23 de dezembro de 2022

O Resumo da Ópera: preparem as cortinas!


Fim do ano chegou e também aquela última rodada de resenhas em que faço um apanhado das leituras do semestre que não ganharam análises mais longas, mas sobre os quais ainda quero falar.

Ensaios, crítica literária, quadrinhos, romance, releituras, há de tudo um pouco neste resumo da ópera. Preparem as cortinas, que estamos a um passo do último ato.


Tem um Livro Aqui que Você Vai Gostar, de Antonio Fagundes
Não sou do tipo que assiste novela - não por esnobismo, mas porque tenho uma tremenda dificuldade em me manter fiel a programas e ir assistir um capítulo dia após dia, por meses a fio (tenho dificuldades de me concentrar com filmes do começo ao fim, fico querendo acelerar cenas, que dirá um seriado com centenas de capítulos…) -, mas na época em que passou Bom Sucesso eu volta e meia me sentava com meus pais na sala quando eles estavam assistindo para ouvir os comentários do livreiro personagem de Antonio Fagundes.

Foi por essa razão que prestei atenção quando anunciaram esse livro e deixei-o na minha lista de “fiquei curiosa” até um dia encontrá-lo numa excelente promoção na livraria e fazer a compra por impulso.

Tem um Livro Aqui que Você vai Gostar é um título que diz tudo o que você precisa saber sobre o volume. Fagundes tem aquela prosa que se assemelha a conversa de compadres com um café quente saído da hora (talvez no alpendre da casa da fazenda de O Rei do Gado?), despretensiosa e repleta de tangentes, uma memória puxando a outra. Ele compartilha clássicos e velhos favoritos, não ficção contemporânea e calhamaços com panache, tirando da cartola recomendações que casam com uma miríade de gostos, tanto para leitores iniciantes quanto quem vive mergulhado entre páginas.

Uma boa pedida e desculpa para colocar ainda mais títulos naquela lista sisifiana de tudo o que você quer ter tempo de terminar de ler um dia…


Sobre o Autoritarismo Brasileiro, de Lilia Moritz Schwarcz
Fui atrás desse livro influenciada pelo Fagundes e pelo noticiário aterrador que tivemos por boa parte do ano. Não demorei a chegar a conclusão que Sobre o Autoritarismo Brasileiro deveria ser uma daqueles títulos obrigatórios - nas salas de aula, no debate público, em todo e qualquer lugar que se pense e reflita a nossa História como país.

Schwarcz aborda nossa jornada política desde nossa concepção como colônia portuguesa. Cada capítulo trata de um tema específico do nosso contexto social e histórico, com seus desdobramentos ao longo dos últimos cinco séculos. Escravidão e racismo, mandonismo, patrimonialismo, corrupção, desigualdade social, questões de gênero e intolerância de uma maneira geral são algumas das questões que ela aborda, com abundância de dados e números, mas sem a linguagem técnica de um livro didático, o que torna a leitura muito mais acessível (e aguda) para o leitor leigo em nossa historiografia.

É um bom ponto de partida para qualquer um que queira entender como chegamos a nossa situação atual. Talvez não agrade tanto aos especialistas, que poderiam querer um texto mais robusto (li críticas nesse sentido), mas é exatamente o recomendado para o leitor comum.


Entre o mundo e eu, de Ta-Nehisi Coates
Um dos capítulos de Read Dangerously, da Azar Nafisi, comenta questões de racismo e violência policial usando James Baldwin e Coates, e foi no embalo dela que puxei Entre o mundo e eu para a lista.

É uma leitura rápida… e incômoda. Lembrou-me muito da sensação que tive com Pequeno Manual Antirracista, da Djamila Ribeiro. É um livro que não oferece respostas simples, não apresenta heróis contra o sistema, e que te faz questionar várias coisas que pareciam bem claras de princípio, mas vão se tornando cada vez mais turvas quanto mais você pensa no assunto. Mas, bem, é exatamente isso que é racismo estrutural, algo que por vezes nem nos damos conta que está ali porque foi tão normalizado que… parece normal.

