord de ver o futuro, as tentativas de Beatrice e Malachi de fugir ao destino e a grande missão que envolve toda a humanidade e a civilização no encaminhamento de uma única mensagem. Esse é um daqueles livros que você pode ler (e reler) em muitos níveis, com muitas interpretações e significados e nunca exaurir o que ele tem a te oferecer.


A Princesa de Clèves, de Madame de La Fayette
Diz a sabedoria popular que “segredo entre três, só matando dois”. Aplicar essa máxima ao clássico romance de Madame de La Fayette, não creio que sobrem personagens, até porque os próprios donos do segredo teriam de cometer suicídio para não ter comichões de se confessar com ninguém. Intrigas e fofocas são a base do enredo e todo mundo está mais que interessado nos mexericos da corte. Considerando tal fato, é meio hilário que Sarkozy tenha eleito o romance como um de seus inimigos particulares à época que foi presidente.

Publicado anonimamente em 1678, A Princesa de Clèves é um meio termo entre as baladas de amor cortês medieval e o romance realista psicológico, algo como Tristão e Isolda numa versão proto-machadiana. Na corte francesa de Henrique II, a beleza e virtude da jovem senhorita de Chartres acende intensas paixões por onde passa. Velhas rivalidades na corte envolvendo parentes seus, contudo, parecem impedi-la de fazer um casamento realmente vantajoso… até o Príncipe de Clèves perder o pai e assim ficar desimpedido de ordens contrárias. O príncipe ama a jovem desesperadamente, ao passo que ela lhe tem apenas respeito e um afeto confortável. Tudo iria razoavelmente não fosse pelo retorno do valoroso Duque de Nemours à corte, que, à primeira vista, desenvolve uma paixão obsessiva pela agora princesa… sendo por ela correspondido. Tal paixão, contudo, nunca é consumada diante do dever que ela entende ter para com seu marido - ao ponto de ela preferir confessar ao príncipe sua paixão para se certificar de que não vai traí-lo com o duque.

A Princesa de Clèves entrou na minha lista de leituras mais por curiosidade histórica que interesse literário. Afinal, ele é considerado o primeiro romance psicológico publicado. Além de ter sido escrito por uma mulher e sido um sucesso de público à época. Não é, contudo, uma leitura que flui com tanta facilidade: há algo do fluxo de consciência que mais tarde seria marca registrada de Virginia Woolf, pensamentos e ações se mesclando e confundindo, de tal forma que às vezes você se perde no enredo. Os personagens também não são lá muito simpáticos - a heroína é perfeita demais, o marido é insosso, o pretendente a amante é inconveniente e sua paixão fixa me assusta. Ainda assim, é uma curiosidade que vale ser saciada, seja para acompanhar a evolução do gênero romance, seja porque ao terminar você está com a cabeça cheia de imagens deslumbrantes da corte, seja porque há algo de intenso e intrigante e - bem, ele é considerado um monumento da literatura daquele país - francês na história.



O Apanhador no Campo de Centeio, de J. D. Salinger
Esse aqui foi outro daqueles volumes que entrou na minha lista mais por curiosidade histórica do que por achar que iria gostar. E, de fato, não posso dizer que gostei da história, porque minha impressão final é que o livro não tem um enredo. É basicamente, do começo ao fim, Holden Caulfield perambulando de um lado para o outro e monologando sobre como ele detesta o mundo e tudo o que existe nele (exceto, talvez, pela irmã caçula, Phoebe).

Entendo aqui que não se trata de uma narrativa linear, de ações que vão se somando para contar uma história com começo, meio e fim. O Apanhador no Campo de Centeio é uma jornada em fluxo de consciência, na qual, durante três dias, acompanhamos Holden largando a escola prestigiosa da qual ele acabou de ser expulso para caminhar por Nova York atrás de algum sentido para uma existência completamente vazia. Até hoje não achei um livro escrito nesse estilo que conseguisse realmente me enredar, então é provável que o problema seja eu mesma e minha aversão ao danado do fluxo de consciência.

