11 de junho de 2020

Dez Anos em Dez Ensaios - Segunda Estrela à Direita até o Amanhecer (ou livros infantis para não perder o rumo)


Na minha última releitura de As Crônicas de Nárnia, passei um bom tempo ruminando a dedicatória do livro, a afirmação de que “um dia você será velho o bastante para voltar a ler contos de fadas”. Desconfio de que, quando li essa frase pela primeira vez, não lhe dei a devida atenção, mas, quase vinte anos depois, ela se tornou uma citação que eu gostaria de pendurar na parede e ver todos os dias.

Lewis, aliás, expande bem mais do assunto em alguns de seus ensaios. Permito-me citá-lo diretamente em seu Sobre Estórias:

"É costume usar um tom apologético e galhofeiro ao falar sobre o deleite de um adulto com os chamados ‘livros infantis’. Acho que a convenção é tola. Nenhum livro é realmente digno de ser lido aos dez anos se não for igualmente (e, por vezes, muito mais) digno de ser lido aos cinquenta.

(...)

As únicas obras imaginativas que devemos deixar de lado são aqueles que teria sido melhor nem termos lido lá atrás."

Em suma, boas estórias continuam sendo boas estórias, independente do público-alvo delas. A classificação etária - tão cara a editores, às prateleiras das livrarias e àqueles que se sentem na necessidade de regular o que os outros estão lendo - tem muito pouca relação com as escolhas reais de um leitor habitual. Digo isso por experiência própria: apaixonei-me pelo Cavaleiro da Triste Figura antes de minha idade chegar a dois dígitos; misturei Lobato, Verne e Dumas com Homero e Dante mal entrando na adolescência  (e descobri que o dicionário era meu melhor amigo nessas ocasiões); li Harry Potter mais ou menos à mesma época em que descobri Jane Austen e Agatha Christie, ainda na escola. Tive sorte, porque ninguém nunca me proibiu de ler alguma coisa “inadequada” para minha idade, de tal maneira que eu lia tudo em que pudesse colocar as mãos.

Ao longo desses anos, nunca deixei realmente de ler contos de fadas, embora tenha-os deixado em segundo plano por um período. Erroneamente, imaginava que deveria ler livros cada vez mais complicados para provar que estava “amadurecendo”, deixando de ser criança. Aos treze, confesso, eu era uma esnobe intelectual. Felizmente, essa fase não durou muito. Mas foi suficiente para que eu pudesse compreender o que Lewis quis dizer com aquela dedicatória.

Remeto-me a ele mais uma vez, porque Lewis sintetizou muito bem a questão em outro de seus ensaios, Sobre Três Modos de Escrever para Crianças:

"Preocupar-se em ser adulto, admirar o adulto porque é adulto, corar com a suspeita de ser infantil: essas coisas são marcas da infância e adolescência. E na infância e adolescência são, com moderação, sintomas saudáveis. Os mais jovens devem querer amadurecer. Mas continuar na juventude ou até mesmo na idade adulta, com essa preocupação sobre ser adulto é uma marca de desenvolvimento realmente bloqueado. Quando eu tinha dez anos, lia histórias de fada e teria ficado envergonhado se fosse pego fazendo isso. Agora que tenho cinquenta anos, eu as leio abertamente. Quando me tornei um homem, deixei de lado as coisas infantis, incluindo o medo da infantilidade e o desejo de ser muito adulto."

Quando você relê adulto uma boa estória que descobriu na infância, ela ganha em novas interpretações e significados. O que apreciamos nelas se transforma com a maturidade. Elas nos ensinam, nos tocam e emocionam. Nos convidam a enxergar o mundo com esperança.

Volta e meia encontro um livro cujo enredo me faz voltar àqueles tempos de inocência e me pergunto como teria sido se o tivesse descoberto quando criança, se ele tivesse sido uma parte da minha fundação. Tenho até uma tag dedicada ao tema cá no Coruja que começou com O Vento nos Salgueiros - depois saí usando a tag em livros que tinha lido anteriormente, mas foi a obra de Grahame que primeiro me colocou nesse estado de espírito. Nessas horas, penso também em como certos críticos menosprezam livros infantis, quase como se dissessem que isso não é literatura, que é uma coisa menor, desimportante.

