12 de novembro de 2020
Livros de Cabeceira para se Desconectar
Fiz agora em novembro o curso de Escrita Criativa da Sílvia Oliveira, lá do Matraqueando. Num dos módulos, que tratava de criatividade, ela falou da importância de ter livros de cabeceira: livros com que você pode se desconectar um pouco das redes, leituras leves, daquelas que você pode até abrir num capítulo de forma aleatória e ler sem perder o fio da meada.
Sempre tenho livros na cabeceira - normalmente o que estou lendo ou vou ler em seguida -, mas o conceito aqui era de algo diferente, algo como pensamentos ou inspirações diárias, pílulas de sabedoria, uma coisa diferente que te faz por alguns instantes sair da sua cabeça. De primeira pensei “auto-ajuda?”, mas refletindo sobre o processo de ser criativo do qual se falou na aula, cheguei à conclusão que mesmo um livro de poemas caberia dentro do que se propunha como um livro de cabeceira.
Na verdade, poemas são ótimos para você se desconectar. A poesia tem um ritmo muito diferente de tudo que estamos habituados a consumir durante o dia, seja a prosa de um romance, seja as notícias do dia, sejam os posts de redes sociais. Por vezes, nem é necessário compreender o significado mais profundo das palavras, perdendo-se simplesmente na sonoridade das palavras.
Sou, contudo, uma leitora bem infrequente de poesia. Há poetas que me chamam a atenção e há poemas que tenho como favoritos, mas não posso dizer que esteja suficientemente habituada com eles para tê-los como livros de cabeceira. Penso assim que preciso procurar outro estilo para ter como livro de cabeceira.
(Ok, não, minto: tenho dois livros-poema do Gaiman que releio sempre que me sinto precisando desacelerar: Instruções e Menina Iluminada.)
Dando uma olhada na minha lista de leituras desse ano, dou-me conta de que a resposta era meio óbvia… Até porque li vários nesse estilo nos últimos meses, com o duplo objetivo de me ajudar a sair da cama pela manhã e diminuir a ansiedade para conseguir dormir. Estou falando, claro, de ensaios. E, se for ensaios sobre literatura, melhor ainda.
Nessa toada, Alberto Manguel é uma ótima pedida para manter à cabeceira. Reli esse ano Os Livros e os Dias e depois saí emendando Fabulous Monsters, A Biblioteca à Noite e Packing my Library.
A Biblioteca à Noite usa como mote o trabalho de Manguel em organizar sua biblioteca após se mudar para a França para expandir o tema para bibliotecas de uma maneira geral - e o papel que elas têm na sociedade e na História. É o mesmo padrão seguido em Packing my Library, só que no caminho inverso, com o autor encaixotando e desmontando essa biblioteca para outra mudança.
Sei alguma coisa sobre empacotar sua biblioteca para uma mudança (embora a minha nem de longe se assemelhe aos mais de trinta mil títulos dele) e depois desempacotá-la, pensar em maneiras de arrumar os livros nas prateleiras e se perder em espirais de pensamentos aleatórios e livres associações entre títulos, autores, eventos históricos ou pessoais. Então, sim, eu me identifiquei com os dilemas de leitor do Manguel, suas reflexões sobre livros, leitores, colecionadores, bibliotecas."Todo bibliotecário é, até certo ponto, um arquiteto. Ele constrói a coleção como um conjunto que o leitor tem que encontrar o caminho, descobri a si mesmo e viver."
Ele tem um talento enorme de misturar suas impressões e experiências pessoais com referências históricas e questões mais gerais, de forma que seu texto é uma autobiografia, um manifesto de amor à literatura, uma coletânea de pensamentos filosóficos e algo sobre a história e evolução dos livros. A paixão dele, e sua maneira de envolver o leitor, fazem com que tenhamos vontade de refletir sobre nossas próprias histórias com nossas bibliotecas e compartilhá-las também. Eu confesso que, após terminar os dois livros, fui me colocar diante da estante, passando os dedos pelas lombadas, lembrando de como eles chegaram até mim e sonhando com a minha biblioteca perfeita (que provavelmente se estenderia por toda a casa e mais um pouco).