Holden é imaturo, profundamente deprimido, completamente isolado de seus pares e um retrato muito verdadeiro das angústias de um adolescente. Talvez, se eu tivesse lido esse livro mais nova, na mesma idade de Holden, eu pudesse ter simpatizado com o protagonista e me identificado com sua busca. Com o dobro da idade do protagonista, contudo, não consigo me conectar a ele nem me importar com sua inquietude.


Literary Places, de Sarah Baxter
Esse é um daqueles livros que não faço ideia de como descobri, mas sei que me chamou a atenção pelo título. Afinal, a se considerar que gosto de organizar minhas viagens com roteiros literários, não preciso explicar porque um nome como esse me fisgaria de cara.

Literary Places é literalmente o que promete: um guia de lugares reais que aparecem em histórias famosas. São 25 locais espalhados pelo mundo todo - e isso é notável, porque volumes do tipo costumam se concentrar na Europa e Estados Unidos -, num texto leve que costura informações das obras indicadas com os locais escolhidos para representá-los. Ao final, minha sensação era de curiosidade por ler as obras citadas que me eram desconhecidas e uma vontade inquieta de ir arrumar as malas e arranjar minha próxima viagem (não necessariamente nessa ordem, claro).

Cada capítulo vem acompanhado de belas e coloridas ilustrações, lindas de olhar… mas, pessoalmente, eu as substituiria por mapas e roteiros detalhados de como chegar a cada local citado no texto. A falta dessas informações faz com que Literary Places seja mais um guia de curiosidades - com um texto bastante agradável de ler, seja dito -, que você usa como base para pesquisar e montar sua viagem.


Retrônicos, de vários autores
Ganhei esse livro num sorteio do The Bookworm Scientist. Não conhecia o projeto nem os autores, mas achei a premissa interessante e fiquei bem curiosa para dar uma olhada no livro. Foi leitura rápida - o volume tem pouco mais de cem páginas - e um pouco fora da minha zona de conforto, mas achei Retrônicos bem interessante.

Como toda antologia, essa coletânea tem seus altos e baixos. Há contos excelentes, que realmente me tocaram; ou causaram calafrios e estômago embrulhado (o bom horror tem dessas coisas…). Outros foram um pouco mais medianos, repletos de clichês (o que nem sempre é ruim) com uma verborragia adjetiva que tornava a leitura truncada - fizeram-me lembrar do preciosismo de autores como Lovecraft e Poe, mas sem a mesma fluidez deles. Às vezes, menos é mais.

A premissa do todo, como os contos de interconectam, a divisão das partes, evolução temporal, transição de humanos para monstros e ciborgues, foram as coisas que mais me chamaram a atenção. Retrônicos parte de uma ideia muito boa, com uma execução bem pensada.


A Literatura como Remédio, de Dante Gallian
Esse foi um dos muitos títulos oferecidos de forma gratuita naquelas primeiras semanas de quarentena; e como minha mãe costuma dizer que “de graça, até injeção na testa”, acabei baixando-o sem nem procurar saber do que exatamente se tratava. Aí, como estava no meio de uma ressaca literária em que não conseguia me concentrar o suficiente para ler ficção, coloquei-o na frente da lista - porque uso não-ficção como remédio nessas ocasiões e porque achei irônico me “curar” da ressaca com um livro que tinha um título de A Literatura como Remédio.

Em suma, a obra traz dados sobre as experiências do autor comandando um laboratório de leitura em que os membros utilizam os livros que leem para debates e humanização de práticas de trabalho. É uma leitura bem fluida, com reflexões sobre a importância da literatura em nossa sociedade, inclusive (talvez especialmente) em ambientes de trabalho no que concerne à empatia e humanização de práticas cotidianas.

No final das contas, foi uma grata surpresa que me esperava entre essas páginas. Embora seja analisado de um ponto de vista científico, o que Gallian descreve aqui é uma experiência muito parecida com a que tenho no clube do livro de bolso. Eu me vi descobrindo expressões técnicas para coisas que já fazia e debatia no clube e me identificando com as experiências descritas. Há várias lições interessantes, e algumas ideias sobre como organizar seu próprio programa de debates literários. Achei excelente.


