5 de novembro de 2020

Pandora's Jar: uma perspectiva feminina (e feminista) dos mitos gregos


É uma pena, porque significa que a versão da história com a qual tantos de nós crescemos marginaliza seu personagem mais interessante. Também nos permite acreditar que heróis em jornadas fazem tudo sozinhos, quando raramente é assim que a história foi originalmente contada. Cada narrativa de um mito é tão válida quanto qualquer outra, é claro, mas as mulheres são retiradas da equação com uma frequência monótona. E isso fornece munição para aqueles que optam por acreditar que é assim que as histórias sempre foram e serão.

Fui atrás desse livro porque vi uma entrevista do Gaiman dizendo que era uma das leituras atuais dele. Aliás, eu deveria ter uma tag aqui no blog: “livros que li por recomendação do Gaiman”, porque considero essa sempre uma boa razão para somar mais um título à lista de leituras - e, até hoje, não me arrependo de ter seguido nenhuma das indicações dele. Enfim, cheguei à Haynes por causa do Gaiman, fiquei porque ela acerta todos os alvos para despertar meu interesse: já coloquei todo o restante da bibliografia dela na lista de desejos.

O subtítulo dele resume bem sobre do que trata Pandora’s Jar: mulheres nos mitos gregos. Cada capítulo é um ensaio sobre uma figura feminina da mitologia grega, personagens que por vezes podem ser tratadas como nota de rodapé nos textos clássicos que chegaram até nós, mas que com um pouco mais de atenção - ou buscando outras versões da mesma história - não apenas se revelam muito mais profundas do que imaginávamos, como também demonstram as tentativas de diminuí-las ao longo dos séculos, em escolhas de tradução e perspectiva.

Haynes tem um arcabouço teórico impressionante, sendo especialista em estudos clássicos pelo Christ’s College em Cambridge. Sua erudição é balanceada pelo humor (ela também se apresenta como comediante em stand-ups e outros programas) e pelo talento em trabalhar a narrativa. Com um ótimo timing para sarcasmo (adorei todas as vezes em que ela alfinetou Freud), relaciona de forma inteligente os mitos com produtos culturais atuais e traz questionamentos e reflexões importantes.

Por outro lado, ao que parece, há sempre um elemento sexual na decapitação da Medusa. Freud via isso como um mito da castração, porque sua necessidade de fazer tudo sobre a experiência masculina aparentemente o impedia de perceber que é Medusa que é decapitada e que ela pode, portanto, ser um arquétipo mais relevante para as mulheres do que para os homens. Um lapso freudiano, talvez.

Aliás, é interessante como a autora correlaciona versões para mostrar a evolução de como enxergamos os personagens. O capítulo sobre Pandora, por exemplo, vai de Hesíodo a Esopo, passando por pintores pré-rafaelitas, Adão e Eva e até Além da Imaginação. No das Amazonas, ela vai pelo óbvio Mulher Maravilha até Buffy: a Caça-Vampiros. Medéia ecoa em clipes de Beyoncé. Até Orfeu Negro, filme brasileiro da década de 50, aparece na análise de Eurídice. Haynes não se restringe aos autores clássicos mais conhecidos, avançando pela maneira como essas mulheres mitológicas foram retratadas em vasos antigos, esculturas de vários períodos, poesia moderna, cultura pop e até memes.

Cresci lendo mitologia grega. E não, isso não é um exagero: esses mitos eram apresentados nos livros com que aprendi a gostar de ler - a Biblioteca do Escoteiro Mirim e Monteiro Lobato. Na escola, a primeira seção da biblioteca de que devorei todos os volumes (incluindo uma enciclopédia em quatro volumes bizarramente entediante a se considerar o tema aventuresco) foi a de mitologia. Houve uma época em que meu maior sonho de consumo era viajar à Grécia para conhecer o Partenon. Até minha fascinação com corujas está intimamente ligada ao fato de que Palas Atena era minha divindade favorita do panteão.

