30 de novembro de 2018

Desafio Corujesco 2018 - Uma História com Teoria da Conspiração || Cama de Gato


– Às vezes me pergunto se ele não nasceu morto. Nunca conheci um homem menos interessado nos vivos. Às vezes acho que esse é o problema do mundo: muitas pessoas em cargos importantes estão mortas, frias como pedra.

Muito tempo atrás li Matadouro 5 e fiquei tonta e fascinada com o estilo de Kurt Vonnegut - a narrativa meio fragmentada e o tom burlesco, misturando ficção científica, memória e guerra, desafiando convenções de gênero de forma brilhante e alucinada. Lembro de comentar sobre isso com um amigo e dele me dizer que eu deveria ler Cama de Gato, porque era um livro que conseguia ser ainda melhor. Tendo finalmente me desincumbido da leitura desse título, cheguei à conclusão que deveria dar prioridade a tudo que esse amigo me indica, porque ele normalmente acerta na mosca.

Cama de Gato tem uma narrativa mais linear que Matadouro 5, mas nem por isso menos delirante. John, o narrador, apresenta-se como um escritor trabalhando num livro sobre diferentes personalidades americanas e o que elas estavam fazendo no momento em que Hiroshima foi bombardeada. No processo, ele se interessa pela personalidade de um dos cientistas envolvidos no desenvolvimento da bomba atômica, Felix Hoenniker, e decide entrevistar a família do físico para seu livro. Nessa viagem, ele descobre detalhes sobre uma terrível arma ainda mais mortífera que a nuclear: o gelo-nove, capaz de cristalizar toda líquido em temperatura ambiente apenas com um breve contato. Em outras palavras, apenas toque uma partícula de gelo-nove no mar e quase instantaneamente você transformará o inteiro planeta num deserto gelado.

Na sua busca pela verdade acerca do gelo-nove, o narrador vai parar em San Lorenzo, ilha caribenha que é uma autêntica república das bananas, e onde viceja um tipo de religião chamada bokononismo, que prega que você viva sua vida de acordo com mentiras que o façam se sentir bem. Entre a arma secreta inventada por Hoenniker apenas para provar que podia fazê-lo e a perseguição do estado aos praticantes do bokononismo, o campo é fértil para que vicejem todo tipo de teoria da conspiração.

Cama de Gato é um primor do absurdo, mas é também um livro incômodo na forma como muitas verdades são apresentadas para reflexão. Publicado em 63, não é difícil enxergar a crise dos mísseis em Cuba, ocorrida em 62, como um ponto de partida para o enredo. E, embora haja uma miríade de referências à corrida armamentista entre EUA e URSS e o risco da guerra nuclear, não acho que se trate de uma obra datada.

Vonnegut nos apresenta aqui cientistas que são indiferentes à ética ou à forma como suas invenções são utilizadas; avanços na tecnologia que sequer podemos compreender as reais consequências por trás deles. Religião e Estado têm um pacto para melhor controlar o povo. De forma tola e arrogante, a humanidade caminha rumo à destruição, dividindo-se entre profunda falta de empatia, empáfia irritante e misticismo picareta. Destino manifesto, livre-arbítrio, nacionalismo, preconceito, capitalismo selvagem, tudo se mistura de forma frenética, como é o estilo do autor. Não lhe parecem manchetes familiares do noticiário do dia?

Em capítulos curtos, rápidos e pingando de sarcasmo e humor negro, Vonnegut nos dá um vislumbre de um possível fim do mundo. Que tal fim ainda pareça crível é tanto seu mérito como prova de que não aprendemos com nossos erros.

Nota:
(de 1 a 5, sendo: 1 – Não Gostei; 2 – Mais ou Menos; 3 – Gostei; 4 – Gostei muito; 5 – Excelente)

Ficha Bibliográfica

Título: Cama de Gato
Autor: Kurt Vonnegut
Tradução: Livia Koeppl
Editora: Aleph
Ano: 2017

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