24 de janeiro de 2018

Tradução - Manual de Instruções


Muito tempo atrás, descobri Ursula Le Guin lendo A Mão Esquerda da Escuridão. Até hoje não sei se consegui digerir de todo aquele livro e às vezes me pego refletindo sobre a forma como ela construiu gênero e sociedade nessa história. Cheguei a ler o primeiro volume de sua clássica série Contos de Terramar, mas sempre tive a impressão de que não li esse livro na época certa - e preferi a adaptação da Ghibli também. Mais tarde, depois seus ensaios - já tinha inclusive traduzido aqui para o blog o excelente Por que os Americanos têm medo de dragões? Ano passado, me caiu em mãos uma de suas coletâneas de ensaios - Words are My Matter: Writings About Life and Book - e fiquei à época querendo traduzir algum dos artigos aqui para o blog...

Questões de tempo e outras prioridades terminaram me fazendo esquecer de falar dessa leitura por aqui. Tendo acordado hoje, contudo, com a notícia da morte da escritora, aos 88 anos anos, não poderia deixar de lamentar a perda de uma das mais importantes autoras contemporâneas, alguém que superou o preconceito da crítica - que costuma achar que ficção científica e outras literaturas de gênero não são válidas como obras literárias - e influenciou dezenas de outros autores expoentes. Assim, finalmente me sentei para traduzir um dos ensaios que achei mais interessante daquele livro (que deu inclusive o mote para o título).

Creio que compartilhar as palavras dela sejam, ao final das contas, a melhor homenagem que eu poderia fazer. Como de hábito, aviso: não sou uma tradutora, tomei algumas liberdades para tentar traduzir da forma mais fiel à essência do que interpretei do texto. Espero ter conseguido. E sem mais delongas, fiquem com a tradução...

O Manual de Instruções, por Ursula K. LeGuin

(Palestra dada em uma reunião do Oregon Literary Arts em 2002)

Um poeta foi indicado embaixador. Um dramaturgo foi eleito presidente. Trabalhadores da construção se enfileiram junto aos administradores de escritório para comprar um novo romance. Adultos procuram guias morais e desafios intelectuais em estórias sobre macacos guerreiros, gigantes de um olho só e cavaleiros malucos que lutam contra moinhos. A alfabetização é considerada um começo, não um fim.

... bem, talvez em algum outro país, mas não neste. Na América, a imaginação é geralmente vista como algo que pode ser útil quando a TV não está funcionando. Poesia e peças de teatro não têm qualquer relação com política na prática. Romances são para estudantes, donas de casa, e outras pessoas que não trabalham. Fantasia é para crianças e pessoas primitivas. A alfabetização é para que você seja capaz de ler o manual de instruções. Eu penso que a imaginação seja a mais útil ferramenta que a humanidade possui. Ela supera os polegares opositores. Posso imaginar viver sem meus polegares, mas não sem minha imaginação.

Escuto vozes concordando comigo. "Sim, sim!", eles exclamam. "A imaginação criativa é uma tremenda vantagem nos negócios. Nós valorizamos criatividades, nós a premiamos!". No mercado, a palavra criatividade passou a significar a geração de ideias aplicáveis a estratégias práticas para gerar mais lucros. Essa redução já vem de tanto tempo que a palavra criativo dificilmente pode ser mais degradada. Eu não a uso mais, cedendo-a a capitalistas e acadêmicos para abusá-la como quiserem. Mas eles não podem ter a imaginação.

Imaginação não é um meio para produzir dinheiro. Não tem qualquer lugar no vocábulário do lucro. Não é uma arma, ainda que todas as armas se originem da imaginação, e seu uso, ou não-uso, dela também dependem, como todas as ferramentas e seus usos. A imaginação é uma ferramenta essencial da mente, uma forma fundamental de pensar, um meio indispensável pelo qual se tornar e permanecer humano.

Nós temos de aprender a usá-la, e como usá-la, como qualquer outra ferramenta. Crianças têm a imaginação para começar, assim como elas têm um corpo, intelecto, a capacidade para linguagem: coias essenciais à sua humanidade, coisas que elas precisam aprender a utilizar, e como utilizar bem. Tal aprendizado, treinamento e prática deveriam começar na infância e continuar ao longo de toda a vida. Jovens seres humanos precisam exercitar a imaginação assim como eles precisam exercitar todas as habilidades básicas da vida, corporais e mentais: para crescer, para ser saudável, por competência, por alegria. Essa necessidade continua enquanto a mente estiver viva.

Quando crianças são ensinadas a escutar e aprender a literatura central de seu povo, ou, em culturas letradas, a ler e compreendê-la, sua imaginação está recebendo uma grande parte do exercício de que precisa.

Nada mais faz tanto por tantas pessoas, nem mesmo outras artes. Nós somos uma espécie de palavras. Palavras são as asas em que tanto o intelecto quanto a imaginação voam. Música, dança, artes visuais, ofícios de todos os tipos, todos são centrais para o desenvolvimento humano e seu bem estar, e nenhuma arte ou habilidade é uma aprendizagem inútil; mas para treinar a mente para decolar de realidade imediata e retornar com nova compreensão e força, nada equivale a poemas e estórias.

Através das estórias, cada cultura define a si mesma e ensina suas crianças como serem pessoas e membros de seu povo - Hmong, !Kung, Hopi, Quechua, Francês, Californiano... Nós somos aqueles que chegaram ao Quarto Mundo... Somos a nação de Joana... Nós somos os filhos do Sol... Nós viemos do mar... Nós somos o povo que vive no centro do mundo.