Coates compartilha numa linguagem brutal como foi crescer em comunidades negras no auge dos anos 90 nos Estados Unidos, estando sob constante ataque - a violência nas ruas, nas escolas, dos policiais, na própria família, do sistema como um todo. Escrito como uma carta ao filho, trata de sonhos, injustiça, intolerância e dos largos passos ainda necessários para construir uma sociedade sem preconceitos. É uma pílula amarga, mas esse tipo de tapa na cara é exatamente o que precisamos para repensar certas atitudes.


The Republic of Imagination, de Azar Nafisi
Tendo terminado Read Dangerously, quase imediatamente emendei com outro volume de Nafisi - afinal, a autora tem uma voz, um estilo de escrita e um padrão de pensamento que casam muito com a minha noção de literatura como ferramenta de união, empatia e resistência.

Às vezes, diante de situações insustentáveis, de risco e revolução, pode parecer que lutar por livros seja algo supérfluo. Nafisi nos lembra, contudo, que, diante do autoritarismo, da intolerância, da perseguição, são as ideias que nos sustentam, ideias que muitas vezes encontramos nesses velhos clássicos, em romances, peças de teatro, poemas, histórias que constroem a nossa identidade, que nos dão coragem para enfrentar os perigos, e esperança de que é possível mudar.

The Republic of Imagination, em específico, trata da mudança de Nafisi do Irã para os Estados Unidos, o processo de naturalização e sua investigação pessoal sobre a alma do que agora era seu novo país - uma investigação que passa por Mark Twain, Sinclair Lewis, Carson McCulleers e James Baldwin. É, por assim dizer, uma contraparte a Lendo Lolita em Teerã, que explorava o que a literatura tinha a dizer e resistir enquanto ela vivia no Irã.

Não foi uma leitura tão impactante quando Read Dangerously, talvez por ser mais dependente do conhecimento prévio que o leitor tenha das obras escolhidas para a investigação da autora. Mas oferece ideias e argumentos interessantes e me abriu o detetive para ir atrás dos autores citados.


Payback: a dívida e o lado sombrio da riqueza, de Margaret Atwood
Descobri esse aqui num dos ensaios de Burning Questions e fiquei incrivelmente curiosa. Por coincidência (ou destino, se você acredita nessas coisas), o livro estava em promoção e coloquei-no no carrinho de compras. Quando chegou aqui e vi quão curtinho era, engrenei a leitura de imediato (a caixa aberta ficou em cima da mesa até me lembrar de colocar na reciclagem…). Não, eu não me arrependo de nada!

Payback me fez pensar numa série de ensaios interconectados, já que cada capítulo consegue ser lido de forma bastante independente - nos quais Atwood explora a questão do débito tanto em nossa sociedade atual quanto sob o prisma literário e de suas memórias de infância.

Repleto de uma ironia rabugenta e mil e uma tangentes curiosas, Payback é uma leitura diferente, que consegue abordar de forma inesperada uma questão que está bem presente no nosso cotidiano: a dívida como um problema social que deriva ou se alimenta de uma construção cultural de consumo. Eu me enrolei um pouco no primeiro capítulo porque temos ideias bem pré-concebidas sobre o assunto, mas não demorou para ficar completamente absorvida na leitura. Gostei e indico para quem quer um ponto de vista diferente do padrão.


Cartas Extraordinárias, de Vários
Sou fã de leituras epistolares e já há algum tempo estava de olho nesta coletânea - o projeto do qual ele nasceu, o Letters of Note, organizado por Shaun Usher, foi uma das inspirações para Heróis de Papel, que escrevemos alguns anos atrás, eu e a Ísis, por aqui.

Não há segredos sobre o conteúdo, que fica explícito do título: trata-se de um compilado de cartas, de todos os cantos do mundo, de várias épocas, assinadas por gente famosa ou comum, em situações extremas ou cotidianas. Elas são extraordinárias não porque guardem algum segredo do universo, mas porque representam facetas de nossa humanidade, seja em contexto pessoal ou monumental.

