13 de abril de 2021

Um Estudo em Vermelho: revisitando o cânone holmesiano para refletir sobre Justiça


Tempos atrás - quando ainda podíamos fazer aglomerações literárias com o clube do livro - tivemos um debate duplo, com dois clássicos das histórias policiais: Um Estudo em Vermelho, romance que nos apresenta ao mundo de Sherlock Holmes, o mais famoso detetive de todos os tempos; e E Não Sobrou Nenhum, considerado por muitos o melhor livro de Agatha Christie, a Rainha do Crime.

Foi um debate bem curioso, no qual conversamos sobre cada um dos títulos, marcamos suas semelhanças de temas e diferenças de tom, questionamos suas definições de justiça e discutimos acerca do fascínio que histórias de crime (e crimes da vida real) exercem sobre o público. Dos livros, filmes e séries aos programas de TV e jornais sensacionalistas, parece haver algo de verdadeiro no que Holmes fala em Um Estudo em Vermelho, de que o assassinato dá cor à vida:

Eu poderia não ter ido lá, se não fosse você, e assim teria perdido o melhor estudo com que jamais me deparei: Um estudo em vermelho, hein? Por que não poderíamos usar um pouquinho do jargão da arte? O fio vermelho do assassinato corre através da meada incolor da vida, e nosso dever é desemaranhá-lo, isolá-lo, e expor cada centímetro dele.

Fiquei assim com essa questão na cabeça: por que gostamos tanto desse tipo de história? É a curiosidade, a necessidade de resolver o mistério? A catarse do final em que a justiça é feita? Ou é algo mais mórbido, uma atração por aquilo que a humanidade tem de mais grotesco e cruel?

Freud deve ter alguma teoria sobre o assunto, envolvendo romances familiares e conflitos edipianos, mas não sou psicanalista e não gosto muito da forma como Freud quer abarcar toda a complexidade da mente humana sob o guarda-chuva da repressão sexual. Prefiro pensar que o interesse que temos nesse tipo de história é uma amálgama das razões que escrevi acima e como estudo de caso apresento… eu mesma.

Enquanto me organizava para mediar o encontro do clube do livro, comecei a lembrar de coisas e fazer contas e descobri que a primeira vez que li Um Estudo em Vermelho foi há pouco mais de duas décadas (na verdade, esse ano marca vários aniversários de primeiras leituras de livros que foram sobremaneira importantes para mim): ele foi meu primeiro romance policial. Tinha treze anos então, e o livro fora indicado como paradidático na escola.

A estrutura do mistério me deixou fascinada, o suficiente para que eu partisse rumo aos outros volumes do cânone. Problema é que, quando cheguei ao O Cão de Baskervilles, perdi a paciência com a maneira que Holmes tratava Watson (ou, pelo menos, a percepção que eu tinha desse tratamento). Desisti dos moradores de 221B Baker Street, mas não das histórias de detetives - e foi assim que cheguei a Agatha Christie.

Dos treze aos quinze, eu praticamente só lia romances policiais, estava sempre vendo possibilidades de crimes por todos os lados e até tentei a mão em escrever minhas próprias histórias no gênero. Os cadernos dessa época não sobreviveram, mas é suficiente dizer que o clichê do ‘se torcer sai sangue’, dado a certos jornais sensacionalistas, aplicava-se à perfeição aos meus enredos. Havia detetives, piratas (não, eu não sei explicar de onde vieram os piratas) e fantasmas - os fantasmas eram importantes, porque ao final das histórias não restava ninguém vivo para solucionar o crime. Eu até mesmo fazia os desenhos: lembro vagamente de uma ilustração com uma mão saindo de uma moita e uma poça de sangue junto dela.

Aos quinze anos, para alívio de D. Mãe, que começava a cogitar a possibilidade de me arrastar para a psicóloga, descobri Tolkien e a Terra-média, e comecei minha fase de obsessão por ficção fantástica. Mas essa é uma história para outra ocasião (prevejo uma releitura de O Senhor dos Anéis esse ano, para comemorar este importante aniversário também)..

Enfim… dez anos depois de ler Um Estudo em Vermelho (muito conveniente para fins de efemérides essas coincidências de datas), estreou o Sherlock Holmes de Guy Ritchie, com Robert Downey Jr. e Jude Law nos papéis dos protagonistas. Lembro nitidamente de sair do cinema com a trilha sonora do Hans Zimmer tocando internamente ad infinitum (estou ouvindo ela agora) enquanto minha cabeça girava e girava tentando casar o que tinha visto com minhas percepções originais dos personagens.

