27 de dezembro de 2018
360º: Uma Jornada Muito Esperada || Parte III - God Save the Owl
“Quando um homem está cansado de Londres, está cansado da vida, pois há em Londres tudo o que a vida pode proporcionar”, disse Samuel Johnson, poeta, ensaísta, biógrafo e crítico dos mais importantes da história inglesa. Tendo a concordar com o doutor: sempre há algo mais para ver nessa cidade e, mesmo o que você já visitou pode te oferecer algo de novo.
Londres: tudo o que couber vai
Nessa viagem, minha estadia em Londres foi curta - dos dias que passamos na Inglaterra, deixei apenas um inteiro para andar pela cidade com a Dynha. De resto, fui para o interior cortar da minha lista alguns dos lugares que não consegui conhecer em visitas anteriores, mas que eram um desejo antigo. Mesmo assim, deu até para fazer bastante coisa nos cinco dias que tivemos no país, mesmo levando em consideração que cinco da tarde já estava tudo escuro.
É, eu sei que nessa época do ano escurece mais cedo, mas considerando que viajamos no outono, não imaginava que seria tão mais cedo. Inglaterra foi o país em que mais sentimos essa diferença, mas tudo bem, deu para fazer tudo o que tínhamos planejado.
Começamos com o Museu de História Natural - um dos poucos grandes museus gratuitos da cidade que eu ainda não conhecia. Achei-o simplesmente fantástico! Não deu para ver tudo - ele é enorme, cheio de exposições interativas e meu interesse principal, não vou negar, era ver a parte dos dinossauros. É um excelente museu para ir com crianças, divertido e educativo. E a arquitetura dele é de cair o queixo, para onde você se vira tem algum detalhe que te chama a atenção, até nas colunas que sustentam o prédio.
Seguimos para uma visita a Notting Hill - acho que todo mundo que assistiu o filme, mesmo não sendo um fã, fica com vontade de visitar o lugar, ver as casinhas coloridas e tudo o mais. Pena que não pudemos ir no dia que tinha a feirinha, mas para compensar, acabamos descobrindo sem querer uma das famosas placas azuis que marcam casas onde moraram personalidades famosas - nesse caso, George Orwell, o autor de 1984 e A Revolução dos Bichos.
Também fomos a Abadia de Westminster, mas, por conta dos preparativos para o Remembrance Day, o dia do armistício, a abadia estava fechada. O Parlamento e o Big Ben estão em reforma, o relógio coberto de tapumes. Mas mesmo com tudo aparentemente contra… essa foi uma das paradas que mais me emocionaram na viagem.
Quando pensamos - e falo aqui no ponto de vista de quem não viveu na época e que não tem ligação com a Europa - nas Grandes Guerras, a Segunda é muito mais lembrada - pela figura de Hitler, pela ideologia nazista, pelo horror do Holocausto. Pelo menos, foi o que mais foi ensinado nos tempos de escola. Da Primeira Guerra se fala como uma espécie de prelúdio: sabemos do assassinato no arquiduque Francisco Fernando - herdeiro do Império Austro-Húngaro - e… só. Eu não me lembro de nenhum outro nome ligado ao conflito de 1914-18 que tenha sido citado nas aulas de História.
Para os europeus, contudo, esse conflito foi extremamente traumático e explica muito da relutância de entrar num novo embate, abrindo espaço para Hitler fazer o que quisesse fazer. Essa foi a primeira guerra moderna, com armas modernas capazes de matar à distância, com as trincheiras que eram uma defesa tão mortífera quanto as granadas e metralhadoras, com o uso de gás como arma química, com foco deliberado nos civis. Ela ceifou uma geração, matou os mais jovens e brilhantes, mudou as fronteiras radicalmente, acabando com impérios e dinastias.
