29 de dezembro de 2022
O Fantasma de Cora: uma investigação de além-morte
A carruagem deixou a estação, e Francine pôde vislumbrar pela primeira vez o que era estar em uma cidade grande. A capital jamais se equipararia ao esplendor e sofisticação dos reinos continentais (ou pelo menos era o que Lady Bibi dizia), mas ainda assim era infinitas vezes mais desenvolvida que o ajuntamento de vilas, pastos e fazendas onde Francine crescera. Maravilhada, debruçou-se sobre a janelinha, incapaz de conter a empolgação.
Francine acaba de chegar a Portomar vinda do interior, armada de muitas expectativas para seu debute e do Livro de Etiqueta e Manual de Cortesia Continental para Ladies da Srta. Hartley. Não demora, contudo, para que suas fantasias com bailes, pretendentes e uma vida de liberdade inspirada na ‘carreira’ de sua tia, Lady Bibi Tulli, sejam arrastadas pela tragédia da morte de sua jovem e frágil prima, Coraline, em plena noite de núpcias - uma morte que não demora a se revelar como assassinato. Para completar, Francine passa a se ver literalmente assombrada pelo fantasma de Cora, e embarca numa investigação perigosa para desvendar o que realmente aconteceu.
Tive a oportunidade de ler o primeiro rascunho dessa obra, e contribuir de alguma forma com o trabalho da Fernanda - fui atrás do excelente Fashion Victims por causa dela -, e assim, claro, já estava propensa a gostar de O Fantasma de Cora. Mas fiquei realmente deliciada com o produto final em mãos, com as alterações que firmaram o texto, com o tanto que ele evoluiu daquele primeiro contato. Pessoalmente, foi uma experiência muito divertida ter essas duas leituras comparativas, de participar de certa maneira da feitura de um livro.
O Fantasma de Cora é um daqueles ‘mistérios confortáveis’ que, a despeito do tema de assassinatos - e um pézinho no sobrenatural - é uma leitura leve, despretensiosa, assumidamente em tom de novela de época daquelas de comédia romântica de erros, com uma mocinha (mais ou menos) ingênua e, ao mesmo tempo, voluptuosa, que conquista olhares e desejo por onde passa, mesmo sem querer. No entanto, o relacionamento mais importante da protagonista, ao longo de todo o livro, é com a prima - uma amizade que literalmente suplanta a própria morte.
Ao mesmo tempo, há correntes subterrâneas que tratam especialmente de dicotomias e desigualdades. Por baixo do humor, existe uma tensão muito sutil englobando questões como colonização, miscigenação, divisão de classes e preconceito racial. Isso é representado pelos constantes contrastes: a fazenda que Francine nasceu contra Portomar; a Ilha versus o Continente; o canal que divide a cidade entre ricos e pobres; a divisão dos andares da mansão dos Tulli (e isso me lembrou muito Downton Abbey); a própria imagem de Cora, loira e frágil, com Francine, morena e forte; ou Ícaro, acomodado no conforto de sua posição social, e Marcel, intenso e passional em sua busca por sucesso. Essa tensão dá profundidade à história - reconhecer tais desigualdades, sua própria ignorância do assunto, a injustiça e os ressentimentos que persistem na ilha formam a jornada de amadurecimento de Francine. Sua determinação, coragem e ética são inspiradoras e eu vibrei muito quando ela dá a volta por cima após vários golpes do destino e toma as rédeas da própria vida.
- É feliz com o que tem aqui, minha filha?
A garota sorriu ante o olhar daquele homem tão bom, ciente de que estava a um passo minúsculo de começar a chorar.
- Eu vou me fazer feliz, pai - ela respondeu com sinceridade, ainda que sua voz tenha saído trêmula. - E, por ora, o que tenho aqui me basta. Para começar.
O Fantasma de Cora foi uma ótima leitura para terminar o ano, com um mistério que você quebra a cabeça para resolver, mas que você termina com um sorriso no rosto e (embora tenha um final satisfatório) vibrando por uma continuação (sério, eu adoraria ver uma agência de detetives com Francine e Cora no leme, talvez ao estilo Enola Holmes. Fica a dica, Fê!).
Adoro uma dedicatória... |
Último adendo: amei, amei, amei as ilustrações da Maria Carvalho. Cora dentro da mala me deixou gargalhando pela casa. Todo o projeto gráfico do livro dá um charme a mais a história e a Gutenberg está de parabéns pelo trabalho.
Nota:
(de 1 a 5, sendo: 1 – Decepção; 2 – Mais ou Menos; 3 – Interessante; 4 – Recomendo; 5 – Merece Releitura)
Ficha Bibliográfica
Título: O Fantasma de Cora
Autor: Fernanda Castro
Ilustrações: Maria Carvalho
Editora: Gutenberg
Ano: 2022
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Como escritor, adoraria ter uma leitura tão afetiva como esta. É de fazer brilhar os olhos. Parece uma edição muito linda.
ResponderExcluirÉ realmente muito bom encontrar esses livros que parecem um abraço, e acabam se tornando um refúgio em tempos difíceis não é? Nos últimos anos, fiz muitas releituras de velhos favoritos e foi o que me impediu de perder a sanidade... E sim, eles capricharam na edição, ficou muito bonita.
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