O interessante disso é que os dois livros se complementam perfeitamente: A Biblioteca à Noite segue a chegada à casa no interior da França e a organização da biblioteca no velho celeiro medieval e Packing my Library é o autor precisando empacotar tudo para se mudar de novo - primeiro para um pequeno apartamento em Nova York e depois para Buenos Aires -, sabendo que não terá espaço para levá-la consigo (razão para o subtítulo do livro ser “uma elegia e dez digressões”)."Nossos livros prestam contas da nossa História: das nossas epifanias e atrocidades. Nesse sentido, toda literatura é depoimento. E entre esses depoimentos há reflexões acerca daquelas epifanias e atrocidades: palavras que nos ajudam a compartilhar tais epifanias, e palavras que cercam e denunciam as atrocidades para que não lhes seja permitido acontecer em silêncio, impunemente. Essas palavras nos lembram de coisas melhores, de esperança e consolo e compaixão, e guardam em si a implicação de todos somos capazes de tais sentimentos. Nem tudo isso alcançamos, ou se alcançamos, não é o tempo todo. Mas a literatura nos lembra que elas estão lá, essas qualidades humanas, seguindo nossos horrores tão certo quanto ao nascimento sucede a morte. Elas também nos definem. Claro, a literatura pode não ser capaz de salvar alguém da injustiça, ou das tentações da ganância, ou das misérias do poder. Mas algo sobre ela é perigosamente efetiva, se todo ditador, todo governo totalitário, todo oficial que se sente ameaçado tenta acabar com ela - seja queimando livros, censurando-os, taxando-os, ou prestando um serviço apenas da boca para fora na causa da alfabetização, insinuando que a leitura é uma atividade elitista."
Manguel me lembra muito o estilo de Umberto Eco (que foi minha primeira grande paixão em crítica literária): sua impressionante erudição, a vivacidade de suas memórias, e o genuíno entusiasmo fazem com que você tenha vontade de visitar todos os lugares mencionados, ler todas as referências citadas, e, mais que tudo, beber um café (ou outra bebida de sua preferência) na companhia do autor.
Continuo minha lista com dois volumes do cartunista Grant Snider, The Shape of Ideas e I Will Judge You by Your Bookshelf. E, embora sejam livros de tirinhas curtas, as ideias apresentadas nesses livros funcionariam muito bem como ensaios em prosa.
Eu já conhecia Snider de ver suas tirinhas publicadas em vários lugares pela internet. Se não me falha a memória, até cheguei a recomendá-lo - e ao seu site pessoal, o Incidental Comics - numa das colunas do Empilhando no Escaninho. Ao vê-lo indicado esse ano no prêmio Goodreads Choice com I Will Judge You by Your Bookshelf, tive de ir atrás do livro. Como eu poderia resistir, com um título desses?
Nunca julguei ninguém por suas estantes, porque acho que cada um tem direito de ler o que bem entende (acho que meu julgamento vai mais pela ausência de livros numa casa do que por prateleiras abarrotadas deles). Mas não posso negar o fato de que, se eu visitar a casa de alguém com uma grande estante de livros, meu primeiro foco de atenção será a estante - e meu catálogo mental de títulos para adicionar na minha lista de querências.
As ilustrações de Snider são bem simples à primeira vista, mas várias das tirinhas são repletas de detalhes nos quais se perder. Elas ressoam com todos que se identificam como leitores: Snider faz graça com alguns autores famosos, fala dos tipos de livros que todo mundo tem na própria estante, no significado que eles têm em nossas vidas e vivências. Aliás, fiquei com muita vontade de pendurar a benção do leitor na parede.
I Will Judge You by Your Bookshelf é bem divertido, até comicamente exagerado; uma leitura rápida e descompromissada, que celebra aquilo que de comum temos como leitores: nosso amor pelos livros.
Por sua vez, The Shape of Ideas apresenta tirinhas que falam sobre o processo criativo - o subtítulo diz tudo o que você precisa saber sobre ele: uma exploração ilustrada da criatividade. “Com o quê se parece uma ideia? E de onde elas vêm?”, é o que aparece na sinopse e é bem isso mesmo que vai se encontrar no livro.
