7 de outubro de 2020

Os Infinitos Corredores e Significados de Piranesi


"Houve um tempo em que homens e mulheres eram capazes de se transformar em águias e voar distâncias imensas. Eles comungaram com rios e montanhas, e receberam a sabedoria deles. Eles sentiram o giro das estrelas dentro de suas próprias mentes. Meus contemporâneos não entenderam isso. Eles estavam enamorados pela ideia de progresso e acreditavam que tudo o que era novo seria superior ao antigo. Como se mérito funcionasse em torno de cronologia! Mas me pareceu que a sabedoria dos antigos não poderia simplesmente ter desaparecido. Nada simplesmente desaparece. Isso não é realmente possível."

Esse era o livro para o qual eu mais tinha expectativas esse ano. Comprei-o em pré-venda em fevereiro, sete meses antes do lançamento, numa edição especial da Waterstones que vinha autografada pela autora e esperei ainda mais um mês até os correios entregarem o bendito: quase uma gestação. Mas, bem, dificilmente terei chance de encontrar a Susanna Clarke por aí, e ela é uma das mais importantes figuras do meu panteão particular de autores.

Jonathan Strange e Mr. Norrell é um dos meus livros favoritos da vida, uma mistura de alta fantasia com romance dos tempos da regência, repleto de figuras históricas reais, um mundo inteiro criado entre notas de rodapé, romance, aventura, guerras napoleônicas, mitologia britânica, algo de arturiano e algo de austeniano num calhamaço de mais de oitocentas páginas. Destarte, não é de se surpreender que Piranesi aparecesse em tão alta prioridade na minha lista. Assim é que não me arrependo de nada: a edição especial que comprei ainda veio com um capítulo extra e a beleza do volume valeu cada centavo pago nele.

Por essas curiosas coincidências do destino (lendo Manguel, claro, as referências deste homem são tantas que a gente até se perde), descobri bem antes de recebê-lo que o título do novo livro da Clarke tinha a ver com um personagem real: o famoso desenhista e arquiteto italiano Giovanni Battista Piranesi, conhecido especialmente por uma série de gravuras publicadas inicialmente em 1750, chamada Carceri d'invenzione que, como fica claro do título, retratam prisões imaginárias. Não tinha a menor ideia se essa informação era de alguma maneira importante para a interpretação da história, mas guardei-a e continuei a esperar o livro.
Uma das gravuras de Giovanni Piranesi

O romance de Clarke é narrador em formato de diários por Piranesi, uma espécie de cientista num mundo que é uma Casa e um Labirinto, contendo céu e mares; de corredores infinitos e salões repletos de estátuas gigantescas. Piranesi não tem uma memória exata do início de sua existência; seu único companheiro humano é o Outro, com quem se encontra esporadicamente em função de seus estudos e explorações da Casa. As sondagens de Piranesi, contudo, fazem com que ele descubra indícios de mais um humano e, aos poucos, ele vai encontrando pistas sobre o grande mistério por trás de sua existência e da natureza do mundo em que se encontra.

É difícil explicar exatamente o enredo do romance sem entregar tudo o que faz desse livro uma obra tão fascinante. Afinal, é o mistério, as pistas que ao pouco vão se revelando que nos prendem à história. No final, de fato, entendi que não é uma coincidência o título fazer eco ao desenhista italiano: o Piranesi de Clarke é um prisioneiro num magnífico e surreal labirinto que bem poderia figurar entre as famosas gravuras e a escolha do nome tem um tom de cruel ironia. Do Mito da Caverna ao Minotauro de Minos, de teorias da conspiração e políticas acadêmicas, Clarke costura um suspense que é tanto mais efetivo pela escolha da narrativa epistolar.

Há algo de familiar no mundo de Piranesi e não falo isso apenas do ponto de vista das referências que consegui perceber. É algo na Casa, com suas estátuas, suas marés, seus pássaros e mistérios; um território longínquo coberto pelas neblinas de um sonho, algo de que nos lembramos vagamente ao acordar - ou como sombras na caverna, para usar o mito platônico. Um clima onírico, que parece colocar o próprio leitor sob um feitiço. Assombroso, vertiginoso, terrivelmente belo; as imagens que Clarke faz emergir de suas páginas em nossa imaginação são algo hipnotizante.

