8 de setembro de 2010
Pelo Sol, a Lua e as Estrelas e a Maçã Dourada do Oeste
"O livre estado de Dorimare era um país muito pequeno, mas considerando que era delimitado ao sul pelo mar, e a norte e leste por montanhas, enquanto que se centro compunha-se de uma rica planície, regada por dois rios; uma variedade considerável de cenário e vegetação encontravam-se entre suas fronteiras. Na verdade, a oeste, em extremo contraste com a sobriedade pastoral da planície central, o aspecto do país tornava-se, se não tropical, ao menos distintamente exótico. E isso não era tanto de se admirar, pois além de Debatable Hills (o limite de Dorimare no oeste), estava a Terra das Fadas. Não havia, contudo, qualquer relação entre os dois países, e isso há muitos séculos."
Já faz algum tempo que estou numa espécie de “cruzada pessoal”: ler as grandes obras da ficção fantástica que datam a.T. (antes de Tolkien). O Senhor dos Anéis foi um divisor de águas no gênero e, depois dele, a própria forma como a literatura fantástica era escrita modificou-se. Contudo, ainda que Tolkien tenha sido, sem dúvida um dos maiores escritores épicos de Fantasia, ele não criou a Terra Média do nada e seu estilo presta homenagens a muitos grandes e esquecidos mestres.
Hope Mirrlees é uma desses mestres.
A biografia de Hope é um espanto à parte. Inglesa, cresceu entre a Escócia e a África do Sul. Era tradutora e poeta – sabia grego, russo, francês, espanhol e zulu, numa época em que a maioria das mulheres era simplesmente treinada para ficar em casa e ser uma esposa exemplar. Circulou entre gente como Virginia Woolf, T.S.Eliot, William Yeats, Gertrude Stein e Bertrand Russell, para ficar em apenas alguns nomes mais conhecidos.
Há uma história curiosa sobre a publicação de Lud-in-the-mist, primeiramente lançada em 1926, e reeditada em 1970 sem a autorização de Hope porque a editora, como explicava em sua introdução, não tinha conseguido descobrir se a autora estava morta ou viva, uma vez que seus esforços de encontrá-la tinham sido um fracasso. Pelas leis de direitos autorais da época, a história já estava em domínio público.
Isso se deu pelo seguinte: Hope teve como grande amiga e tutora a figura da intelectual Jane Ellen Harrison, que conheceu em Cambridge, e com quem morou entre 1913 e 1928, quando Harrison faleceu. Não se sabe se elas chegaram a ser amantes, ou se sua relação era mais como “mãe e filha” – o caso é que após a morte da tutora, Hope simplesmente desapareceu do mapa; e até sua morte, em 1978, não se sabe sequer se ela tomou conhecimento da republicação de sua obra.
Em todo caso... pesquisando sobre o livro enquanto compunha minha “lista dos livros de Fantasia a. T. que tenho de ler”, deparei-me com os mais rasgados elogios a Hope e, especificamente, a Lud-in-the-mist. Dei de cara com uma citação de Neil Gaiman em que ele caracterizava o livro assim:
Depois de uma propaganda dessas, eu não tinha muitas escolhas além de procurar o livro para ler o mais rápido possível. Fiz a encomenda e tive de esperar dois meses até que ele chegasse, mas, finalmente, deitei mãos sobre ele.The single most beautiful, solid, unearthly, and unjustifiably forgotten novel of the twentieth century. (…) It is a little golden miracle of a book, adult in the best sense, and, as the best fantasy should be, far from reassuring.
Todos os elogios que li eram mais que justos.
Começamos sendo apresentados ao país de Dorimare, e sua capital, Lud-In-The-Mist, onde mora o herói, Nathaniel Chanticleer. Nosso primeiro contato com ele é quando criança, brincando no sótão de sua venerável casa com os amigos, até encontrar uma certa flauta. Ao primeiro sopro, o instrumento solta uma Nota longa, melancólica, irreal, sobrenatural.
Essa Nota há de assombrar Nat por toda a vida.
Antes de prosseguirmos, é bom saber que Dorimare faz divisa com Faërie, a Terra das Fadas. Mas, vejam bem, não estamos falando de fadas diminutas com asinhas coloridas, mas de um mundo de seres belos, mas temíveis; capazes de grande crueldade, como também lealdade e coragem.
Podemos voltar outro dia à discussão sobre o Belo Reino... por hora, continuemos a história.
Dorimare rompeu relações com Faërie há muitos séculos; a magia foi banida e os Antigos são tão temidos que a própria palavra fada tornou-se uma obscenidade – o maior xingamento que você pode dizer por lá é chamar alguém de Filho de uma Fada (o que é no mínimo curioso, porque entendemos desde o princípio que muitas das grandes famílias de Lud têm em sua genealogia um pouco de sangue de fada...).
A Magia foi substituída pela Lei – entendiam os responsáveis pela revolução em Lud que Faërie era ilusão, e que o povo precisava da fantasia, então, se eles queriam substituir as fadas, eles precisavam de um novo instrumento de ilusão: a Lei (e essa foi uma das definições mais lúcidas do Direito que já encontrei).
Tudo bem até aí não fosse o detalhe da Fruta das Fadas. O tal fruto foi banido de Dorimare após o rompimento de relações com Faërie, não apenas pela natural desconfiança de todas as coisas mágicas que tomou conta dos dorimarites, mas também pelos próprios efeitos do fruto, que poderiam levar um homem à loucura.
Em muitos aspectos, a Fruta das Fadas lembrou-me da bebida púrpura de O Dia do Curinga. Os efeitos parecem o mesmo, ao menos: eles diminuem a razão da pessoa, tiram suas inibições e, claro, viciam.
Apesar da proibição, ou, talvez, exatamente, por causa dela, importar ilegalmente Fruta das Fadas tem sido um negócio bastante lucrativo, especialmente a se considerar que pela Lei, essa coisa de Fadas não existe e qualquer um que seja pego traficando Fruta das Fadas, para que possa ser julgado, será acusado, numa curiosa ficção legal, de contrabando de seda.
No início da história, após o prólogo em que Nathaniel escuta a Nota, ele já é um homem de certa idade (uns quarenta para cinqüenta anos, eu diria) e nada tem de heróico. Ele é o prefeito de Lud, um sujeito simples, facilmente enganado (ao menos, a princípio), mais preocupado com as aparências que qualquer outra coisa. Nat não é um herói, mas um bufão.
Mas então, dentro de sua própria casa, explode o escândalo: ele acaba por descobrir que seu próprio filho, Ranulph, comeu o fruto proibido – e daí por diante nós vamos de uma comédia farsesca, para uma trama que mistura intriga política, assassinato e, claro, Faërie.
Lud-in-the-mist é uma leitura deliciosa, para ser saboreada aos poucos. Há qualquer coisa de melódica na linguagem – houve momentos em que, como Nathaniel Chanticleer, eu tinha a impressão de ter ouvido a Nota; ou de estar diante de uma das vivas tapeçarias da sala secreta sob a Guilda.
Seu grande tema, contudo; sua força e absoluto encanto, vem da forma como concilia o mágico e o mundano, criando um mundo sem simples maniqueísmos, capaz de te surpreender a cada novo capítulo.
Minha única crítica é que eu queria que o livro fosse maior. Queria ter visto mais de Faërie, queria ter ouvido as canções do Duque Aubrey. Ou, talvez, essa tenha sido uma das grandes sacadas da Hope – deixar aos seus leitores a tarefa de imaginar o que havia além do abismo e de criar o seu próprio Belo Reino.
A Coruja
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