Algumas edições temáticas foram publicadas - em português vi que estavam disponíveis um volume com cartas de amor e outra sobre maternidade, que tive oportunidade de folhear. Fiquei com a impressão que a maioria das cartas trazidas nelas são as mesmas do volume maior, então, fica o aviso. De toda forma, uma boa pedida para presentear agora no fim do ano.


O Gato que Amava Livros, de Sosuke Natsukawa
A primeira menção que vi a esse livro foi uma lista de indicações do site Book Riot de leituras que poderiam ser inspiradas pelos filmes da Ghibli. Joguei-o na minha lista de “fiquei curiosa” e não muito depois, descobri que ele tinha sido traduzido aqui no Brasil.

Em tom quase de sonho, Natsukawa conta a história do jovem Rintaro, que vive uma paralisia preocupante provocada pelo luto da perda do avô, que lhe deixou um sebo de herança. Até que, um dia, um gato falante surge em seu caminho e o leva ao desafio de vários labirintos para resgatar livros em risco.

Em alguns momentos, Rintaro me fez pensar no Pequeno Príncipe visitando planetas com personagens mergulhados em suas obsessões pessoais. Ambos tem aquele ritmo e linguagem de fábula. O centro da história aqui, contudo, é como o amor pelos livros que Rintaro herdou com a livraria o torna capaz de enfrentar os desafios que o gato lhe apresenta - desafios que estão muito próximos do que por vezes enxergamos no mercado editorial e listas de mais vendidos. É um livrinho despretensioso, que dá para ler numa sentada, ótimo para lidar com a ressaca mental que parece nos atingir em cheio no fim de ano…


Solitário e Um Pedaço de Madeira e Aço, de Chabouté
O Chabouté já tinha entrado no meu radar antes, mas foi a indicação de uma amiga artista que me fez ir atrás desses dois volumes, duas graphic novels que quase não precisam de palavras para estabelecer suas narrativas.

Um Pedaço de Madeira e Aço conta a história de um banco de praça. Sim, o banco é o protagonista aqui - ou, talvez fosse mais fácil dizer que ele é testemunha dos fatos, da vida como ela é, dos pequenos acontecimentos que vão se desenrolando diante dele. Não há nada de surreal ou grandioso, mas Chabouté consegue imprimir uma delicadeza e uma série de reflexões nessa sequência de imagens de uma maneira que realmente toca o coração.

Solitário tem alguns diálogos e muitas palavras - afinal, há um dicionário pelo meio do caminho - mas, novamente, Chabouté usa o silêncio como parte da narrativa; o silêncio de uma existência absolutamente isolada, num farol numa ilha deserta. Ali vive um homem desfigurado que nos faz lembrar a figura de Quasímodo, e que nunca conheceu outra existência além da solidão. Ele passa seus dias lendo o dicionário e imaginando histórias para as palavras com que se depara.

É apenas quando um marinheiro curioso, responsável por levar mantimentos à ilha, tenta uma forma de interação, que o mundo do nosso solitário protagonista se expande e ele se arrisca a descobri-lo. Emocionante.


Piranesi, de Susanna Clarke
Li Piranesi pela primeira vez na edição inglesa, logo que ele foi publicado, e me encantei em absoluto com a história. Reli agora, na edição brasileira, e devo dizer que numa segunda leitura, "Piranesi" não perde em nada do encantamento, da estranheza, do feitiço que lança ao leitor. Na verdade, tendo uma ideia de como as coisas se desenvolverão mais para frente, a leitura até parece mais fluida que da primeira vez (bem, esse é um livro para reler várias vezes e se admirar com a Beleza e Bondade da Casa ad infinitum).

Já tinha feito a resenha do enredo em si, quando tratei da edição em inglês, então apenas aproveito para deixar o comentário de que a Morro Branco fez um excelente trabalho de tradução. Vale a pena ter a edição brasileira, pelo conteúdo e pelo projeto gráfico (as ilustrações que aparecem entre partes, com referências labirínticas, parecem-me ser ideia da editora aqui e certamente somam a beleza do livro em si. Elas não existem na edição inglesa.)