A Primeira Guerra terminou em 11 de novembro de 1918. Essa é uma data sempre celebrada na Europa, mas esse ano havia mais uma razão para lembrar e marcar o dia: foi o centenário do fim da guerra. Não me toquei disso quando estava fazendo planos para a viagem, não foi algo planejado, e talvez por isso mesmo tenha tido tamanho impacto ver como as pessoas lá prestavam suas homenagens.
Praticamente em todo lugar onde íamos, tinha gente usando broches com papoulas vermelhas - flores que são usadas como recordação dos soldados caídos. Às vezes víamos alguém usando medalhas, condecorações de batalha - jovens e velhos - e eu me perguntava se aquelas eram medalhas que eles tinham ganho ou que usavam para lembrar de parentes que tinham perdido, de quem talvez tinham apenas aqueles símbolos em lugar de um túmulo para visitar. Na frente da abadia, os jardins estavam tomados de pequenas cruzes, e as pessoas chegavam e ali escreviam o nome daqueles que tinham perdido.
E, se a abadia estava fechada, ao lado dela era possível visitar a Igreja de St. Margaret. Nos bancos, silhuetas transparentes guardavam lugares para soldados que jamais voltariam para sua paróquia. E lá estavam seus nomes: “there but not there”, ausentes, mas vivos na memória. Foi ali que nos sentamos, ao lado de uma daquelas silhuetas, e, sério, como não se comover? Enquanto escrevo, lembro do que senti em St. Margaret e fico com um nó na garganta. Sem ter nenhuma história pessoal em relação a soldados, não consigo nem imaginar como isso afeta as pessoas que de fato perderam alguém, para quem tem uma daquelas silhuetas em sua vida.
Fomos a Westminster no dia 09; no dia 11, que era de fato o dia do armistício, passamos pela Catedral de St. Paul. Na minha imaginação, sempre vou ligar St. Paul ao conto Vigia de Incêndio, da Connie Willis - mas também à nossa breve visita, pouco antes de começar o serviço religioso, entre pessoas elegantemente vestidas de preto (chapéus, chapéus e mais chapéus) e uniformes militares. A catedral estava cheia e por conta do nosso horário apertado, não ficamos para assistir a missa, mas foi o suficiente para fazermos ao menos uma oração.
De St. Paul atravessamos a Millenium Bridge, inaugurada em 2000 (um nome meio óbvio), parando para visitar o Globe (mas falarei dessa parte depois, quando tratar de Shakespeare) e depois correndo para a London Eye, pois tínhamos ingressos para a roda gigante com horário marcado.
Dica para quem não vai a Londres sozinho: há uma promoção da empresa nacional de trens - a National Rail - que permite que você compre dois ingressos pelo preço de um; ou melhor, você compra um ingresso e leva o segundo de graça. Para tanto, é necessário ter uma passagem de trem ou do metrô comprada através deles (é preciso prestar atenção nesse detalhe, porque você pode adquirir o passe do metrô em outros lugares, que não te permitem participar do programa) válida para a data em que você está fazendo a visita ao local do ingresso, bem como o cupom da atração visitada, que pode ser impresso aqui. A maioria dos grandes museus de Londres são gratuitos, mas as poucas atrações pagas costumam ser bem caras. Entre o ingresso para o tour do Globe e o London Eye, economizamos um total de £42 ou £21 para cada uma. Em outras palavras, é um negócio que vale muito, muito à pena.
Não tinha feito o passeio da London Eye ainda e, para nossa incrível sorte, pegamos um dia de céu azul e sol. Dava para ver a cidade a perder de vista, e até enxergar a parada que subia por Westminster, bem na nossa frente. Aliás, em termos de clima, não posso reclamar muito - por mais que Londres seja famosa pela chuva e neblina, tivemos poucos problemas nesse aspecto. Quando começava a chover era uma chuva rápida e não atrapalhou nenhum dos nossos planos.
Tendo visto a cidade de cima… seguimos para conhecer sua história, direto para o Museu de Londres.