Apenas sete peças de Sófocles sobreviveram até os dias de hoje, a mais famosa das quais foi e continua sendo Édipo Rei. Seu título em grego é Oedipus Tyrannos e, por razões que desafiam o bom senso, é rotineiramente referida até hoje como Oedipus Rex, a despeito do fato de ninguém envolvido no drama ser romano (a palavra rex é o latim para 'rei ') e isso fazer qualquer pessoa normal pensar em dinossauros, embora eles não apareçam na história.

À certa altura desse furor quase obsessivo (costumo ser uma criatura de fases nas minhas leituras, priorizando um gênero de cada vez…), os livros que me caíam em mãos começaram a soar repetitivos. Foi quando expandi meu interesse para outras mitologias (entre treze e quatorze anos eu considerei a possibilidade de ser arqueóloga), mas a essa altura dos acontecimentos eu estava entrando na minha fase Agatha Christie (quando cogitei virar detetive) e embora continuasse achando tudo interessante, não tinha mais a mesma empolgação de antes. Esporadicamente, ainda lia algo no campo, mais ficção em releituras desses mitos do que os mitos em si.

Comecei esse ano, contudo, resgatando essa antiga paixão com o Mythos de Stephen Fry (ainda quero ler os outros volumes do autor), especialmente pelo humor e pela forma como ele apresenta os mitos como a origem de palavras e significados que usamos hoje em dia. Mythos é uma leitura prazerosa por si só, mas o estudo etimológico que Fry apresenta é uma das melhores partes do livro (pelo menos para mim). E aí segui agora no fim do ano com a Haynes, que só pelo título, eu já sabia que ia apresentar uma perspectiva feminista da questão. Mas ela foi muito além disso (e não apenas por ter acesso aos textos clássicos em seu idioma original, o que faz uma diferença bem maior do que eu imaginava).

Esta é a sombra escura no centro da casa de Atreus. Todo crime cometido requer um ato de retribuição para satisfazer os mortos: Ifigênia, os filhos mais velhos de Tiestes. Mas cada ato de retribuição requer outro: a filha de Clitemnestra é vingada, mas seus filhos sobreviventes - Orestes e Electra - estão agora em um dilema impossível, como os Coéforas, ou Os Portadores da Libação, a próxima peça da trilogia, deixarão claro. Se eles falharem em vingar seu pai, seu espírito os atormentará porque ele foi assassinado, e seu assassino ficará impune. Mas se matarem seu assassino, eles próprios estarão cometendo o crime imperdoável de matricídio. A justiça retributiva pode parecer muito boa, mas quando tais horrores acontecem no núcleo familiar, não há solução que não piore a já insuportável posição.

Pandora’s Jar não apenas é cheio de novas informações num assunto que sempre me interessou (ainda que eu tenha esgotado as fontes que então estavam disponíveis para mim e por isso acabei deixando de lado), como também mudou o foco e transformou minha própria percepção do que eu achava que sabia. E essa é uma das grandes sacadas de Haynes, como ela consegue soprar vida nova em textos que conhecemos há mais de dois mil e quinhentos anos, ampliando detalhes e iluminando aquilo que deveria ser óbvio (eu ainda estou me batendo pelo fato de nunca ter me dado conta antes de que Jocasta juntou todas as peças do enigma primeiro, que enquanto Édipo, renomado pela inteligência, ainda tentava entender, ela já compreendera tudo).

Perspicaz, com uma fúria dissimulada pela ironia fina, deliberado em sua mistura de pop e alta cultura, e com uma excelente construção narrativa para apresentar os velhos mitos, Pandora’s Jar certamente foi um dos melhores livros que li esse ano. Mais que recomendado para ter na estante e revisitar sempre que possível.

Nota:
(de 1 a 5, sendo: 1 – Não Gostei; 2 – Mais ou Menos; 3 – Gostei; 4 – Gostei muito; 5 – Excelente)

Ficha Bibliográfica

Título: Pandora's Jar: Women in the Greek Myths
Autor: Natalie Haynes
Editora: Picador
Ano: 2020

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