22 de abril de 2021

O Terror do Isolamento: uma leitura de O Homem Invisível


- Eu posso ficar invisível! Isso transcenderia a mágica.

E contemplei, dissipadas as dúvidas mais nebulosas, uma visão magnífica de tudo o que a invisibilidade poderia significar para um homem: o mistério, o poder, a liberdade.

Esse é um daqueles livros que você começa achando que sabe tudo que vai acontecer… e aí descobre que não era nada do que você estava pensando. O Homem Invisível é, afinal, parte do nosso imaginário coletivo, sendo várias vezes adaptado ou mesmo cooptado para outras obras (Liga Extraordinária, estou olhando para você), de tal forma que, querendo ou não, temos certas expectativas para ele.

Em poucas linhas: Griffin é um cientista genial que inventa uma fórmula da invisibilidade que se utiliza de princípios ópticos e índices de refração. Obcecado em completar suas experiências, ele não espera pela criação de um antídoto antes de testar a fórmula em si mesmo e não demora muito para perceber que o lado prático de ser invisível não é a maravilha que ele imaginava. Determinado a encontrar uma solução para seus problemas, ele se disfarça com bandagens, roupas, chapéu, óculos e nariz postiço, se hospeda num vilarejo do interior e recomeça seus estudos e experimentos. A estranheza e irascibilidade de Griffin, contudo, colidem com a curiosidade e desconfiança dos habitantes da vila e não demora para que seu segredo seja descoberto e uma série de confusões daí decorram.

Falei ali em cima sobre expectativas. Pois bem, comecei sob a impressão de que a obra de Wells era uma história de horror. De fato, há um elemento de terror aqui, mas eis a questão: usamos comumente terror e horror como sinônimos, e eles não são. O terror vem da expectativa, da construção psicológica de uma situação que te induz à ansiedade; o horror, por sua vez, é a repulsa que vem após presenciarmos algo assustador. Gosto, aliás, da explicação das autoras de Monster, She Wrote, parafraseando um ensaio de Ann Radcliffe, de 1826: o terror é “estar à beira do precipício, sentindo tanto medo como a esmagadora beleza da cena diante de si”, ao passo que o horror “te empurra do precipício, não deixando qualquer apreciação para a beleza ou o sublime, apenas o medo cego, seguido por sangue e vísceras”.

É o distanciamento de Griffin, cientista e protagonista da história, da sociedade que o cerca, sua incapacidade de sentir empatia, de expressar remorso, seu imenso egoísmo e sua sede de poder que nos impactam aqui. Mesmo antes de suas experiências, as quais o tornaram invisível, Griffin é estranho, antisocial, cismado. Não pude deixar de compará-lo a Victor Frankenstein, outro cientista frio que brinca de Deus, sem pensar nas consequências de seus atos e depois se vê divorciado da humanidade. Ambos sofrem da mesma arrogância, do mesmo descaso com aqueles que estão pelo caminho na busca por suas descobertas científicas. Victor é um pouco mais bem integrado e por isso chega a se arrepender - o que ajuda a transformar Frankenstein numa tragédia -, mas não existe essa possibilidade com Griffin, que não tem qualquer elo com seus semelhantes.

Se tivesse sido capaz de criar relacionamentos relevantes, talvez seu destino fosse outro e lamentaríamos por ele. Quando Wells nos revela que Griffin é albino de nascença, não pude deixar de pensar que sua desumanidade era uma reação a repulsa que a sociedade costuma demonstrar com tudo o que é diferente. É uma interpretação minha, porque não há nada no livro que confirme isso, mas é bem natural se chegar a essa conclusão. Mesmo com essa ideia na cabeça, contudo, não senti qualquer simpatia pelo personagem. Griffin vê todos a seu redor como indivíduos descartáveis perante suas ambições, não se importa com ninguém além de seus próprios ganhos. Mesmo imaginando uma miríades de possíveis sofrimentos, é difícil estimá-lo.

A invisibilidade dá a Griffin a sensação de poder fazer o que bem entender, sem consequências. O que é um roubo ali, um assassinato ali, quando ninguém pode vê-lo? Fiquei pensando na sensação de anonimato por trás de uma conta de rede social, e as barbaridades que pessoas comuns expressam ali, crendo-se invisíveis. Pensei também em como o aparente poder absoluto pode subir à cabeça e fazer crer ao indivíduo que ele está acima de todos; e como essa sensação de superioridade nos isola do próximo e nos faz incapazes de enxergar o sofrimento do outro.

Sob esse ponto de vista, O Homem Invisível seria uma leitura um tanto deprimente, não fosse a forma como Wells imprime humor a essas correntes aterrorizantes. Griffin se dá muita importância, mas a verdade é que sua condição o coloca em várias situações cômicas, ridículas mesmo, o que não é ajudado pelo espaço em que o autor decide jogá-lo: uma cidade do interior, na qual todo mundo tem uma opinião e se acha no direito de se meter na história.

Impressiona-me que Wells tenha conseguido me surpreender, virar do avesso minhas expectativas. De mais, O Homem Invisível é uma leitura rápida, que tanto funciona bem ao entretenimento, como rende pano para manga em debates sobre ética, ciência, psiquê e solidão humana.

Nota:
(de 1 a 5, sendo: 1 – Não Gostei; 2 – Mais ou Menos; 3 – Gostei; 4 – Gostei muito; 5 – Excelente)

Ficha Bibliográfica

Título: O Homem Invisível
Autor: H. G. Wells
Tradução: Alexandre Barbosa de Souza e Rodrigo Lacerda
Editora: Zahar
Ano: 2019

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