No entanto, se formos pensar com cuidado, a literatura infantil é talvez a mais importante de todas: é a base, o começo, a primeira chance de tornar alguém um leitor. Não que as pessoas só aprendam a gostar de ler se forem encorajadas desde a infância, mas esse é o tempo ideal para tanto.

Pensando nelas através de sua função, as estórias surgiram como forma de transmissão de conhecimento, para explicar o mundo ao nosso redor. Esses contos, que repetimos ao longo dos tempos, são nosso primeiro aprendizado, a primeira base moral e ética que recebemos. Katherine Rundell, no maravilhoso ensaio Why You Should Read Children’s Books, Even Though You Are so Old and Wise, disse muito bem, “na verdade, a ficção infantil necessita destilação: em sua melhor forma, produz os mais puros e arquetípicos modelos de esperança, desejo, alegria, medo.”


É-me impossível aqui não rememorar a passagem em que Morte e Susan conversam em Hogfather - Pratchett continua a ser a melhor explicação para a importância dessas estórias, dos conceitos que apreendemos através delas e nos quais apoiamos nosso modo de viver:

“Está bem,” disse Susan. “Não sou estúpida. Você está dizendo que humanos precisam de… fantasias para fazer a vida suportável.”

MESMO? COMO SE FOSSE ALGUMA ESPÉCIE DE PÍLULA COR-DE-ROSA? NÃO. HUMANOS PRECISAM DE FANTASIA PARA SEREM HUMANOS. PARA SEREM O ESPAÇO NO QUAL O ANJO CAÍDO ENCONTRA O SÍMIO ASCENDIDO.

“Fadas do dente? Pai dos Porcos? Pequenos-”

SIM. COMO PRÁTICA. VOCÊ PRECISA COMEÇAR ACREDITANDO NAS PEQUENAS MENTIRAS.

“Para então acreditarmos nas grandes?”

SIM. JUSTIÇA. COMPAIXÃO. DEVER. ESSE TIPO DE COISA.

“Isso não são as mesmas coisas!”

VOCÊ PENSA ASSIM? ENTÃO TOME O UNIVERSO E TRITURE-O ATÉ O MAIS FINO PÓ E O PENEIRE PELA MAIS FINA PENEIRA E ENTÃO ME MOSTRE UM ÁTOMO DE JUSTIÇA, UMA MOLÉCULA DE MISERICÓRDIA. E AINDA ASSIM - Morte gesticulou com uma mão. E AINDA ASSIM VOCÊ AGE COMO SE HOUVESSE ALGUMA ORDEM IDEAL NO MUNDO, COMO SE HOUVESSE ALGUMA… ALGUMA RAZÃO NO UNIVERSO PELO QUAL VOCÊ PODERÁ SER JULGADA.

“Sim, mas as pessoas têm de acreditar nisso, ou qual o ponto-”

MEU PONTO EXATAMENTE.

Trocando em miúdos: Papai Noel nos ensina que o comportamento correto será recompensado - não apenas com presentes, mas, também, respeito. Um passo à frente dessa correlação e você descobre uma noção do que seja justiça. De estória em estória, de grão em grão, crescemos com as narrativas que consumimos. Elas nos ensinam sobre esperança, gentileza, que o mundo pode se tornar um lugar melhor. E também nos familiarizam com a perda e a injustiça e a necessidade de ver além das aparências. Chesterton nos disse isso muito bem quando quando escreveu que “contos de fadas são mais que verdade, não porque nos dizem que dragões existem, mas porque nos dizem que podemos derrotá-los”.

Quanto mais nos expomos a diferentes narrativas, diferentes pontos de vista, maior será também o nosso mundo, nossa capacidade de interpretar nossos sentimentos, os sinais ao nosso redor, de nos localizarmos em nossa própria cultura e aceitar o outro. No final, como sempre, tudo se encontra numa mesma palavra: empatia. A literatura permite que nos coloquemos no lugar do outro para que aprendamos sobre tolerância. Essa talvez seja a mais importante lição que podemos aprender em nossas vidas, e os contos infantis são parte deste aprendizado.


Rundell de novo:

Livros infantis dizem: o mundo é enorme. Eles dizem: a esperança conta para alguma coisa. Eles dizem: bravura importa, sagácia importa, empatia importa, amor importa. Essas coisas podem ou não ser verdade. Eu não sei. Eu espero que sejam.