Dividido em dez partes, cada uma se intitula como uma das etapas do processo de criação: inspiração, transpiração, improvisação, aspiração, contemplação, exploração, frustração diária, imitação, desespero, pura euforia. Dessa lista, dá para ter uma ideia bem próxima do que Snider quer nos dizer. Muitas das tirinhas são cômicas, outras quase pungentes, várias são vislumbres do próprio cotidiano do autor. The Shape of Ideas não é um manual; muito mais que respostas, o que Snider nos dá aqui é uma inspiração para refletirmos por nós mesmos sobre a natureza - ou o formato - das ideias.
As tirinhas tanto de I Will Judge You by Your Bookshelf quanto de The Shape of Ideas podem ser lidas gratuitamente, direto no site do autor, o Incidental Comics. As edições, compiladas, contudo, são uma excelente pedida para dar de presente e ótimos para ter à cabeceira, por todas as razões já elencadas quando comecei esse post.
Os livros de ensaios do C. S. Lewis são fantásticos para ter a cabeceira - quer sejam os volumes de crítica literária, quer os sobre religião e moral. Lewis tem uma escrita clara, fluida, didática sem ser pedante. Como Cultivar uma Vida de Leitura traz fragmentos de ensaios maiores - especialmente de Sobre Histórias e Um experimento em crítica literária -, trechos de cartas e resenhas publicadas pelo autor.
Para quem só é familiar com o Lewis romancista, de As Crônicas de Nárnia, esse volume pode ser uma porta de entrada para o trabalho de não ficção dele; para quem já conhece, é uma pequena antologia que recorta pontos centrais de suas reflexões e filosofia. Pessoalmente, penso que teria ficado desapontada se tivesse comprado o livro imaginando se tratar de material inédito; mas foi um presente e, como tal, ele enche os olhos.
O ponto alto de Como Cultivar uma Vida de Leitura, afinal, é a graciosidade da edição: uma versão de bolso, com capa dura e detalhes em dourado; letra grande, com citações pontuais em destaque. Eu já conhecia boa parte dos textos apresentados no livro, mas gostei de ter uma coletânea de trechos pinçados entre os melhores ensaios do Lewis sobre o tema da leitura, organizada numa leitura rápida e perfeita para ter à cabeceira.
Termino por hoje com Siga em Frente: 10 maneiras de manter a criatividade nos bons e maus momentos do Austin Kleon. Li algum tempo atrás o Roube como um Artista e gostei demais dos insights e exercícios do livro.
Em ambos os casos, Kleon não traz nada de totalmente inovador e arrebatador: o que ele compila em suas dicas sobre criatividade são coisas que podem parecer bastante óbvias à primeira vista, mas das quais volta e meia precisamos ser lembrados. E ele faz isso com graça, leveza, e humanidade.
Há livros que parecem nos encontrar exatamente no momento em que precisamos deles, e Siga em Frente foi um desses para mim. Eu precisava ouvir muitas das coisas que Kleon compartilha nesse livro.
Engraçado que um dos pontos que mais me impactaram na leitura de Siga em Frente foi a ideia de que o artista não precisa ser o mais original, aquele que quebra todos os paradigmas, e cuja genialidade pode ser algo tóxico para si e aqueles com que convive. O importante é dar o melhor de si, e ficar feliz com aquilo que você conseguiu produzir ao final de cada dia, sem se impor prazos, sem um ganho final. Ser criativo para ser feliz consigo mesmo. Não se preocupe em ser um grande artista, mas seja um bom ser humano. “A arte é para a vida, não o contrário”.
É uma mensagem simples, mas necessária, especialmente em tempos de desalento, em que parecem sobrar poucos consolos aos acompanharmos as notícias do dia. Kleon é um ótimo autor para se desligar, desconectar do mundo e mergulhar em si.
É provável que eu ainda passasse várias páginas listando títulos para manter na cabeceira, mas vou me limitar aos já elencados até aqui. No final das contas, a definição do que seja um livro para manter à cabeceira vai do gosto de cada um: onde prefiro ensaios literários, outro talvez colocasse a Bíblia, quiçá, um livreto de citações. Nesse contexto, não importa tanto o conteúdo, mas o efeito que a escolha tem sobre si. Todas as possibilidades são válidas - ao acordar ou antes de dormir -, se te dão paz, te inspiram, te acalmam.
Tenha uma leitura de cabeceira. E esqueça o resto do mundo por um momento.
A Coruja
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