O filme não é particularmente genial ou inovador. Mas era extremamente divertido. Para além disso, ele me deu um Holmes mais humano, vulnerável e dependente de seu melhor amigo (numa inversão interessante do trope de alívio cômico, com Holmes despertando risadas em vez do bom doutor); e um Watson que era altivo, seguro de si, que estava presente como algo mais que um tolo bem-intencionado ou capacho do detetive. Foi ao sair desse filme que cheguei à conclusão de que tinha deixado passar algo naquela minha primeira leitura: comecei a entender que fora contaminada por uma percepção dos personagens anterior à própria leitura.

Parafraseando Sherlock, eu teorizara antes de ter todos os fatos, deixara-me contaminar pelas figuras derivadas do imaginário coletivo. Afinal Sherlock Holmes e John Watson tinham ultrapassado todos os limites da criação de Conan Doyle e se tornado arquétipos. de forma que, mesmo antes de encontrá-los nas páginas pela primeira vez, eu já tinha uma ideia formada de quem eles eram. Minha leitura do original foi colorida pelos meus pré-conceitos.

Muita gente hoje em dia foi apresentada aos personagens pelos filmes de 2009 e 2011 ou pela excelente série da BBC, cuja primeira temporada foi ao ar em 2010. O Watson gordinho, bigodudo, tolo de bom coração que aparecia em séries mais antigas - ou no desenho da Disney, As Peripécias do Ratinho Detetive - foi substituído por uma imagem atlética, que exuda competência, seja como médico, atirador ou simplesmente babá de Sherlock Holmes.

Vinte anos depois daquele primeiro encontro ainda nos bancos do colégio, minha releitura de Um Estudo em Vermelho não poderia ter sido mais diferente. A aventura, o suspense e a curiosidade permanecem - e o quão surpreendente é que, mesmo já conhecendo a solução do caso, o enredo continue a empolgar? -, mas o foco é outro. As referências são outras. E a releitura parece ser de uma história completamente nova.

Para quem ainda não conhece a trama de Um Estudo em Vermelho, temos aqui basicamente duas histórias. Na primeira parte, Watson e Holmes se conhecem e se tornam colegas dividindo aposentos em Baker Street. Na segunda, Doyle permite ao assassino dar suas razões e justificar seu crime ao revelar o passado de suas vítimas.

Watson, que voltou recentemente do Afeganistão, não tem muito para fazer além de conjecturar sobre tudo o que há de estranho em seu novo conhecido, até que uma visita de detetives da Scotland Yard lhe dá a oportunidade de desvendar quem é, afinal, Sherlock Holmes. Convidado a acompanhar o outro homem, Watson dá então seu testemunho sobre os métodos detetivescos de Holmes, num caso que envolve dois assassinatos misteriosos. Watson se impressiona, Holmes se pavoneia, detetives profissionais são ridicularizados, novos métodos científicos de investigação são utilizados, uma vingança é consumada e uma amizade para a vida toda começa ali.

Em meu primeiro contato, queria saber o que tinha acontecido, quem era o assassino, porque ele matara, como ele cometera o crime. Notem o uso do pretérito: tempos verbais são importantes em romance policial porque você está sempre preocupado em saber o que aconteceu, não o que acontecerá. Enfim, era o suspense que me interessava, a solução do mistério.

Na releitura, minha preocupação foi bem outra: afinal as ações de Jefferson Hope se traduzem num caso de justiça ou vingança? Se o sistema falhou com Hope, então há justificativa para ele se arvorar juiz e executor? Aliás, considerando a genialidade de Sherlock e sua capacidade para farejar criminosos, estaria ele mesmo acima da lei? Especialmente quando esses criminosos estão eles mesmos acima do alcance da justiça comum?

Não são questões tão fáceis de resolver. Os homens que Hope matou não eram, de forma alguma, inocentes. E eles não apenas se safaram de seus crimes como lucraram com isso. Tornaram-se ricos, estavam em posições de poder. Nunca se arrependeram de suas ações. Quanto a Hope, que consumiu o resto de sua vida atrás de vingança, o que mais ele tinha a perder considerando a bomba relógio que tinha no peito?

Essa situação não aparece apenas em Um Estudo em Vermelho. Em contos como Charles Augustus Milverton e Abbey Grange, Holmes silencia acusações e até destrói evidências incriminatórias por acreditar que isso é o mais justo, o mais correto à ocasião. A certa altura de As Cinco Sementes de Laranja ele diz de si mesmo “sou uma espécie de última corte de apelação”. Levando assim em conta as palavras que Doyle coloca na boca do detetive, não posso deixar de pensar que o fazer justiça com as próprias mãos era algo com que o autor concordava.