Às vezes eu me ressinto de não ter nascido antes da época das Grandes Navegações, quando os mapas do mundo não tinham bordas definidas e era possível encontrar avisos de que "aqui há dragões". Mas aí eu me lembro que nesse período não havia água quente encanada, papel higiênico nem antibióticos e que, na verdade, era uma péssima ideia pertencer ao sexo feminino (ou ser diferente do padrão de qualquer forma. Arderam muitas fogueiras nessa época...). Mas é para isso que temos as estórias: para nos fazer acreditar que o mundo é maior e mais maravilhoso do que aquilo que podemos ver. Para deixar de lado por um momento o cinismo e o pessimismo e abrir o coração.

Há quem diga que se trata de escapismo. Essa é uma acusação comum a todo gênero literário que leve o leitor para longe do mundo real. Ursula Le Guin tem uma ótima defesa acerca do assunto: “acreditar que a ficção realista é por definição superior à ficção imaginativa é pensar que a imitação é superior à invenção”. Parafraseando Tolkien, ela diz ainda:

Quando um corretor de seguros lhe diz que a ficção científica não lida com o Mundo Real, quando um estudante de química lhe informa que a Ciência desmentiu o Mito, quando um censor suprime um livro porque ele não se encaixa nos cânones do Realismo Socialista e assim por diante, isso não é crítica, é intolerância. Se vale à pena responder, a melhor resposta é dada por Tolkien, autor, crítico e estudioso. A Fantasia é escapista, e essa é a sua glória. Se um soldado é aprisionado pelo inimigo, não consideramos que é seu dever escapar? Os agiotas, os sabe-tudo, os autoritários nos colocam a todos na prisão; se valorizamos a liberdade da mente e da alma, se somos partidários da liberdade, então é nosso óbvio dever escapar, e levar conosco tantas pessoas quanto conseguirmos.

Na verdade, quando lemos contos de fadas, estórias infantis, fantasia, ficção científica, especulativa de uma maneira geral, não estamos tentando escapar, mas sim nos encontrar, encontrar alguma espécie de verdade fundamental que faça o mundo ter sentido. E, ainda que assim o fosse, que tais livros fossem simplesmente refúgios, como tão bem disse o Tolkien, quem mais se preocupa com fugas são os carcereiros da prisão. Aqui está o que ele diz, e que inspirou as palavras de Le Guin:

Afirmei que o Escape é uma das principais funções das estórias de fadas e, uma vez que não as desaprovo, está claro que não aceito o tom de escárnio e pena com o qual o termo "Escape" é agora tão frequentemente usado: um tom para o qual os usos da palavra fora da crítica literária não conferem garantia em absoluto. No que os mais usuários do termo gostam de chamar de Vida Real, o Escape é evidentemente, via de regra, muito prático e pode mesmo ser heroico. Na vida real, é difícil culpá-lo, a menos que fracasse; na crítica, ele parece ser pior quanto melhor se dá.

Evidentemente estamos confrontados com um mau uso de palavras e também uma confusão de pensamento. Por que dever-se-ia escarnecer de um homem se, achando-se na prisão, ele tenta sair e ir para casa? Ou se, quando ele não pode fazê-lo, pensa e fala de outros temas que não carcereiros e paredes de prisão? O mundo lá fora não se tornou menos real porque o prisioneiro não consegue vê-lo. Ao usar "escape" dessa maneira, os críticos escolheram a palavra errada e, além do mais, estão confundindo, nem sempre por erro sincero, o Escape do Prisioneiro com a Fuga do Desertor.

Então, recapitulando: estórias infantis, contos de fadas, não são um gênero menor na literatura. Elas importam, têm poder, e, reduzidas a sua essência, são partículas das grandes verdades para as quais sempre retornamos. Elas desnudam nossos desejos, nossa fome, nossa necessidade de mudança e transformação, de amor, esperança, companheirismo. Sua complexidade não está ligada a ambiguidades, personagens tridimensionais cheios de sutilezas de caráter, mas sim na maneira como nos espelhamos nelas.

