18 de agosto de 2022

Para viajar no tempo e voltar "Antes que o Café Esfrie"


A água escorre dos lugares altos para os mais baixos. Sempre. É a natureza da gravidade. As emoções também parecem agir de acordo com a gravidade. Na presença de alguém com quem se tem laços, a quem você já confiou seus sentimentos, fica difícil mentir sem que o outro perceba. A verdade simplesmente quer fluir, se libertar. Assim é, especialmente quando alguém tenta esconder alguma tristeza ou vulnerabilidade. É muito mais fácil disfarçar a tristeza de um desconhecido ou até mesmo de alguém em quem não se confia.

Num café retrô em Tóquio é possível, sentando-se numa determinada cadeira e pelo intervalo de tempo em que uma xícara de café esfria, viajar ao passado ou ao futuro. Há uma série de regras a seguir, contudo, que se resumem ao preceito de que, no instante dado para vislumbrar esse momento no tempo, é impossível mudar o que aconteceu (ou acontecerá). Considerando tantas restrições, é difícil entender as razões de quem decide encarar a viagem. Mas aqueles que se submetem descobrem lições valiosas para a própria vida, têm uma segunda chance de encontrar coragem para dizer o que precisa ser dito.

Antes que o café esfrie não traz explicações sobre os mecanismos pelos quais as viagens temporais são possíveis. Nem expande na história da fantasma que ocupa comumente a cadeira de onde se pode partir (e da qual não se pode levantar durante o “passeio”). A despeito do tema, não tem nada de ficção científica. É um conto mais introspectivo, sobre arrependimentos, encontros e relacionamentos.

Não tenho certeza de como cheguei nesse título - desconfio de que por comentário de algum amigo que ficou martelando na cabeça até que me deparei com o ebook numa promoção. Sendo curtinho, comecei a ler quase de imediato e só não terminei de uma sentada porque estava alternando com outros títulos.

O romance é desdobramento de uma peça de teatro: um único cenário, poucos personagens, muito diálogo, tudo numa linguagem simples, mas com leveza poética. O ponto forte desse início teatral é a maneira como ele destila a história a suas partes essenciais, sem grandes enrolações, direto a essência de cada esquete/capítulo/conto. Por outro turno, a adaptação do que eu imagino serem longos monólogos individuais em frequentes flashbacks com mudanças abruptas de voz quebram a tensão de certas cenas.

(Há, aliás, um momento em que o capítulo se inicia em primeira pessoa e depois volta ao narrador em terceira que é tão estranho que não sei se seria um problema de tradução - que foi feita do inglês, não direto do japonês - ou um resquício do formato original com o ator no palco que passou batido quando a peça foi transformada.)

Enfim… são quatro as jornadas que acompanhamos no livro, todos histórias independentes das outras e que tratam de relacionamentos complicados e até dolorosos: namorados que acabaram de se separar; um casal de mais idade em que o marido com alzheimer está esquecendo a esposa; irmãs lidando com tensões familiares e luto; mãe e filha que precisam se conhecer.

Há algo de melodramático nesses breves encontros (bem, teatro é drama…), mas a mensagem do livro compensa: a ideia de que o passado não pode ser mudado, mas é possível encontrar uma nova perspectiva, perdoar, seguir em frente - se o momento não pode ser diferente, podemos sair da experiência mudando a nós mesmos.

Não vou negar que chorei mais de uma vez durante a leitura. Antes que o café esfrie é uma leitura rápida, mas bem emocional, simples em suas lições. O cenário do café, com seu conjunto de funcionários e clientes habituais e a fantasma que ocupa a cadeira veículo das viagens no tempo têm potencial para outras histórias (eu fiquei muito curiosa sobre a fantasma, sério).

Tendo terminado e me dado alguns dias para digerir e refletir sobre a leitura, peguei-me questionando o fato de que boa parte do sacrifício e o ‘carregar’ emocional é feito pelas personagens femininas e lembrei de várias conversas que tive com a Ísis enquanto ela estava morando no Japão, e sobre os papéis de gênero que continuam a vicejar por lá, independente de todos os outros avanços sociais. Não acho que fosse intenção do autor tratar do assunto, mas num debate sobre o livro, acho importante notar o que ele nos diz subconscientemente sobre a questão.

Nota:
(de 1 a 5, sendo: 1 – Decepção; 2 – Mais ou Menos; 3 – Interessante; 4 – Recomendo; 5 – Merece Releitura)

Ficha Bibliográfica

Título: Antes que o café esfrie
Autor: Toshikazu Kawaguchi
Tradução: Priscila Catão
Editora: Valentina
Ano: 2022

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A Coruja


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