15 de dezembro de 2022

A heroína de 1001 faces: O resgate do protagonismo feminino na jornada do herói


Como é estranho, e, ao mesmo tempo, lógico que tantas das nossas metáforas para contar histórias sejam advindas do campo discursivo da produção têxtil. Nós tecemos tramas, enovelamos histórias, compomos contos ou entrelaçamos os fios - uma lembrança de como o trabalho das nossas mãos produziu espaços sociais que promoveram o intercâmbio de histórias, primeiro, talvez, sob a forma de conversa fiada, fofocas e notícias, depois sob a forma de narrativas e outras pepitas de ouro carregadas de sabedoria divertida, transmitida de geração em geração.

Tão logo vi o título desse livro, cresci o olho para ele. Conhecia a Tatar pela coletânea anotada dos Contos de Fadas que a Zahar lançou por aqui, e a referência dupla que ele contém - à jornada do herói e Sherazade numa tacada só - é exatamente o tipo de isca que se usa para fisgar minha atenção. Convenientemente, ganhei-o de presente agora no fim do ano e ele atropelou toda a lista de leituras que tinha por fazer.

A Heroína de 1.001 Faces, como já bem declara só pela capa, explora a ideia arquetípica da jornada do herói trabalhada por Joseph Campbell, mas por uma perspectiva integralmente feminina, e não apenas colocando uma mulher no ciclo que ele definiu, mas mergulhando na experiência de ser mulher em mitos e contos de fadas, evoluindo até as protagonistas femininas que consumimos hoje pela mídia.

É importante frisar esse ponto, porque, nos escritos de Campbell, a mulher não é heroína, mas musa do herói, um prêmio a ser alcançado, um objeto a ser possuído. Como Tatar sublinha várias vezes - com falas do próprio Campbell -, o ideal máximo a que uma mulher pode aspirar dentro da jornada do herói é o de ser mãe. E ponto final.

Eu me lembro de quando descobri Joseph Campbell. Não foi por um ensaio ou matéria que li em algum lugar, tratando de assuntos folclóricos, mas numa menção a O Poder do Mito em Gilmore Girls. Rory abandona uma festa super concorrida para assistir o DVD da entrevista concedida por Campbell ao jornalista Bill Moyers.

São algumas longas horas de ‘falação’, sem efeitos especiais espetaculares, mas, uma vez tendo conseguido acesso a gravação (e ao livro com a transcrição), eu quase não consegui parar de assistir. Campbell tinha o dom de contar histórias, de colocar seu ouvinte sobre um tipo de feitiço, quase como um daqueles encantadores de serpentes.

Encontrei O Herói de Mil Faces na rua dos sebos atrás da faculdade e devorei-o. Fui a outros livros do Campbell em seguida - mas não me interessei muito por seus escritos mais místicos. O que me fascinava era sua forma de soprar vida nos mitos antigos, encontrar padrões e costurar o folclore de todos os cantos do mundo; e os desdobramentos disso para a criação da mídia que consumimos hoje em dia, dos livros aos filmes e séries. Foi assim, aliás, que acabei encontrando A Jornada do Escritor, do Vogler - e, usando de todas essas referências, trabalhei no ensaio sobre a jornada do herói cá para o blog - no mesmo ano em que Gaiman lançava seu Mitologia Nórdica por sinal.

Descobri enquanto rascunhava essa resenha que tenho ‘ciclos’ de leitura mítica. Mitologia é um assunto que me interessa desde criança quando descobri Hércules e todo o Olimpo com as aventuras de Emília, Pedrinho e o Visconde de Sabugosa na Grécia Antiga. Cheguei a um certo ponto de saturação e abandonei o assunto, até por volta dos treze, quatorze anos, quando mergulhei na minha fase ‘egiptóloga’. Vários volumes de Christian Jacq e muitas Sessões da Tarde com A Múmia depois (além da primeira leitura direta de As Mil e Uma Noites, outro ponto de saturação. Aí reencontrei meu gosto por mitologia nos primeiros anos de faculdade, quando descobri Campbell. Foi a época em que minha prateleira para o assunto mais se expandiu, com frequentes visitas à rua dos sebos - com um foco especial para as mitologias que tivessem servido de inspiração a O Senhor dos Anéis. É, eu sei, sou uma pessoa previsível…

Enfim, em 2020 entrei num novo ciclo, que começou com Stephen Fry demonstrando o quanto ainda bebemos da mitologia greco-romana, no que foi seguido por Natalie Haynes e Gail Carriger com suas perspectivas femininas desse arcabouço cultural que carregamos como frutos da civilização ocidental.

Tatar bebe em todas essas referências e foi interessante fazer sua leitura agora, porque foi como o culminar de várias reflexões inspiradas em todos esses pontos de vista diferentes de velhos temas. Eu gosto quando minhas leituras se empilham como escadinhas, uma ajudando a construir a compreensão da outra - especialmente quando se trata de uma ideia com a qual eu não atinara antes. Na verdade, A Heroína de 1.001 Faces me trouxe vários insights que deveriam ter sido óbvios, mas que eu talvez fosse muito nova para perceber quando fiz minha primeira leitura deles, especialmente no que diz respeito ao abuso, violência e silenciamento a que essas personagens femininas estavam constantemente ligadas.

E isso com uma ampla gama de heroínas, de todos os tipos, em várias roupagens e releituras. Tatar trabalha Cassandra e Briseida, Circe e Filomena, tanto nos textos cânones de figuras como Homero e Ovídio quanto na miríade de revisitações modernas desses textos, que vão de Madeline Miller a Margaret Atwood. Explora os contos de fadas com referência aos poemas de Anne Sexton e aos resgates de Angela Carter. Traz Sherazade e Jo March, Miss Marple e Anne Shirley, Nancy Drew e Lisbeth Salander, Hermione Granger e a Mulher-Maravilha. Explora as metáforas ligadas às artes têxteis e o narrar de histórias, a importância da curiosidade e empatia e uma constante busca de justiça e por se fazer ouvir em boa parte desses contos.

Com todas essas referências e desvelar de significados, Tatar demonstra o quão importante esses contos foram, e continuam sendo, na nossa cultura e identidade - num texto ágil, muito bem costurado com movimentos sociais, questões que embora sempre presentes, explodiram nos últimos anos em debates na grande mídia e redes sociais. É uma daquelas leituras que fica reverberando na cabeça, para o qual voltamos sempre que pegamos algo do material original que Tatar usou em sua pesquisa.

Outro que vai para a lista de melhores do ano.

Nota:
(de 1 a 5, sendo: 1 – Decepção; 2 – Mais ou Menos; 3 – Interessante; 4 – Recomendo; 5 – Merece Releitura)

Ficha Bibliográfica

Título: A heroína de 1001 faces: O resgate do protagonismo feminino na narrativa exclusivamente masculina da jornada do herói
Autor: Maria Tatar
Tradução: Sandra Trabucco Valenzuela
Editora: Cultrix
Ano: 2022

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