Embora eu já tivesse visitado esse museu, das atrações mais famosas da cidade, esse foi o único que eu fiz questão absoluta de repetir com a Dynha, porque foi um dos meus museus favoritos quando fui pela primeira vez à cidade. O Museu de Londres não é apenas interativo - que é uma das coisas que mais me ganha quando visito museus - mas também colaborativo. Além de peças que vão desde a pré-história da região que hoje conhecemos como Londres - modelos para que você possa sentir texturas, vídeos, fotos, roupas de época que você pode vestir - faz parte da exposição desenhos, poemas, músicas feitas pela comunidade - crianças, jovens e adultos - que se relacionam ao que vemos exposto. É um trabalho social muito bacana e que torna a visitação ao museu, um lugar que costumamos associar com ‘coisas antigas’, uma experiência histórica mas com pitadas de contemporâneo. Considerando que o museu tem exposições homenageando os mortos do atentado de 2005 e também fazendo referência às Olimpíadas de 2012, é fácil perceber que eles estão sempre se atualizando.
Achei uma entrada para Nárnia no museu.... |
...e virei uma pirata. Ou corsária, afinal, os ingleses recebiam cartas de corso para atacar navios espanhóis... |
Devo dizer que a parte do museu que mais me impressionou - e que não existia quando o conheci em 2013 - foi sobre as sufragistas, em especial o vídeo de uns… dez, quinze minutos, que passava em loop, contando sobre as mulheres que fizeram parte do movimento e o impacto que as ações delas tiveram no feminismo e no que significa ser mulher nos dias de hoje. Não exagero ao dizer que saímos de lá arrepiadas.
Essas todas são coisas que fizemos durante o dia. Mas nossas noites também foram bem produtivas. Quando voltamos do Estúdio de Harry Potter, por exemplo, passamos pelo Museu Britânico - que, convenientemente, era aberto até tarde naquele dia da semana - para ver as múmias, algo que Dynha tinha tentado encontrar no Louvre mas não tivera tempo, e os frisos do Partenon.
Também visitamos um mercado de natal, que era algo que eu tinha muita vontade de ver, mas não tinha certeza se encontraria por essa época. Foi o mercado de Lancaster Square, pequenininho, mas cheio de coisas interessantes, comidas, enfeites natalinos, presentes… Fomos parar lá por acaso, entrando e saindo de ruas atrás de outras coisas: primeiro, a Forbidden Planet, a mais famosa loja de nerdices de Londres; achamos o teatro em que é apresentado Harry Potter e a Criança Amaldiçoada, depois o M&M’s World, que a Dynha queria conhecer; além da loja da Disney, a Hamleys (oito andares de brinquedos para todas as idades!) e uma Primark - onde endoidamos na coleção potteriana. Voltei de lá com um pijama, que era só o que ia caber na mala a essa altura, mas adorei meu souvenir.
Tudo isso ficava mais ou menos próximo de Oxford Street e Piccadilly Circus, centro da cidade em que terminamos praticamente todas as noites que passamos em Londres. Londres foi o único dos lugares que visitamos que já estava com a decoração natalina colocada e funcionando (Lisboa, nosso destino seguinte, estava começando a se enfeitar) e uma das experiências legais dessa viagem foi viajar por essas ruas num dos ônibus vermelhos de dois andares, tentando dar uma de corujas e fazer o pescoço virar 180º para conseguir enxergar tudo.
Bom é que o melhor ponto de ônibus para pegarmos o nosso retorno para o hotel era em frente à Waterstones de Piccadilly, também conhecida como a maior livraria da Europa. Preciso dizer que comprei livros aqui?
Londres é uma cidade com um ritmo meio alucinante, com momentos e lugares em que você tem a impressão de estar num formigueiro humano. Mas é uma cidade fascinante, que sempre tem algo a oferecer, seja quais forem seus gostos. Não posso deixar de concordar com Johnson, é difícil se cansar de Londres. Você pode se cansar de andar (bolhas e bolhas nos pés…), mas nunca vai poder dizer que já viu e conheceu tudo o que a cidade tem a oferecer, seja em arquitetura, em História, em cultura, e até em compras. Essa, afinal, é uma das cidades que há séculos é um dos centros da civilização ocidental.