É uma familiaridade que nasce da ideia do labirinto, mas também da miríade de possibilidades de construção de significado que a narrativa oferece. Piranesi é um prato cheio para semióticos - a determinada altura comecei a pensar no conceito de ‘obra aberta’ do Eco, em que o intérprete-leitor participa ativamente da construção final do objeto artístico - e cada um pode usar seus amplos espaços e metáforas para enxergar sua própria significação.

A prosa de Clarke é enganadoramente simples e seu protagonista-narrador parece, ele mesmo, um personagem simplório. Mas há uma mina de significados até no uso de maiúsculas, na forma como conceitos filosóficos complexos estão por baixo da admiração que Piranesi tem pelo mundo da Casa, sua compreensão matemática das marés. Num nível superficial, é uma história sobre outros mundos, realidade, acadêmicos obcecados, traições e busca por conhecimento. Há um mistério a ser desvendado e saber quem é o narrador e como ele chegou à Casa faz parte dessa jornada.

Mas há outras possibilidades, outros níveis de leitura. A realidade de confinamento de Piranesi faz lembrar nossa própria experiência de quarentena, os desafios que descobrimos nas semanas que permanecemos trancados - não parece tão a propósito ele ter sido publicado em meio ao caos que estamos vivendo? Quem conhece a biografia da autora, pode ainda fazer a conexão com a doença que a deixou confinada em casa pela última década e meia. Construção de identidade e linguagem, personalidade e memória, cultura e sociedade… posso pensar em várias maneiras de utilizar o mundo criado no livro para explorar todas essas análises. Ele está aberto a receber tantos significados quantos o leitor conseguir imaginar.

Além da narrativa envolvente e multiplicidade de interpretações possíveis, as imagens com que Clarke nos apresenta esse mundo são simplesmente belas. Mais de uma vez eu parei de ler para fechar os olhos e me perder pelos cenários conjurados em suas palavras. A Casa não é um lugar onde eu gostaria de me perder, mas penso que faria a viagem se me fosse possível encontrá-la. Afinal, ela é muito mais que um Labirinto: é um universo para onde deslizam as ideias.

No final das contas, o que posso dizer sobre Piranesi? Primeiro, que minhas expectativas foram destroçadas, pelo simples fato de que ele é muito, muito diferente de Jonathan Strange & Mr. Norrell. Isso é ruim? Não, de forma alguma: a verdade é que ao fugir do que eu esperava, Clarke me deu acesso a um universo extraordinário e surpreendente. Eu não consegui prever nada do que ia acontecer, mantendo-me em estado de suspense por toda a narrativa. Considerando que às vezes tenho impressão de estar sempre relendo as mesmas histórias com nomes diferentes, considero esse um efeito notável.

Ela superou tudo o que eu podia esperar simplesmente por desafiar minhas expectativas. Felizmente, já foi anunciada a tradução pela Morro Branco para ano que vem: mais gente poderá descobrir esse universo. Piranesi é um daqueles livros para o qual sei que vou retornar, e que passarei muitas releituras descobrindo detalhes que não notara antes. É um livro de sutilezas, de detalhes, de mil e uma reflexões. Vai para a lista de favoritos, sem dúvida.

Nota:
(de 1 a 5, sendo: 1 – Não Gostei; 2 – Mais ou Menos; 3 – Gostei; 4 – Gostei muito; 5 – Excelente)

Ficha Bibliográfica

Título: Piranesi
Autor: Susanna Clarke
Editora: Bloomsbury
Ano: 2020

Onde Comprar

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A Coruja


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2 comentários:

  1. Acabei de terminar a leitura. Susanna Clarke é um tesouro.

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    1. De fato! O estilo dela, a forma como ela constrói uma narrativa, as ideias que ela estrutura... Ao mesmo tempo em que entendo a necessidade de tempo para uma produção de tanta qualidade, desejava que ela fosse uma daquelas autoras prolíficas, que volta e meia lança livro novo - queria ter muito mais dela para ler...

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