A Memória de Babel, de Christelle Dabos
É engraçado como uma mudança de perspectiva pode fazer toda a diferença. Eu me arrastei por meses ao longo da primeira metade de Desaparecidos em Luz da Lua, cogitando até abandonar a série… mas aí Ophélie encontrou sua espinha, as coisas começaram a se desenrolar e li a segunda metade em… três dias? Por aí.

Fato é que o final do segundo livro me deixou empolgada para seguir para o volume seguinte e emendei a leitura - o que foi a melhor escolha que eu poderia ter feito, para não perder o embalo.

Três anos depois do desastre que foram seus últimos momentos no Polo, Ophélie consegue escapar de Anima e seguir atrás do paradeiro de Thorn - seguindo para a arca de Babel, onde talvez encontrará a verdade por trás da figura de Deus, e, quem sabe, alguma pista sobre seu marido.

Sozinha, responsável por seu próprio destino, sem ser tratada como criança pela família, Ophélie desabrocha de uma maneira que realmente me empolgou. Fiquei grudada no livro do começo ao fim, torcendo pela mocinha, ansiosa pelo reencontro prometido - que foi tudo o que eu esperava desses dois.

Considerando o ritmo dos dois primeiros volumes, A Memória de Babel galopa, não apenas em tudo que Ophélie é capaz de desvendar, com direito a memórias de tempos passados vislumbrados através de suas Leituras, mas no próprio relacionamento dela com Thorn. Dizer mais que isso é entregar o plot, mas termino afirmando que mal posso esperar para começar o último volume!


Dicionário das Palavras Perdidas, de Pip Williams
A premissa desse livro é espetacular: criada aos pés do pai lexicógrafo durante o hercúleo trabalho de preparação do Dicionário Oxford de língua inglesa, Esme passa a colecionar palavras e definições descartadas pelos acadêmicos - palavras que eram muitas vezes consideradas vulgares, ou provinham de exemplos de classes consideradas “inferiores” pelos especialistas (e não é surpresa que boa parte delas tivesse a ver com mulheres?).

De uma passada de olhos rápida, imediatamente lembrei de O Professor e o Louco, que conta um pouco dos bastidores do trabalho do Dicionário e pensei que me empolgaria por essa ficção histórica da mesma maneira como me empolguei com a pesquisa história de Winchester. Afinal, é um romance que se mistura com fatos reais, numa era que sempre me fascinou e que trabalha a questão feminina. Um acerto tranquilo não?

Bem, não foi bem assim… Eu tive muita dificuldade de me conectar com a protagonista, senti uma canseira por boa parte do livro e fiquei com a impressão de que ele se beneficiaria de um corte de umas cem páginas. Não sei se foi a época em que li, uma questão de cansaço mental ou se a narrativa se arrasta de fato tanto quanto foi a minha impressão. É uma pena porque eu estava preparada para adorar esse livro.


A Coruja


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2 comentários:

  1. Gostei muito quando você falou da "literatura como ferramenta de união, empatia e resistência." Isso é fantástico. Gostaria de saber mais de suas ideias sobre isso. Outra coisa, caramba, que lista maravilhosa! E que fôlego para a leitura!

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    Respostas
    1. Eu sempre acabo comentando sobre essa ideia de funções da literatura - você vai me ler tratando do assunto em um sem fim de resenhas e em ensaios mais aprofundados... acho que o "Censura e Empatia" tem as ideias mais organizadas, então, podes dar uma olhada aqui: http://owlsroof.blogspot.com.br/2017/02/censura-e-empatia-sobre-alertas-de.html

      Li vários volumes esses últimos anos de crítica literária - ou talvez mais certo seria dizer, de 'memórias' literárias, em que os autores costuram muito essa ideia de experiências de leitura abrindo o mundo para eles. E como é importante a gente ser capaz de se colocar no lugar do outro... os livros são uma das possibilidades de fazermos isso. Viajar e conhecer novas culturas, também. Se expor ao que é diferente, de uma forma geral, e tentar aprender com isso.

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Livros, viagens, filosofia de botequim e causos da carochinha: o Coruja em Teto de Zinco Quente foi criado para ser um depósito de ideias, opiniões, debates e resmungos sobre a vida, o universo e tudo o mais. Para saber mais, clique aqui.

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