Já pode começar a querer planejar um retorno?
Peregrinações literárias: Harry Potter, Shakespeare, Jane Austen
Embora eu dificilmente vá esgotar numa vida inteira tudo o que é possível ver e fazer em Londres, essa foi minha terceira vez na cidade, e meu interesse maior era fazer certas peregrinações ao interior que não tinha conseguido ir de outras vezes… exceto pelo estúdio do Harry Potter, que eu já visitara, mas fui de novo.
Considerando que eu e Dynha nos conhecemos quinze anos atrás em fóruns dedicados às histórias da J. K. Rowling, era justo que nossa viagem passasse por esse lugar. E, tendo experimentado o passeio sozinho e acompanhada, devo também dizer que se torna algo muito mais divertido quando você tem alguém com quem trocar figurinhas, fazer piadas e compartilhar histórias. Fora que o tour cresceu desde que fui lá em… acho que 2016, se não estou trocando as bolas. Toda a parte da Floresta Proibida, por exemplo, não existia, nem a estação com o trem usado nas gravações.
Claro também, que rolou brinde de cerveja amanteigada. Devo dizer que, considerando que a caneca vem de brinde, não achei as coisas tão caras. A gente inclusive almoçou no estúdio - eu imaginava que seria coisa do tipo fast food com preços inflacionados, mas fiquei satisfeita com valores e com a comida (esqueci de tirar foto, mas comemos uma batata recheada com salada que estava realmente muito gostosa. Excelente o tempero. Queria saber o que era… mágica talvez?).
Shakespeare foi minha parada seguinte no que se transformou numa verdadeira peregrinação literária. Tive oportunidade, das outras vezes, de assistir Sonho de uma Noite de Verão e Júlio César no Globe, experiências que foram inesquecíveis. Nas minha referências pessoais, a Inglaterra sempre esteve ligada à figura do bardo e era um desejo antigo ir a Stratford-upon-Avon, a cidade em que ele nasceu e para onde voltou após deixar os teatros.
Fui e voltei de trem, uma viagem de uma hora e meia mais ou menos, tendo de trocar de trem no meio do caminho - fazendo essa conexão em Leamington Spa, o tempo de viagem diminui em quase uma hora, além de o ticket sair mais barato do que indo direto de Londres. Tudo segue rigorosamente no horário, de forma que saí de Londres, cheguei na estação de troca e só fiz atravessar a plataforma de um lado para o outro e já entrei no trem seguinte, que esperava pela gente para seguir caminho a Stratford.
Para aproveitar ao máximo o dia, saí bem cedo de Londres; minha partida foi às sete da manhã, e o dia só foi começar a amanhecer quando já tínhamos deixado a estação para trás há algum tempo. Coisa que me impressionou foi ver a névoa que se derramava pelos campos e cidades por onde íamos passando. Havia lugares em que ela parecia quase sólida. Ouvimos falar do fog londrino e coisa e tal, mas eu não me lembro de ter alguma vez visto uma névoa tão espessa e tão próxima.
Cheguei em Stratford-upon-Avon e me perdi de início para sair da estação - falta uma sinalização mais clara nessa área para indicar em que direção seguir. É só depois de passar por um quarteirão com prédios em construção e tapumes (imagino que por causa da construção, a sinalização não é mais vista logo que sai da estação) que aparecem as placas mostrando para que lado ir.
