23 de abril de 2020

Dez Anos em Dez Ensaios - O Bardo é Pop


Assisti por esses dias montagens de Hamlet e Romeu e Julieta no Globe, em Londres - disponibilizadas por streaming no YouTube do teatro - e me surpreendi em como duas das mais clássicas tragédias do bardo me provocaram crises de riso. Não, eu não surtei (ainda) e virei uma pessoa sádica que se diverte com o sofrimento alheio. Ocorre que a dinâmica de palco dessas histórias foi apresentada de forma muito diferente do que vemos em filmes, que é a maneira mais comum de termos contato com as obras de Shakespeare.

Ler uma peça de teatro é um exercício muito diferente de assistir aquela peça. O básico do texto está ali e você pode fazer a interpretação daquelas palavras - no caso do bardo, deleitando-se com a poesia, a profundidade, a investigação que se faz da alma humana. Mas ao texto seco falta a linguagem corporal, a entonação, a forma como aquelas falas são apresentadas. Os filmes vão muito das percepções e pré-conceitos que as pessoas possuem até por aquilo que chamamos de imaginário coletivo. Assim, se Romeu e Julieta é uma tragédia, então o filme inteiro (e digo isso de várias das versões que assisti, de Zeffirelli a Luhrmann) se equilibra num fio de tensão que prenuncia essa tragédia, todos os diálogos ditos de forma grave, até mesmo solilóquios como o de Mercutio, conjurando Romeu pelos dotes de Rosalina.

No palco, as coisas acontecem de maneira diferente. Dei-me conta disso quando assisti ao vivo uma montagem de Sonho de Uma Noite de Verão. Eu gostava da peça, mas não era uma das minhas favoritas; confesso até que as partes do Bottom eu achava muito bobinhas. Ao sair do teatro naquele dia, contudo, minha opinião mudara radicalmente: Bottom era o máximo! Eu ri desbragadamente a peça inteira. Mas o mais interessante nessa experiência não foi minha mudança de percepção. Assisti essa montagem no já citado Globe, e fui acompanhada de uma prima que, à época, não tinha fluência alguma em inglês. Eu mesma não tinha certeza se conseguiria acompanhar o inglês elizabetano. Ambas tínhamos lido o texto da peça traduzido quando combinamos de ir ao teatro na viagem, mas estava no ar se conseguiríamos acompanhar as falas dos atores.

No final, a barreira da linguagem não foi um problema intransponível: linguagem corporal, entonação e nosso conhecimento prévio de sobre do que se tratava a peça foram suficientes para resolver a questão.


As coisas são diferentes no palco. O planejamento de acústica ajuda, mas você tem de saber como falar para ser entendido de qualquer lugar do teatro. Movimentos, expressões faciais, tudo é um pouco mais exagerado, mais grandiloquente, para poder ser enxergado. O cenário não muda, você tem de saber por onde sair e entrar, é necessário estar de frente para o público, de interagir com ele, de reter sua atenção, cativar. É preciso fazer das pessoas que estão te assistindo parte da estória.

Shakespeare, hoje em dia, é assunto para a Academia. Ele é debatido incessantemente por críticos, estudado até a exaustão, numa miríade de contextos. Deixando de lado os muitos filmes e versões adaptadas de suas obras, fato é que muita gente considera Shakespeare coisa de intelectual. Elitista. Essa não é minha opinião pessoal, mas já ouvi comentários nessa linha. O que é irônico a se considerar que o público original dessas peças era formado de gente completamente comum. Sim, a trupe de Shakespeare se apresentava para a aristocracia, normalmente chamada a fazer espetáculos particulares para a nobreza; mas quem ia ao teatro ou comparecia às apresentações quando o grupo caía na estrada era a plebe.

Shakespeare, em sua origem, é, e sempre foi, popular. Ele escrevia para as massas; não para críticos. Ele falava a língua das ruas e sabia o que vendia para seu público. Seus textos são repletos de trocadilhos verbais (muitas vezes sexuais), de piscadelas para eventos do dia, comentários políticos em subtexto que podem ter se perdido para nós, mas eram completamente transparentes para seus contemporâneos. Ele gostava de contar histórias dentro de histórias e trazer o teatro para dentro da peça e fazer graça com papéis de gênero num contexto em que apenas homens podiam atuar. Vide a questão de heroínas travestidas.

Temos Rosalinda de Ganimedes em Como Gostais, Viola apresentando-se como Cesário em Noite de Reis, Portia advogando por Antonio em O Mercador de Veneza, Julia disfarçada de Sebastian em Os Dois Cavalheiros de Verona, e Imogen como Fidele em Cymbeline. Interpretadas por meninos ou jovens rapazes imberbes, essas personagens se apresentavam como femininas no início da peça, por uma razão qualquer tinham de se disfarçar de homens e assim passavam toda o enredo até o final, onde se revelariam mulheres e dessa simultaneidade de papéis masculinos e femininos pode-se extrair muito humor fácil, ao gosto do público.

