5 de outubro de 2011

J. R. R. Tolkien – Parte V: O Senhor da Fantasia

O sinal de uma boa história de fadas, do tipo mais elevado ou mais completo, é que, não importa quão desvairados sejam seus eventos, quão fantásticas ou terríveis as aventuras, ela pode proporcionar à criança ou ao adulto que a escuta, quando chega a “virada”, uma suspensão de fôlego, um batimento e ânimo no coração, próximos às lágrimas (ou de fato acompanhados por elas), tão penetrantes como aqueles dados por qualquer forma de arte literária, e com uma qualidade peculiar.

J. R. R. Tolkien – Sobre Histórias de Fadas
Já resenhei aqui no coruja alguns dos livros de Tolkien fora do ciclo da Terra-Média: O Cartas do Pai Natal, com as correspondências e ilustrações que Tolkien enviou para seus filhos pela época das festas natalinas; Tales from the Perilous Realms, que compreende os contos Roverandom, Mestre Gil de Ham, O Ferreiro de Wotton Major, A Folha de Niggle, bem como a série de poemas que compõem As Aventuras de Tom Bombadil e o ensaio Sobre Histórias de Fadas.

Algumas considerações finais, agora, devem ser feitas.

A despeito do fato de tomarmos a obra de Tolkien como o início da Fantasia como um gênero literário próprio, não necessariamente ligado à infância e relegado ao berçário (e ele faz uma severa crítica a esse ‘esquecimento’ no ensaio Sobre Histórias de Fadas), existiu Fantasia antes dele; histórias que o influenciaram e autores a quem ele pagava o tributo de sua experiência.

Há, claro, os contos clássicos fruto do folclore e da tradição oral; ciclos míticos que, de certa forma, estão relacionados e servem como pano de fundo para todas as histórias. Podemos entrever motivos como Atlântida, o Kalevala ou o Anel de Nibelungos; e mais que isso, os arquétipos do inconsciente coletivo na linguagem de Jung.

Em uma de suas cartas, ele escreve:
Entre outros trabalhos, estou tentando transformar uma das histórias — que é realmente uma história muito grande e muitíssimo trágica — em um conto um pouco na linha dos romances de Morris com pedaços de poesia no meio.
Aqui Tolkien nos fala de William Morris, e quem leu os seus The Well at the World’s End e The Wood Beyond the World pode reconhecer nomes e temas, de Gandalf aos cavaleiros de Rohan.

Os orcs, por sua vez, têm origem confessa nos goblins de George MacDonald no clássico A Princesa e o Goblin. Disse Tolkien que tais criaturas “Não são baseados em experiências diretas minhas; mas devo, suponho, boa parte à tradição goblin, especialmente conforme aparece em George MacDonald, exceto pelos pés macios nos quais nunca acreditei.”.

Faz algum tempo que encasquetei com a idéia de ler os grandes mestres da fantasia antes do caro tio John entrar em cena e desde que comecei tal projeto, pude me deparar com muitas cenas familiares, muitos pequenos conflitos que são antecedentes das cenas grandiosas de O Senhor dos Anéis.

Sinto muito que tais autores tenham caído na obscuridade num tempo em que tais histórias de fantasia eram vistas como uma literatura marginal, pouco importante. Nomes como Lorde Dunsany e Hope Mirrless deveriam ter mais destaque e deveriam ser mais lidos.

Todas essas narrativas viajam para além do mundo comum, daquilo que conhecemos, que nos é familiar, cotidiano. Ainda assim, são histórias muito humanas, que trazem em seu âmago aquilo que temos de melhor e de pior. Elas nos ensinam o caminho ao Outro Reino, um lugar de beleza e magia inenarrável – e nessa jornada, descobrimos a nós mesmos.

Tolkien passou boa parte da vida desenvolvendo suas histórias. A princípio, fazia-o quase que para si mesmo e não há muito que nos diga que ele escrevesse pensando realmente em publicar. Não até o sucesso de O Hobbit, que, sabemos, só foi parar nas mãos de um editor por coincidência.

Por muito tempo, tais histórias foram vistas inclusive pelo próprio autor como um hobby, uma excentricidade, que às vezes chegava a entrar no caminho das coisas mais sérias, atrapalhando seu trabalho e suas responsabilidades. Pelo que se depreende de suas cartas, tais devaneios também não eram lá muito bem vistos por seus pares.

Houve muitos obstáculos no caminho – e o próprio Tolkien, com sua procrastinação e perfeccionismo, não foi o menor deles. A jornada dele mesmo, como escritor, não foi menos tribulada que a de seus heróis, temperada por duas guerras e muitas perdas.

A despeito de todas as crises que vivenciou - ou talvez por causa delas - ele foi capaz de criar um épico que ecoa em cada um de nós de forma profunda. Vivemos a Terra-média muito além da imaginação - choramos, sentimos, torcemos, esperamos com o fôlego suspenso por algum milagre em momentos onde tudo o mais parece perdido. E o milagre vem, na forma mais poderosa em que poderia se apresentar: esperança.

Há muitos grandes temas tratados nas histórias que Tolkien criou: você pode passar de debates filosóficos sobre mortalidade e poder até a questão da fé e dos vínculos de amor e amizade. São várias as formas de ler O Senhor dos Anéis, muitas as aplicações que podemos fazer de seu texto; mas acredito que o maior legado que ele nos deixa é exatamente esse: a esperança - em você mesmo, em seus companheiros, no mundo.

Eis a grande mensagem daquele que é o legítimo Senhor da Fantasia.

Especial J. R. R. Tolkien
Parte I - O Ourives do Anel
Parte II - Os Primogênitos (A Primeira Era)
Parte III - Os Seguidores (A Segunda Era)
Parte IV - A Guerra do Anel (A Terceira Era)
Parte V - O Senhor da Fantasia

Resenhas
As Cartas de J. R. R. Tolkien
Cartas do Pai Natal
Tales from the Perilous Realms

Outras Fontes
Valinor
Mythopoeic Society
Tolkien Library
Tolkien Society


A Coruja


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