O circuito de casas ligadas a Shakespeare compreende cinco lugares: Shakespeare’s Birthplace, o local de nascimento do bardo; New Place, área em que ficava a casa construída pelo dramaturgo quando já famoso; Hall’s Croft, residência da filha do bardo, Susanna, e seu marido, o médico John Hall; Anne Hathaway Cottage, chalé que pertenceu à família da esposa de Shakespeare; e Mary Arden’s Farm, fazenda que pertenceu à família da mãe do escritor. Desses cinco, visitei os três primeiros, que eram mais diretamente ligados aos meus interesses e estão no centro da cidade. O chalé de Anne Hathaway e a fazenda de Mary Arden são mais distantes, calculei mais de uma hora de caminhada para a fazenda. Na alta estação, há o ônibus hop in hop off que facilita essa integração, mas a linha estava suspensa quando viajei.
É possível comprar ingressos em separado para cada atração, mas o custo-benefício, se você visitar pelo menos duas das casas, é melhor para o passe que permite entrada em todos os pontos do roteiro.
Minha primeira parada foi o Shakespeare Birthplace, que começa no Shakespeare Centre, um edifício moderno com uma exposição sobre o bardo, seu legado e suas peças, incluindo, entre vários outros objetos de interesse, um volume do Primeiro Folio. Há um filminho projetado na sala entrada e achei que valeu muito à pena assistir ele completo - digo isso porque boa parte do público simplesmente passa direto pela sala e perde a experiência. Quem é leitor apaixonado de Shakespeare - e não apenas turista marcando pontinhos em lista de must see (posso dizer que não consigo entender a lógica de você pagar ingresso para visitar um lugar, só tirar selfies e outras fotos, sem parar nenhum momento para prestar atenção em nada do que está em seu redor, e depois de tirada a foto sair sem parecer realmente ter aproveitado o lugar?) - se emociona com as referências, as imagens de montagens das peças, de filmes, de relatos pessoais sobre a influência do autor, as declamações de poesia…
Saindo do centro passamos por um jardim com um mural bem divertido mostrando alguns detalhes curiosos das peças, e chegamos à casa onde Shakespeare nasceu. Ao longo da visita, monitores com roupas da época explicam cada aposento e objeto - com um destaque especial para a janela que, acredita-se, é do quarto onde o pequeno William nasceu. Peregrinos que vieram a Stratford homenagear, celebrar um escritor favorito ou procurar inspiração, deixaram seus nomes nessa janela e é possível encontrar a assinatura de Charles Dickens, sir Walter Scott, John Keats, entre muitos outros. Antes que me perguntem, não, hoje não é mais possível assinar a janela, mas existem livros de assinatura, se isso serve de algum consolo.
Ao deixar a casa e voltar ao jardim, você encontra atores a caráter declamando sonetos ou interpretando alguma cena - o visitante pode pedir algum monólogo preferido e eles improvisam ali na hora. Brilhante, não?
Saindo do centro e caminhando pelas ruazinhas de Stratford-upon-avon, encontramos várias construções da época - lembrando que Shakespeare nasceu em 1564, retornou aposentado como ator dos palcos londrinos em 1610 e aqui viveu até 1616. E é no lugar em que ele viveu seus últimos anos - e onde, acredita-se, tenha escrito A Tempestade - que passamos a seguir. A casa que o bardo mandou construir foi, infelizmente, demolida há mais de duzentos anos, mas a entidade que cuida de todas essas casas-museu adquiriu o terreno e transformou-o numa série de jardins com estátuas e monumentos que fazem referência às mais famosas peças do autor. Há um prédio com uma exposição sobre como era New Place quando os Shakespeare lá viviam, mas isso é menos importante que a parte ao ar livre.
Devo dizer que adorei New Place - foi meu lugar favorito na cidade. Minha visita se deu num dia meio nublado - peguei mais de uma pancada de chuva enquanto caminhava, mas eram aguaceiros passageiros e eu tinha minha sombrinha na bolsa -, mas, mesmo assim, deu para aproveitar muito. É um lugar gostoso, que transmite uma paz enorme, e no qual eu poderia passar um dia todo sentada, ou passando de uma estátua a outra, lendo passagens das minhas histórias favoritas.
