30 de dezembro de 2022

Babel, ou a Necessidade de Violência: uma História Arcana da Revolução dos Tradutores de Oxford


Ele sentiu uma dor aguda no peito enquanto Cantão desaparecia no horizonte, e então um vazio posto em carne viva, como se um gancho tivesse arrancado seu coração de seu corpo. Não havia registrado até agora que ele não pisaria em sua terra natal novamente por muitos anos, se é que voltaria. Ele não tinha certeza do que fazer com esse fato. A palavra perda era inadequada. A perda significava apenas uma falta, significava que algo estava ausente, mas não abrangia a totalidade dessa separação, esse desancorar aterrorizante de tudo o que ele já havia conhecido.

Babel: an Arcane History apareceu em uma série de listas de melhores livros desse ano, ganhou o prêmio de ficção especulativa da Barnes & Noble e foi também um dos nomeados para melhor fantasia do Prêmio Goodreads Choice. Normalmente, fico com um pouco de pé atrás com unanimidades desse tipo; mas a Kuang estava na minha lista por já ter sido indicada como autora de uma das melhores fantasias do século (a trilogia A Guerra da Papoula). Eu ainda não a li, porque tenho relutado muito para iniciar séries, mas Babel era um volume único e ainda tinha algo a ver com linguagem e interpretação pelo que percebi da sinopse. Como eu poderia resistir?

Esse pequeno tijolo de mais de quinhentas páginas acompanha a história de Robin Swift - ou, pelo menos, esse é o nome que ele escolhe para si - um garoto chinês sobrevivente de uma epidemia de cólera que é salvo por um professor inglês e é levado para o coração do Império Britânico para estudar e fazer parte de Babel, um instituto de pesquisas linguísticas e tradução, que também está no coração do trabalho com prata - um sistema de magia que mistura algo de alquimia e semiótica e é a razão do poder da Inglaterra.

Babel é uma história pesada em muitos sentidos. Primeiro, é um livro muito longo, que mistura ficção e não ficção, com aulas sobre línguas, o processo de tradução, o que se perde de um idioma para outro quando você verte algo de forma literal e não busca o sentido das coisas (ou vice-versa). Não é o tipo de leitura que eu recomendaria para todo mundo, pelo simples fato de estar entre gêneros e a mistura que ele faz não é do tipo que vai atender a todos os gostos. Minhas partes favoritas do livro são justamente aquelas em que Robin e companhia estudam, debatem, pensam a linguagem - afinal eu tanto trabalho com hermenêutica (no caso, do tipo jurídica) quanto me interesso pelo assunto como leitora (Umberto Eco é a razão de tudo). Mas essas não são partes para quem todo mundo terá paciência, reconheço isso.

Pesado também nos temas que trabalha. Subordinado ao professor Lovell - seu ‘salvador’ - Robin passa por uma infância de muito estudo, e de muito abuso também. Abuso físico (há uma cena em que Lovell disciplina Robin que é de uma violência de revirar o estômago) e psicológico, que passa tanto pelo mistério de seu nascimento, sua relação com Lovell, sua dependência financeira, e o preconceito racial. O eurocentrismo que Lovell lhe ensina com os comentários rasteiros de estereótipos chineses faz com que Robin sempre se enxergue numa posição de não pertencimento e inferioridade.

Por um breve instante, a chegada a Babel - a importância real que seu estudo e trabalho têm para o instituto, a descoberta da amizade com o grupo de colegas com que se inicia em Oxford - lhe dá a ilusão de ter encontrado seu lugar. Mas essa é uma ilusão que não demora a ser estilhaçada (não dura nem uma semana, na verdade) e, ainda que Robin encontre acolhimento entre seus pares, tanto na Universidade quanto com os colegas - Ramiz, Victoire e Letitia -, ele nunca se esquecerá de que é um estrangeiro na Inglaterra.

Seus três companheiros de estudos trazem também suas próprias bagagens, considerando o fato de Ramiz ser indiano muçulmano, Letitia e Victoire serem mulheres numa sociedade extramente machista, e Victoire negra, refugiada da Revolução Haitiana. Preconceito racial, religioso, misoginia, escravidão - entre os quatro, há experiência de sobra com todo tipo de violência, temperada apenas pelo fato de que eles são geniais em suas áreas de conhecimento e Babel precisa deles.

A aparente utopia de Babel, contudo, tem outra faceta: a do imperialismo e da colonização. O instituto serve à Coroa; seus trabalhos de tradução e linguagem são parte de um sistema de submissão, quer seja pelas armas, ou pelo comércio. Com a Inglaterra às vésperas de avançar sobre a China (a Primeira Guerra do Ópio está bem ali, à vista), Robin basicamente está usando de sua cultura e idioma para tornar seu próprio opressor praticamente invencível.

Há, no meio do caminho, contudo, uma sociedade secreta que tenta combater esse poder - e Robin se descobre parte dela sem que tenha nem tempo para refletir muito sobre o assunto. Não que haja muito para refletir, considerando a identidade de Griffin e todos os sentimentos do nosso protagonista sobre seu lugar no mundo.

E aí temos a Revolta dos Tradutores, que aparece logo no subtítulo. Babel é o tipo de livro que você olha para a capa e já consegue imaginar o que acontecerá no final; mas o texto em si prenuncia a todo instante o que está por vir. Se eu já desconfiava, quando Robin se senta para sua primeira aula, tive absoluta certeza que a coisa toda terminaria em tragédia. Afinal, o que pode fazer um punhado de estudantes e acadêmicos contra um Império?

É uma pílula amarga para se engolir, e coloriu minha leitura até o fim. O que é curioso, porque estamos aqui diante de uma História Alternativa, em que a introdução do elemento fantástico - a magia que se encontra no transladar de uma língua para a outra e que se imprime em barras de prata - poderia ter sido usada para mudar completamente os rumos dos fatos históricos que conhecemos.

Confesso que ainda não consegui chegar a uma conclusão sobre isso; se aplaudo o ceticismo impresso nesse final e o considero corajoso em não seguir uma resolução típica do gênero; ou se me irrito com a ideia de que, mesmo tendo os meios para se defender, os países que foram colonizados na vida real não tenham qualquer chance também nas páginas do romance. Uma questão para continuar refletindo ainda por um tempo, enquanto termino de digerir o livro.

Dito tudo isso, Babel é uma leitura densa, rica nos questionamentos e debates que nos traz à mente, e que desafia classificações e gêneros. Não é um livro fácil, talvez dê para se perder em algumas das dissertações que costuram os momentos de ação, e é bem possível que você chegue ao final com o coração partido - mas é uma experiência pela qual vale persistir.

Nota:
(de 1 a 5, sendo: 1 – Decepção; 2 – Mais ou Menos; 3 – Interessante; 4 – Recomendo; 5 – Merece Releitura)

Ficha Bibliográfica

Título: Babel, Or the Necessity of Violence: An Arcane History of The Oxford Translators' Revolution
Autor: R. F. Kuang
Editora: HarperVoyager
Ano: 2022

Onde Comprar

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A Coruja


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2 comentários:

  1. Fiquei muito tentado a buscar esse livro. Eu amo livros de fantasia e também narrativas históricas e este livro parece que tem dos dois. Eu também amei os dois livros do Umberto Eco que li e talvez este livro me fascine tanto quanto os livros do Eco. Entendo a sua relutância com as unanimidades.

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    Respostas
    1. Parece que a Intrínseca vai trazer esse livro pra cá agora em 2023. É uma boa para colocar o livro na lista!

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