4 de julho de 2022

Burning Questions: as questões cruciais de Margaret Atwood


"Com tantos dispostos a morrer em seu nome, por que os cidadãos de muitos países ocidentais estão dispostos a abrir mão de suas liberdades duramente conquistadas sem dar um pio? Geralmente é medo. E o medo pode vir de várias formas: às vezes se resume ao medo de não ter um salário no fim do mês. Desde que os trens funcionem no horário e você mesmo esteja empregado, por que fazer tanto barulho se algumas pessoas aqui e ali estão sendo penduradas pelos polegares? E quando a tortura vai se tornando comum, um medo de outro tipo se instala. Você pode proteger seus polegares apenas ficando abaixo da superfície do lago dos sapos: não levante a cabeça ou coaxe muito alto, e garantem a você, contanto que você não faça nada "errado" - e errado aqui é um conceito em constante mudança -, nada de ruim lhe acontecerá. Até que acontece. E como a imprensa livre já terá sido suprimida, e como qualquer judiciário independente já terá sido desmantelado, e como quaisquer escritores, cantores e artistas independentes já terão sido esmagados, não restará ninguém para defendê-lo."

Sendo, como ela mesma reconhece num dos escritos desta coletânea, um ícone ("uma vez que você é um ícone, você está praticamente morto, e tudo o que tem a fazer é ficar parado nos parques, transformando-se em bronze enquanto pombos e outros se empoleiram em seus ombros e defecam em sua cabeça"), o novo volume de ensaios de Margaret Atwood - reunindo peças de 2004 a 2021 - era um dos lançamentos mais esperados para 2022. E, embora eu não tenha lido tanto da autora quanto gostaria, também me deixei levar pela mística e coloquei Burning Questions na minha lista de prioridades para o ano.

O título revela muito do conteúdo apresentado - ao longo de quase duas décadas, que viram o ataque às Torres Gêmeas, os anos Obama e a Era Trump, o movimento #MeToo e a pandemia de Covid-19, Atwood escreve sobre as questões cruciais do nosso tempo: desigualdade social, intolerância, feminismo, liberdade de expressão, mudanças climáticas, ameaças à democracia.

Burning Questions faz parte de um gênero que gosto muito: novelistas trazendo seu estilo para os ensaios, deixando por um momento o papel de criadores de narrativas para o de observadores da realidade. Gosto particularmente dos autores que, nesse espírito, tratam do papel da arte como ferramenta de transformação, inclusive num contexto político. Atwood o faz aqui com maestria, em ensaios, artigos, palestras, resenhas escritos com humor, fina ironia, mas também aguda sensibilidade.

Há várias peças sobre seu processo de escrita, as referências e impactos de suas obras, e das adaptações feitas em cima de seus livros. Para quem já leu seus romances, esses ensaios trazem uma camada adicional de contexto e interpretação que são muito interessantes. As resenhas também são excelentes e me fizeram colocar vários outros na lista de futuras leituras - a bióloga marinha Rachel Carson, a nobel Alice Munro, o crítico Lewis Hyde (esse último fui atrás de comprar A Dádiva antes mesmo de terminar o texto que falava dele). Os textos mais pessoais, como os que tratam da doença e morte do marido de Atwood, tocam sem ser melodramáticos.

"Em tempos de extremos, os extremistas vencem. Sua ideologia se torna uma religião, qualquer um que não se submeta a seus pontos de vista é visto como um apóstata, um herege ou um traidor, e os moderados no centro são aniquilados. Escritores de ficção são particularmente suspeitos porque escrevem sobre seres humanos, e as pessoas são moralmente ambíguas. O objetivo da ideologia é eliminar a ambiguidade."

É uma escolha editorial interessante não seguir uma única linha temática, preferindo a organização cronológica. Mas, pessoalmente, gosto da variedade de assuntos que Burning Questions apresenta. Não é uma coletânea para ler de uma sentada só, mas para folhear a esmo, escolher uma parada que te interesse e se perder nas palavras. É um daqueles volumes que vale a pena revisitar quando uma conexão surge em nossa mente ao ver uma notícia ou ler um romance (incluindo os da própria Atwood) - um perfeito título para manter a cabeceira.

Nota:
(de 1 a 5, sendo: 1 – Decepção; 2 – Mais ou Menos; 3 – Interessante; 4 – Recomendo; 5 – Merece Releitura)

Ficha Bibliográfica

Título: Burning Questions: Essays and Occasional Pieces, 2004 to 2021
Autor: Margaret Atwood
Editora: Doubleday
Ano: 2022

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