Palco do Globe Theater. Acervo pessoal.

A montagem que vi de Hamlet recentemente dava o papel de Ofélia a um rapaz, ao passo que o próprio Hamlet, seu fiel Horácio e o irascível Laertes foram interpretados por mulheres. Não trocaram o gênero dos personagens, apenas dos atores, o que não faz diferença para o texto, mas é uma experiência curiosa para quem está assistindo e que me fez refletir na experiência do público da época, em como o texto e a interpretação dos atores influenciam na suspensão de descrença de quem está assistindo.

A maneira como Shakespeare trabalha a ideia de uma peça dentro das peças é outro ponto muito interessante. Hamlet contrata uma trupe de atores para encenar a morte do pai e assim se certificar da culpa de Cláudio. A Megera Domada é uma história contada dentro de outra, uma travessura pregada num bêbado. Próspero, em A Tempestade, é diretor e protagonista de seu próprio espetáculo, que ele arma como vingança daqueles que o injuriaram. Há uma trupe se organizando para apresentar-se ao príncipe em Muito Barulho por Nada e claro, não podemos esquecer dos artesãos de Sonho de uma Noite de Verão.

Tudo isso tem a ver com um tema que aparece em praticamente todas as obras do bardo: nem tudo é o que aparenta ser ou, nas palavras do próprio, “nem tudo o que reluz é ouro”. Aparências e realidade estão na essência de muitos dos desencontros e traições que perpassam essas peças: os vilões shakesperianos estão sempre atuando, escondendo seu verdadeiro caráter (Iago é o melhor exemplo em que posso pensar); heroínas se disfarçam de rapazes; há uma profusão de máscaras e mascarados. Quando você menos espera, tudo pode mudar.

A primeira metade de Romeu e Julieta - a montagem que assisti - destaca o ridículo dos empregados das casas dos Capuleto e dos Montecchio replicando a briga de seus mestres. Romeu é menos angustiado, deprimido e suicida; até simpatizei um pouco com ele (e todo mundo aqui sabe o quanto detesto Romeu). Benvolio e Mercutio juntos são hilários. E Julieta tem exatamente o tom que se esperaria de uma adolescente de 14 anos (sempre simpatizei com Julieta, mas achei essa versão simplesmente adorável). O tom fica mais sério após Teobaldo chegar com seu desafio a Romeu, mas até o casamento dos protagonistas, a peça flui de forma muito divertida.

Primeiro Folio, exposto no Shakespeare's Centre em Stratford-upon-Avon. Acervo pessoal.

Fiquei tão embasbacada com o fato de ter rido durante essa encenação que fui pesquisar se era essa mesma a intenção e descobri que, de fato, até esse ponto, Romeu e Julieta vai pela comédia romântica. Quando Mercutio está à morte e lança uma praga às duas casas, esse é o momento da virada: é um prenúncio da tragédia que virá. Shakespeare nos leva do céu ao Inferno, nos dá esperança (Romeu se tarda a caminho do túmulo, talvez o frei consiga interrompê-lo) e depois nos joga no desespero.

De novo, vi-me mudando todas as minhas percepções e preconceitos em razão da forma como o texto que eu conhecia foi interpretado de maneiras que não me passavam pela cabeça. Eu não deveria me espantar com tal fato, mas me espanto: Shakespeare consegue te surpreender mesmo quando você tem familiaridade com a obra dele.

Então, recapitulando: Shakespeare é popular. Ele é acessível e prova disso são as inúmeras adaptações de suas obras, que o traduzem para a nossa linguagem moderna, mas não alteram seus significados. Shakespeare é engraçado, trágico, violento, estranho, louco, lúdico, universal. E sempre, extraordinariamente, humano. Não se assustem com o pentâmetro iâmbico. Quatrocentos anos depois de sua morte, suas peças emocionam, divertem e continuam tendo muito a nos dizer.

Shakespeare's Centre em Stratford-upon-Avon. Acervo pessoal.

Dez Anos em Dez Ensaios: Não acho que precise dizer que sou fã do bardo, não é mesmo? Nesse tempo todo de blog, Shakespeare apareceu vezes sem conta em resenhas, ensaios, listas do vertigem, até viagens… Pensei um bocado sobre como encaixaria ele nessa série, e o gancho veio assistindo Romeu e Julieta, o que é hilariantemente irônico, considerando meu ranço com Romeu. Enfim, hoje é dia internacional do livro, aniversário tanto de nascimento quanto de morte do bardo. Não podia deixar de aproveitar para escrever algo, não é mesmo?


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O Mundo Inteiro é um Palco || Parte I - Parte II - Parte III - Parte IV - Parte V


A Coruja


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