E, contrariamente ao que se possa pensar, elas não são ‘fáceis’ de escrever. Não as boas estórias, aquelas que ficam, que crescem conosco, as que lemos aos dez, aos trinta, aos sessenta. Um vocabulário acessível não significa um discurso canhestro que trata a criança como simplória - faz parte do jogo permitir que ela entenda pelo contexto, levá-la a pesquisar aquilo que não entende, ou mesmo entender o que lhe é estranho como parte da magia. Escritores infantis costumam ter um bom ouvido para ritmo: afinal, esses são contos para serem lidos em voz alta, narrados “fazendo as vozes diferentes”. A prosa dessas narrativas é poética, tem algo de percepção sinestésica que nos leva a mergulhar completamente nas paisagens que cria. É extremamente lógica, ainda que pensada fora da caixa: todo mundo que é familiar com contos de fadas sabe que existem regras a serem seguidas (muitas vezes o enredo começa no momento em que a Proibição é Desobedecida. Sim, com maiúsculas. Você sabe o porquê).

Aqueles que descartam tais estórias para soarem mais adultos não compreendem o tesouro que largam no meio da estrada. Por que elas não são apenas um refúgio quando o mundo brada ensurdecedoramente, roubando-nos o tempo, o vigor, o sonho. Elas são armas valiosas contra as necessárias decepções da vida, os compromissos que somos chamados a aceitar contra nossas princípios. Elas são esperança, coragem e generosidade.

Termino como comecei, citando C. S. Lewis: não desprezamos florestas reais porque lemos algum dia sobre florestas encantadas; em vez disso, ela faz todas as florestas reais um pouco encantadas. Então, permita-se a chance de acreditar. O mundo real talvez comece a fazer mais sentido depois disso.

Dez Anos em Dez Ensaios: Esse foi um dos ensaios mais difíceis da coleção para começar a escrever, embora ele estivesse nos planos desde o começo. Meu primeiro roteiro dos pontos a levantar foi completamente descartado, pouco a pouco o foco do artigo mudando de só falar da importância da literatura infantil até a necessidade de que adultos também leiam essas estórias. Ainda mais pelo fato de que elas foram feitas para sempre compartilhadas, contadas em voz alta, repetidas vezes sem conta. Foi também o ensaio que mais “colecionei” citações - porque ia lendo uma coisa e outra e anotando, pensando “isso aqui é algo que quero trazer para os leitores. Considerando que ele está vivendo na minha cabeça há mais de um ano já, o processo de escrevê-lo não foi tão complicado quanto o período preparatório e uma manhã foi o suficiente para afinal colocá-lo no papel.

Era Uma Vez || Parte I - Parte II - Parte III - Parte IV

Creepy Fairytales || Parte I - Parte II

Por Nárnia! || Parte I - Parte II - Parte III - Parte IV

Wonderland || Parte I - Parte II - Parte III - Parte IV

A Biblioteca do Gabriel - uma lista comentada de livros que queria partilhar com meu sobrinho Gabriel quando ele nasceu.

Por que os americanos têm medo de dragões? - tradução de ensaio de Ursula Le Guin

Deixe que Haja Dragões - tradução de ensaio de Terry Pratchett (pessoal gosta de citar dragões quando fala desse assunto...)

Histórias de Estrelas - minha tentativa de escrever um conto infantil. Provavelmente o conto mais difícil que escrevi na vida; acredite se quiser mas eu me gravei lendo em voz alta para entender como estava funcionando a cadência. Há um post aqui também sobre o processo da escrita.


A Coruja


____________________________________

 

2 comentários:

  1. Amei demais o seu ensaio. Tenho paixão por bons livros infantis e contos de fadas também, compartilhei no Face, precisamos todos cada vez mais dessas histórias

    ResponderExcluir
    Respostas
    1. Obrigada! Eu acho que essas histórias se perpetuam por gerações e são contadas e recontadas porque têm algo importante a dizer. Não necessariamente uma moral ao final, uma lição, mas o simples fato de nos oferecer um refúgio, uma lembrança, uma nesga de esperança. E temos precisado tanto disso nesses dias, não é mesmo?

      Excluir

Sobre

Livros, viagens, filosofia de botequim e causos da carochinha: o Coruja em Teto de Zinco Quente foi criado para ser um depósito de ideias, opiniões, debates e resmungos sobre a vida, o universo e tudo o mais. Para saber mais, clique aqui.

Cadastre seu email e receba a newsletter do blog

powered by TinyLetter

facebook

Arquivo do blog