De New Place, saí correndo para Hall’s Croft. Essa casa toca apenas tangencialmente no legado do bardo - afinal, aqui viveu a filha favorita do autor, Susanna, casada com John Hall. Hall’s Croft é interessante por preservar o mobiliário e a arquitetura jacobina, mas sua atração principal são as referências à prática da medicina à época - com objetos e painéis que explicam as terapias e os medicamentos mais utilizados.
Não muito longe do Hall’s Croft se encontra a Holy Trinity Church, onde é possível visitar o túmulo de Shakespeare. O bardo mandou marcar sua tumba com um aviso: “Curst be he yt moves my bones”, ou direto ao ponto ‘maldito será aquele que mover meus ossos’. Curiosamente, diz-se que nunca houve uma exumação do corpo do autor, em parte, por causa da tal inscrição.
Holy Trinity Church foi minha última parada oficial em Stratford-upon-Avon, porque a essa altura as pancadas de chuva começaram a se repetir com maior frequência e eu ainda tinha um longo caminho a fazer de volta para a estação. Caminhando pela cidade, contudo, há muito que se ver e fazer: um pequeno cais junto ao rio Avon, estradinhas que seguem por entre as árvores e em tempo mais seco poderia abrigar um belo piquenique, o Royal Shakespeare Company - onde, se você estiver com tempo, pode se programar para assistir uma peça - ou mesmo um passeio de barco no rio que dá nome à cidade.
Na volta a Londres, vale uma visita ao Globe, o teatro reconstruído à semelhança do Globe de 1599, no auge da carreira de Shakespeare. Eu já tinha assistido peças no teatro, mas nunca visitara as exposições ou fizera o tour do prédio e foi com esse programa que terminei minha peregrinação shakesperiana. Achei o tour interessante, com seus figurinos, cenários, um vislumbre do que existe por trás das cortinas e a reconstituição do que era ir ao teatro naqueles tempos. Mas, no caso de você só poder escolher a visita à exposição ou assistir uma peça, sempre prefira a peça. É… mágico.
Tendo batido praticamente tudo que tinha para ver sobre Shakespeare, é claro que eu não poderia deixar de também visitar outra das minhas autoras favoritas, não? Assim é que reservei meu último dia na Inglaterra para outra peregrinação literária, desta vez austeniana. Na primeira vez que viajei pros lados de lá, consegui ir a Bath, cidade em que ocorre boa parte da ação de Persuasão e A Abadia de Northanger, mas que não era tão querida por Austen (embora eu a tenha achado encantadora).
Desta vez, meus destinos eram Winchester - a cidade em que ela passou seus últimos dias e onde está enterrada - e Chawton, vilarejo em que morou após a morte do pai e lugar em que foi mais produtiva, que lhe deu paz e segurança para exercer toda a sua genialidade.
A princípio, minha ideia era utilizar Winchester apenas como rota para Chawton Cottage, parando na catedral para ver o túmulo da Austen. Mas aí, quando comecei a pesquisar sobre a cidade, percebi que ela seria muito mais que uma parada estratégica, mas um lugar que valia muito à pena visitar!
Winchester foi a primeira capital da Inglaterra, reconstruída pelo legendário e magnífico rei Alfredo, o Grande. Perto da estátua que homenageia o fundador da cidade, há um centro de informações turísticas de onde partem vários passeios guiados e são distribuídos mapas e sugestões de lugares para visitação. Vale à pena começar a visita por aqui, até para pegar uma mapinha e não se perder na cidade (se bem que sempre é bom se perder e assim encontrar coisas inesperadas…).
Fui para Winchester de ônibus, já que a estação era praticamente do lado do meu hotel e o tempo de viagem de trem era apenas alguns minutos menor… Viajar de ônibus na Inglaterra foi tão confortável e tão pontual quanto viajar de trem. Para lugares mais próximos de Londres, vale à pena consultar o National Express; as passagens são mais baratas mesmo compradas mais próximo da data de partida e a diferença de preço é grande - meu ticket de Londres a Winchester de ônibus custou seis libras ao passo que a passagem de trem de Alton (cidade mais próxima de Chawton) para Londres foi dezoito libras (em compensação, era uma passagem livre que eu poderia usar em qualquer horário e flexibilizava minha volta).