Conversations on Writing, de Ursula Le Guin e David Naimon
Um tempo atrás li em sequência vários dos livros de ensaios da Ursula Le Guin e fiquei impressionada com a mulher - não apenas como uma grande escritora, mas como um ser humano excepcional também. Cheguei inclusive a traduzir um dos ensaios dessa leva, de tanta necessidade que senti de compartilhar a excelência dessa mulher.

Dividido em três partes, para tratar da ficção, poesia e não-ficção da autora, Conversations on Writing traz uma das últimas entrevistas concedidas por Le Guin, tendo sido publicado já após seu falecimento. Aqui ela trata de sua longa carreira, da forma como a Academia dialoga com sua obra; marca a importância da ficção científica e de se assumir como um autor de ficção popular, dos autores que a impactaram e de seu próprio lugar no cânone.

É uma leitura rápida, mas muito interessante, que deu vontade de reler tudo o que tenho dessa mulher cá em casa e procurar os que não li ainda. Gosto demais da Le Guin, na ficção, mas especialmente como ensaísta. Queria que os livros de ensaios dela fossem traduzidos aqui, eu os daria de presente para meio mundo de gente...


A Inesperada Herança do Inspetor Chopra, de Vaseem Khan
Quando a Morro Branco anunciou esse livro aqui no Brasil, chamaram-me a atenção tanto a sonoridade do título quanto o colorido da capa. Lendo a sinopse, minha curiosidade foi aguçada: um detetive aposentando-se, um acidente que parece esconder algo maior e um elefante se cruzam no cenário caótico da Mumbai moderna.

A Inesperada Herança do Inspetor Chopra rendeu-me tudo o que eu esperava dessa conjunção de fatores. É uma história leve (a despeito do enredo policial), divertida, com um tempero muito próprio. O autor consegue imprimir ao texto cheiros e sabores, de tal maneira que me senti transportada para a Índia mais de uma vez.

O enredo em si é meio clichê (o que é compensado pelo fato de que temos um filhote de elefante como parceiro do detetive) e há muitas coincidências quase sobrenaturais para ajudar o inspetor Chopra em seu caminho, mas isso não tira o prazer da leitura. É, em suma, o que chamo de um livro “sessão da tarde”, mas com algo do ritmo de Bollywood.


A Coruja


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9 comentários:

  1. Vish, sempre que vejo livros contemporâneos ambientados no passado, fico com um pé atrás, pq não é todo autor que consegue reconstruir períodos e costumes da Era Vitoriana, e quanto mais antigo, mais difícil que acertem no tom

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    1. Pois é. Pessoal às vezes esquece de fazer a lição de casa e a pesquisa histórica...

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  2. Você escreveu tudo o que eu to sentindo. É uma fanfic barata de Jack, o estripador. Só vou terminar de ler porque foi caro...?

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  3. Concordo totalmente. Não senti a atmosfera do passado e nem consegui me transportar a ela. A protagonista podia sim ser muito a sua frente, mas não a achei tão corajosa, apenas insolente.

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  4. Também adoro o estilo do Vonnegut, é único e extraordinário. Leia o Cama de Gato, Lulu, é MUITO BOM!

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    1. Já li! É o meu favorito dos que li até o momento. Achei fantástico. Depois vou catar 'café da manhã dos campeões', acho que dos que já foram publicados aqui, é o único que ainda não li.

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  5. Cara, este livro faz séculos que está na minha lista. Era tipo uma ?vergonha? ainda não o ter lido, mas sempre voltava pra o final da fila, pois achava a coisa toda meio chata.
    Seu comentário me salvou! Com a elegância que vc escreve , vc me deu justificativas pra o deixar no final da lista e, quem sabe um dia, o ler

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  6. Olá, você pode me tirar uma dúvida? Eu queria saber se a cena que ela confessa seu amor pelo duque para o marido, o duque está escondido ouvindo a conversa. Eu sei que é uma dúvida muito específica hahaha, é que eu estou sem acesso ao livro mas precisava saber para um trabalho e, infelizmente, não lembro deste detalhe.

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Livros, viagens, filosofia de botequim e causos da carochinha: o Coruja em Teto de Zinco Quente foi criado para ser um depósito de ideias, opiniões, debates e resmungos sobre a vida, o universo e tudo o mais. Para saber mais, clique aqui.

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