1 de agosto de 2022

O Infinito em um Junco: a invenção dos livros no mundo antigo


Cresci, mas continuo mantendo uma relação muito narcisista com os livros. Quando um relato me invade, quando sou impregnada por sua chuva de palavras, quando entendo de forma quase dolorosa o que ele conta, quando tenho certeza—íntima, solitária—de que aquele autor mudou minha vida, volto a acreditar que eu, especificamente eu, sou a leitora que esse livro estava procurando. Nunca perguntei se alguém sente algo parecido. No meu caso, tudo remonta ao país da infância, e acho que há um motivo essencial: meu primeiro contato com a literatura foi em forma de leitura em voz alta; em forma de encruzilhada em que confluem todos os tempos—o presente da escrita e o passado da oralidade; de um pequeno teatro com um só espectador, de citação fiel e de prece libertadora. Se alguém lê para você, é porque deseja o seu prazer; trata-se de um ato de amor e um armistício em meio aos embates da vida. Enquanto você escuta a história, com uma atenção sonhadora, o narrador e o livro se fundem numa única presença, numa única voz.

Não tinha ouvido falar desse livro antes dele aparecer em pré-venda, mas assim que bati o olho, a poeticidade do título me chamou a atenção. E o subtítulo também, claro, afinal, se tenho uma fraqueza bem conhecida, são livros que falam de livros. Assim é que coloquei O Infinito em um Junco na minha lista de “fiquei curiosa” e esperei pela oportunidade de folheá-lo e assim determinar seu nível de prioridade de aquisição.

Não precisei de muitas páginas para perceber que a obra de Vallejo se encaixava em várias das minhas preferências. É, como já dito, um livro sobre livros; especificamente, sobre a evolução do design dos livros e da escrita - das tabuletas de argila e caracteres cuneiformes, passando por papiros e hieróglifos, pergaminhos, alfabeto fenício, inclusão das vogais e, enfim chegando aos códices encadernados, num formato que usamos até hoje. É também uma amálgama de diversos ensaios sobre bibliotecas, literatura e o papel do aprendizado e ensino ao longo dos séculos, com memórias pessoais, numa espiral de digressões que me fez pensar muito nos debates do clube do livro de que participo.

Isso porque no clube - que já tem mais de uma década de funcionamento - costumamos usar as leituras como trampolim para outros debates e tangentes diversas que, num primeiro momento, podem parecer ter nada a ver com o título da vez. Foi assim que chegamos de 20.000 Léguas Submarinas para atentados terroristas e colonialismo; Robinson Crusoé para direitos humanos e relativismo cultural e Um Estudo em Vermelho para definições de justiça e vingança e o papel do Estado nesse embróglio.

Vallejo faz esse mesmo tipo de encadeamento de ideias, saindo de um fato/dado histórico para referências que, podem parecer não ter nada a ver com o assunto, mas fazem todo o sentido quando você reflete mais um pouco sobre suas palavras. Algumas críticas que li antes de pegar o livro torciam o nariz para esses desvios, em especial aqueles que envolviam reminiscências da autora, mas eu gosto dessa forma de contar histórias, dessas narrativas da qual rebentam outras mais, dessa mistura de macro e micro-história, do universal ao pessoal e vice-versa.

Nossa pele é uma grande página em branco; o corpo, um livro. O tempo vai escrevendo pouco a pouco sua história no rosto, nos braços, no ventre, no sexo, nas pernas. Assim que chegamos ao mundo, imprimem um grande “O” em nossa barriga, o umbigo. Depois, outras letras vão aparecendo lentamente. As linhas da mão. As sardas, como pontos finais. Os traços que os médicos deixam quando abrem a carne e depois costuram. Com o passar dos anos, as cicatrizes, as rugas, as manchas e as ramificações das varizes desenham as sílabas que narram uma vida.

O Infinito em um Junco se divide, ostensivamente, em duas partes culturais: gregos e romanos. Ela vai e vem, contudo, entre várias culturas, tanto ocidentais quanto orientais, e não tem problemas de pular entre Antiguidade e idade contemporânea - tudo isso usando a Biblioteca de Alexandria e Homero como pontos de partida, chegando até Umberto Eco e Fahrenheit 451. Há muita informação preciosa, curiosidades fascinantes e uma paixão pulsante pelo mundo literário em cada novo tópico tecido nessa bela colcha histórica.

As digressões de Vallejo são às vezes imprevisíveis (de tatuagens a cicatrizes! Fiquei uns bons minutos digerindo essa imagem) e, por isso mesmo, deliciosas. O estilo dela me lembrou demais o Manguel - leitores que tenham se apaixonado por Encaixotando minha Biblioteca provavelmente vão se encantar com esse aqui. Enfim, aos amantes de livros - não apenas como um veículo de narrativas, mas também como objeto em suma -, O Infinito em um Junco é imperdível. Definitivamente, um candidato a lista dos melhores do ano cá no Coruja.

Nota:
(de 1 a 5, sendo: 1 – Decepção; 2 – Mais ou Menos; 3 – Interessante; 4 – Recomendo; 5 – Merece Releitura)

Ficha Bibliográfica

Título: O Infinito em um Junco: a invenção dos livros no mundo antigo
Autor: Irene Vallejo
Tradução: Ari Roitman e Paulina Wacht
Editora: Intrínseca
Ano: 2022

Onde Comprar

Amazon


A Coruja


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2 comentários:

  1. Que resenha linda. Fiquei com mais vontade ainda de ter esse livro. Para quem trabalha em biblioteca, mesmo não tendo uma formação em Biblioteconomia, livros que falam de livros são sempre preciosos. E como eu já te contei, adoro refletir sobre essa história que vem desde as marcações na terra para contar as coisas até a costura do códice. Isso é fascinante!

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    Respostas
    1. Eu adoro livros que falem sobre livros - é a razão de Umberto Eco e Alberto Manguel terem se tornado alguns dos meus autores favoritos, mesmo quando trazem obras mais densas e não exatamente direcionadas ao público "leigo". Do Eco eu li até o tratado de semiótica, e mesmo tendo ficado a ver navios em alguns conceitos, não me arrependo de nada (bem, eu tenho uma longa história com Eco, já quis tacá-lo na parede e depois me apaixonei perdidamente... acontece...)

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