É fácil, na teoria, se dizer a favor da lei. O velho ditado do “olho por olho e o mundo terminará cego” - é preciso acreditar na justiça para que não mergulhemos no caos social. Até sermos diretamente atingidos. Suponhamos estar numa situação parecida com a de Hope: uma pessoa que você ama (seu pai, seu filho, seu irmão) é assassinada e, por algum motivo - a morosidade do processo, a influência do vilão com pessoas no poder, negligência na investigação -, o assassino fica livre. A justiça te foi negada. Não há mais para quem recorrer, o vilão saiu ileso sem um pai nosso de penitência, não existe nada a fazer além de se conformar.

Em tempos modernos talvez seja possível utilizar as redes sociais para gritar a reprovação social e causar algum inconveniente ao culpado. Mas essa reprovação seria passageira, porque a memória coletiva é fraca e logo se deixa impressionar pelo próximo escândalo. E, se seguirmos o roteiro de Um Estudo em Vermelho, os vilões podem simplesmente fazer as malas e recomeçarem em outro lugar no qual ninguém os reconheça.

O sentimento de revolta, numa situação dessas, é a coisa mais natural do mundo. O quanto se caminha entre a revolta e o agir vingativo, são outros quinhentos. Não podemos negar que a justiça é falha e não posso afirmar que, na mesma situação, sou uma pessoa suficientemente altruísta para deixar passar tudo em brancas nuvens. A verdade é que Doyle me força a refletir e, colocando-me no lugar de Hope, tendo a oportunidade da desforra e nada mais a perder nessa vida, não posso condená-lo.

Tais conjecturas levaram-me a recordar Calvino e suas definições de ‘o que são clássicos’: “Toda releitura de um clássico é uma leitura de descoberta como a primeira. (...) Toda primeira leitura de um clássico é na realidade uma releitura.”. E como isso se aplica a Um Estudo em Vermelho? Bem, quando o li pela primeira vez, já trazia uma bagagem cultural acumulada que me fazia familiar com os personagens - e, nesse sentido, era uma releitura -; mas, relendo-o anos depois, descubro coisas novas que fazem da experiência uma revelação. Assim, entre leituras e releituras, o mesmo livro atendeu a diferentes necessidades que eu tinha.

Retornando à questão que fiz lá no começo, do porquê de gostarmos de histórias sobre crimes... Creio que, em primeiro lugar, está a curiosidade em desvendar o mistério, em dar uma solução ao enredo. Há um enorme prazer em resolver um quebra-cabeças e todo leitor amante de romances de detetive não deixa de ser também um detetive amador. Eu sempre tento solucionar por mim mesma o crime apresentado e, quando consigo elucidá-lo, sou carregada por um arrojo de vitória.

Mais importante que isso, porém, é existe algo de muito satisfatório na resolução em que o criminoso é capturado; uma satisfação que nem sempre parece possível na vida real. É uma sensação catártica, em que cada um recebe aquilo que merece. Autores como Conan Doyle e Agatha Christie - que são os que mais leio no gênero - não trabalham muito com ambiguidades morais; costuma haver uma clara divisão entre heróis e vilões em seus romances. É fácil assim saber para quem torcer.

Essa “facilidade”, contudo, não nos absolve do debate ético, que, quando é pertinente, pode vir da interpretação do leitor. Que é, no final, exatamente o que ocorreu com essa releitura de Um Estudo em Vermelho. Mesmo quando é puro entretenimento, uma “literatura menor” (e não estou eu julgando aqui, mas Doyle definitivamente achava que suas histórias de detetive eram o que de mais descartável escrevera), as histórias nos convidam à reflexão.

Comecei a escrever esse ensaio dois anos atrás - ele faria parte da celebração dos Dez Anos em Dez Ensaios -, mas outros temas foram surgindo, e ele acabou ficando esquecido nos meus arquivos, embora o especial sobre Sherlock Holmes tenha sido um dos melhores do blog e um favorito de escrever. Continuava na minha cabeça, contudo, existindo algo de bastante atual nesse debate sobre justiça, e o que acontece quando ela falha. Consegui retomar enfim o fio da meada e assim, com bastante atraso (quase a tempo de mais um blogversário), entrego o artigo. Enfim, antes tarde do que nunca, não é mesmo?


A Coruja


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