14 de maio de 2020
'Somos filhos de espíritos de tinta e papel': os Monstros Fabulosos de Alberto Manguel
Como meu pai era diplomata, passei minha infância viajando de um lugar para outro. Os quartos em que eu dormia, as palavras ditas do lado de fora, as paisagens ao meu redor mudavam constantemente. Apenas minha pequena biblioteca permaneceu a mesma, e lembro-me do intenso alívio que senti quando, novamente reclinado em uma cama desconhecida, abri meus livros e, na página esperada, havia a mesma história antiga e a mesma ilustração antiga. "Lar" era um lugar nas histórias, tanto no objeto físico que eu segurava nas mãos quanto nas palavras impressas.
Desde o primeiro livro que li de Alberto Manguel, encantei-me com seu estilo: a mistura de pessoal e acadêmico, da forma como suas memórias se misturam com as análises certeiras, por vezes surpreendentes. Confesso que os romances dele não me interessam tanto, mas não consigo resisti-lo como ensaísta - seus trabalhos como crítico e estudioso da literatura estão entre meus favoritos no gênero. Assim é que eu não tinha como resistir a Fabulous Monsters, especialmente com um título tão curioso como esse.
A proposta do livro explicitada no prólogo - analisar personagens de histórias que crescem conosco, interpretações que mudam com nosso amadurecimento e diferentes pontos de vista - têm muito a ver com o conceito de personagens flutuantes do qual andei falando muito aqui pelo blog. Mas ele vai um pouco além disso: personagens de ficção não se tornam apenas reais através de nossas leituras, como se tornam parte de nossa própria genealogia ou, nas palavras dele próprio “biologia nos diz que descendemos de criaturas de carne e osso, mas intimamente sabemos que somos filhos e filhas de espíritos de tinta e papel”.
Em capítulos curtos - ilustrados por ele mesmo com um traço bem amador, que adiciona ao humor que ele traz a muitos desses pequenos ensaios - Manguel explora personagens de obras consagradas por todo o mundo, tanto na literatura ocidental como oriental. E não se restringe ao clássico: ele vai de Shakespeare aos quadrinhos, da Bíblia a contos infantis e folclóricos. Algumas de suas escolhas e análises são surpreendentes, como no capítulo dedicado a Gertrude, mãe de Hamlet; ou a fantástica costura do conto bíblico de Jonas e a Baleia com o papel do artista numa sociedade capitalista. Moby Dick, Frankenstein, Chapeuzinho Vermelho e até o Sítio do Pica Pau Amarelo sucedem-se numa bibliografia sem limitações.
As reflexões apresentadas por Manguel em Fabulous Monsters são certeiras e demonstram bem como a literatura consegue dialogar com os fatos do cotidiano - lembraram-se de alguns dos debates mais animados do clube do livro, quando conseguíamos ligar enredos seculares com temas do dia no noticiário, provando a atemporalidade e universalidade de seus enredos. Suas metáforas são elegantes, mas não menos ferinas por isso. Os ganchos que ele puxa para questionar figuras políticas contemporâneas são muito inspirados e seu sarcasmo é soberbamente aplicado. E como todo mundo sabe por aqui, não posso ler uma ironia bem feita sem me apaixonar pela obra.
Divertido, provocante, inteligente e muito pessoal - afinal, essa é uma lista de personagens favoritos do Manguel - Fabulous Monsters entrou já na minha lista de favoritos do ano, e me abriu o apetite para reler as outras obras de Manguel que tenho na estante. E, quiçá, talvez até escrever minha própria lista de monstros fabulosos que me acompanham desde que me descobri como leitora. Um projeto a se pensar...
Para terminar, aqui vai um vídeo em que o próprio Manguel fala sobre o projeto do livro:
Nota:
(de 1 a 5, sendo: 1 – Não Gostei; 2 – Mais ou Menos; 3 – Gostei; 4 – Gostei muito; 5 – Excelente)
Ficha Bibliográfica
Título: Fabulous Monsters: Dracula, Alice, Superman, and Other Literary Friends
Autor: Alberto Manguel
Ilustrações: Alberto Manguel
Editora: Yale University Press
Ano: 2019
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