Cheguei bem cedo, e a parada de ônibus é justamente na frente da estátua do rei Alfred. Dali, saí caminhando direto para a Catedral de Winchester, que tem mais de mil anos de idade, possuindo a mais longa nave medieval da Europa. No início do século XX, o chão da catedral começou a afundar e descobriu-se que suas fundações de madeira estavam corroídas pela água - porque o nível da água sobe na região na época de chuvas (que na Inglaterra é mais ou menos… sempre). Até a cripta que construíram para enterrar o povo nunca foi utilizada, porque volta e meia ela fica completamente alagada. Para salvar o prédio, o mergulhador William Walker trabalhou seis horas diárias, sozinho nas fundações alagadas, muitas vezes na mais completa escuridão, empilhando sacos de concreto e estabelecendo as novas fundações do prédio. O trabalho durou entre 1906 e 1911 e, segundo o guia que nos levou pela catedral, nesse período ele tirou folgas apenas em natais e no dia do enterro do filho.
Meu plano era passar no máximo uma hora na catedral. Gosto de visitar igrejas e conhecer a história delas, mas meu principal interesse nessa catedral era a tumba de Austen. No final das contas, meu tour durou quase duas horas, atrasou todo meu cronograma, mas não me arrependo de nada (inclusive porque me atrasar foi, na verdade, uma baita sorte. Mas falarei disso mais adiante)! E isso se deve ao guia que nos levou a conhecer os segredos da catedral.
Os guias lá eram todos voluntários. Eram também, todos, idosos. Eles não apenas conhecem a história do prédio, como viveram partes dela. Não sei como funciona esse sistema, mas achei uma ideia fantástica, porque ganhamos nós, que temos alguém experiente e que de forma óbvia ama aquele lugar e ganham eles, que convivem com gente de todo o mundo Como cheguei cedo, o grupo de turistas de que fiz parte tinha apenas cinco pessoas - contando comigo - o que tornou mais fácil a interação com nosso guia, John, que provavelmente já passou dos oitenta, mas estava lá, firme e forte, para nos levar pra cima e para baixo, com muitas curiosidades e humor por compartilhar.
Ao deixar a catedral, saí procurando o palácio onde fica guardada a Távola Redonda. Acabei seguindo na direção oposta, para Wolvesey Castle, antigo castelo e palácio do bispo de Winchester - mas as ruínas estavam fechadas até abril, de modo que não consegui visitá-las. Não me estressei, porque quando cheguei nos portões que guardam o terreno, percebi que não era ali que estava a Távola; além disso, ter me perdido na direção de Wolvesey Castle fez com que eu tropeçasse na casa em que Jane Austen viveu seus últimos dias - e que não estava em nenhum dos mapas que tinha catado antes, preparando minha peregrinação.
Pois é, aqui a gente se perde para poder se encontrar.
Enfim, após passar pela casa da plaquinha azul, dar de cara com o portão fechado do palácio do bispo e voltar para o centro da cidade, passei pelo centro de informações turísticas para confirmar a direção da Távola e também os horários dos ônibus para Alton. Descobri que o ônibus passava de uma em uma hora na frente da estátua do Alfred (meia em meia hora se fosse durante a semana…), que eu já tinha perdido o horário em que planejara deixar Winchester e que era hora de jogar meu cronograma fora.
Mas, no final das contas, eu tive tempo suficiente para fazer exatamente o que eu queria fazer: chegar até o Great Hall, única parte sobrevivente do antigo Castelo de Winchester, construído em 1067, e dar de cara com a Távola Redonda. Ok, não é a távola legítima do rei Artur - a mesa foi datada entre 1250 e 1280, no reinado de Edward I e a pintura foi comissionada por Henry VIII em 1522 - mas é o mais perto que temos de chegar das lendas arturianas.