Um povo que não vive no centro do mundo, como definido e descrito por poetas e contadores de histórias, está mal. O centro do mundo é onde você vive de forma plena, onde você sabe como as coisas são feitas, como as coisas são feitas de forma certa, feitas bem.

Uma criança que não sabe onde o centro é - onde a casa está, o que um Lar é - essa criança terá problemas.

O Lar não é Mãe e Pai e Irmã e Companheiro. Lar não é onde eles têm de deixar você entrar. Não é um lugar de forma alguma. Lar é imaginário.

O Lar, imaginado, vem a ser. É real, mais real que qualquer outro lugar, mas você não pode alcancá-lo a não ser que seu povo mostre como imaginá-lo - quem quer que seja o seu povo. Eles não precisam ser seus parentes. Eles talvez jamais tenham falado sua língua. Eles podem estar mortos a milhares de anos. Eles podem não ser nada além de palavras impressas no papel, o fantasma de vozes, sombras de mentes. Mas eles podem guiá-lo para casa. Eles são sua comunidade humana.

Todos nós temos de aprender como inventar nossas vidas, construí-las, imagná-las. Precisamos que nos ensinem essas habilidades; precisamos de guias para nos mostrar como. Sem essas habilidades, nossas vidas são inventadas por outras pessoas.

Seres humanos sempre se juntaram em grupos para imaginar como melhor viver e ajudar o outro a continuar com o plano. A função essencial da comunidade humana é chegar a algum acordo sobre o que precisamos, o que a vida deve ser, o que queremos que nossas crianças aprendam, e então colaborar em aprender e ensinar de forma que nós, e eles, possam seguir o caminho que acreditamos ser o correto.

Pequenas comunidades com tradições fortes são frequentemente claras acerca do caminho que querem seguir, e boas em ensinar isso. Mas a tradição pode cristalizar a imaginação ao ponto de fossilizá-la como dogma e proibindo novas ideias. Comunidades maiores, como cidades, abrem espaço para que as pessoas imaginem alternativas, aprendam com pessoas de diferentes tradições e inventem suas próprias maneiras de viver.

Enquanto proliferam alternativas, contudo, aqueles que tomam a responsabilidade de ensinar encontram pouco consenso moral e social sobre o que eles deveriam estar ensinando - o que precisamos, o que a vida deveria ser. Em nosso tempo de enormes populações expostas continuamente a vozes, imagens e palavras reproduzidas, usadas para lucro comercial e político, há tantas pessoas que querem e podem nos inventar, nos possuir, moldar e controlar através da sedutora e poderia mídia. É muito pedir a uma criança que encontre um caminho através disso tudo sozinha.

Sozinho, ninguém pode realmente fazer muito.

O que uma criança precisa, o que nós precisamos, é encontrar algumas outras pessoas que tenham imaginado a vida em linhas que façam sentido para nós e nos permite certa liberdade, e ouvi-las. Não ouvi-las passivamente, mas ouvi-las.

Ouvir é um ato de comunidade, que demanda espaço, tempo e silêncio.

Ler é uma maneira de ouvir.

Ler não é tão passivo quanto ouvir ou ver. É um ato: você o faz. Você lê no seu ritmo, na sua própria velocidade, não o incessante, incoerente, tagarelado, grito apressado da mídia. Você aceita o que pode e quer aceitar, não o que eles empurram pra você rápido e difícil e aos berros de forma a confundir e controlar você. Lendo uma história, pode ser que te contem algo, mas ninguém está tentando te vender nada. E, embora você esteja usualmente sozinho quando está lendo, você está em comunhão com outra mente. Você não está sofrendo lavagem cerebral, ou sendo cooptado ou usado; você se juntou a um ato de imaginação.

Eu não conheço qualquer razão para que nossa mídia não possa criar uma comunidade similar a da imaginação, como o teatro fez várias vezes nas sociedades do passado, mas, de forma geral, ela não está fazendo isso. Ela é tão controlada pela propaganda e pelo lucro que as melhores pessoas a trabalhar nela, os verdadeiros artistas, se eles residentem a pressão a se venderem, são afogados pela pressa infinita da novidade, pela ganância dos empresários.

Muito da literatura se mantém livre de tal cooptação, em parte porque muitos livros foram escritos por pessoas já mortas que, por definição não são gananciosas. E muitos poetas e romancistas vivos, embora seus editores possam estar rastejando abjetamente atrás de bestsellers, continuam a ser menos motivados pelo desejo do ganho do que pelo desejo de fazer o que eles provavelmente fariam por nada se pudessem dispor, o que é, praticar sua arte - fazer algo bem, fazer algo certo. A Literatura permanece, comparativa e surpreendentemente, honesta e confiável.

Livros podem não ser "livros", claro, eles podem não ser tinta e polpa de madeira, mas um piscar de eletrônicos na palma de uma mão. Incoerente e comercial, comido de vermes com pornografia, todo hype e disparates, a publicação eletrônica oferece àqueles que leem um forte novo meio de comunidade ativa. A tecnologia não é o que importa. Palavras são o que importa. O compartilhar de palavras. O ativar da imaginação através da leitura de palavras.

A razão pela qual alfabetizar é importante é que a literatura é o manual de instruções. O melhor manual que temos. O mais útil guia para o país que estamos visitando: a vida.


A Coruja


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