Curiosidade: Sir Walter Raleigh - famoso corsário e espião, um favorito da Rainha Elizabeth - foi julgado aqui por traição e participação num complô contra James I. Enfim, após percorrer todo o Great Hall, saí meio que em desabalada corrida ladeira abaixo (a Great Hall fica numa colina, à esquerda da rua principal da cidade), parando ocasionalmente para respirar e tirar fotos de alguma coisa que tivesse me chamado a atenção.
Cheguei na parada precisamente na hora em que o ônibus para Alton chegava e me sentei ao lado de uma senhorinha simpática que foi conversando comigo o tempo todo - e que partilhou suas lembranças da Segunda Guerra, quando, criança, foi mandada pelos pais para o interior por conta dos bombardeios alemães. Minha cabeça foi parar em Nárnia por um minuto, não apenas por causa do início do livro de C. S. Lewis, mas pela minha própria fascinação com tudo o que ela estava contando.
Chawton é um pequeno vilarejo entre as cidades de Winchester e Alton. Saindo de Winchester, são cerca de cinquenta minutos até a parada - no meio da estrada - para Chawton. Mas tudo bem, é só atravessar uma rotatória e tudo é bem sinalizado, não há risco de se perder e ficar vagando pela auto-estrada no interior da Inglaterra até virar a Dama de Branco de alguma lenda urbana sobre fantasmas.
Após deixar o ônibus, em pouco menos de dez minutos eu já estava diante da placa que anunciava ter entrado em Chawton e logo em seguida dei de cara com o Jane Austen’s House Museum. Eu achava que teria de andar bem mais que isso, mas Chawton é bem pequena, não tem muito como ficar perdida.
A casa de Chawton foi o lugar em que Austen viveu seus anos mais produtivos como escritora. É um museu pequeno, mas simpático - assim como os atendentes. Quando cheguei, era a única turista presente e assim tive um tour meio que só para mim. Fui e voltei, estive diante da mesinha em que Jane escrevia, coloquei cartola e capa, treinei caligrafia e me apaixonei perdidamente pelo lugar. Chawton dá a impressão de uma casa em que vivem pessoas reais e não apenas um museu solene em seu silêncio sepulcral.
E aqui foi que se revelou uma benção eu ter me atrasado na catedral em Winchester e meu cronograma ir para as cucuias. Mais gente chegara enquanto eu estava na biblioteca e uma senhorinha simpática, ao me ouvir perguntar como eu deveria fazer para chegar à estação de trem em Alton, me ofereceu carona. Descobri ali que ir a pé de Chawton para a estação era um pouco mais distante do que eu imaginara; estava escurecendo (quatro e meia da tarde o sol já começava a se pôr…) e garoando e eu não tinha ideia de quanto tempo teria de esperar por outro ônibus passando pelo mesmo ponto em que desci. Se não fosse pela carona daquela senhora - uma colega janeite que foi o caminho todo conversando sobre Austen - provavelmente teria me perdido, ficado encharcada e morrido de pneumonia, já que nenhum Willoughby ou Coronel Brandon apareceria para me resgatar (e eu não tenho vocação para Marianne Dashwood).
Eis então que aqui termina minhas peregrinações literárias pela Inglaterra. Gostei muito de conhecer Stratford-upon-Avon, Winchester e Chawton; não exauri as belezas e oportunidades que eles oferecem, mas foi o suficiente para acalmar a ânsia que eu sentia em descobri-las, que me fez passar meio que como um furacão, tentando ver o máximo no tempo que tinha.
Tenho agora a imagem desses lugares na minha cabeça e me pergunto como isso vai afetar a forma como leio as obras do bardo ou da Austen de agora em diante - como a memória afetiva de ter caminhado pelo lugar que eles caminharam fará parte da experiência. Acho que sempre que reler esses livros, vou viajar de novo por eles.
A Coruja
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