21 de abril de 2020
Os Noivos do Inverno: Intrigas, Casamentos Arranjados e um Mundo em Pedaços
Suspensa no meio da noite, suas torres afogadas na Via Láctea, uma formidável cidadela flutuava sobre a floresta sem que qualquer coisa a prendesse ao resto do mundo. Era um espetáculo completamente louco, uma enorme colmeia expulsa pela terra, um entrelaçado tortuoso de masmorras, pontes, nichos, escadas, arcobotantes e chaminés.
Da primeira vez que bati o olho na capa desse livro, já me apaixonei. O título, as cores, a ilustração: algo naquilo tudo me chamava. Coloquei na lista de desejos e no All Hallow's Read do ano passado, ganhei ele de presente (obrigada de novo, Fernanda!). Coincidentemente, comecei a leitura ao mesmo tempo em que revia os filmes do Estúdio Ghibli na Netflix e por isso me dei conta de que a razão de ter ficado fascinada com a capa é que ela me fazia lembrar O Castelo Animado. E, quanto mais eu lia, mais a Dabos me remetia às histórias do Miyazaki: visualmente falando, eu imaginei o livro inteiro como uma das animações dele, dos cenários aos personagens.
Primeiro de uma quadrilogia - que já foi toda publicada lá fora, então com sorte não teremos de esperar umas décadas até os próximos volumes aqui no Brasil -, Os Noivos do Inverno ganhou vários prêmios, incluindo um dos maiores prêmios franceses em ficção especulativa, o Grand prix de l’Imaginaire em 2016, na categoria romance juvenil em língua francesa. Confesso que há tempos não me animava muito em ler títulos Young Adult, mas com tantas credenciais interessantes, como eu poderia resistir?
Tudo começa com um casamento arranjado entre Ophélie e Thorn. Ophélie, nossa protagonista, é uma Leitora - capaz de ler a história de objetos através do toque de suas mãos - bem como uma Passa-Espelhos, o que lhe permite atravessar e viajar entre superfícies reflexivas. Esses não são poderes tão incomuns na sociedade em que vive: uma “arca” chamada Anima, em que todos são descendentes de um mesmo e poderoso espírito familiar, Artemis. Thorn, por sua vez, vem do clã dos Dragões, descendentes de Farouk, da arca Polo, e conta com uma memória prodigiosa, além do poder das garras - uma forma de atacar telepaticamente o sistema nervoso de qualquer criatura.
Ilustração original da capa por Laurent Gapaillard |
Ophélie não tem muita escolha; tampouco Thorn parece interessado nesse casamento. A despeito disso, ela segue para a Cidade Celeste no Polo para esperar até o casamento e sobreviver a um mundo de intrigas, onde todo mundo odeia seu noivo e de bom grado a veria pelas costas. Para sua própria segurança, sua chegada não é anunciada e, posteriormente, ela tem de se disfarçar de pajem da tia aristocrata de Thorn, Berenice - que, por acaso, é a mesma pessoa que arranjou o casamento dos dois e tem um interesse bem específico nessa união..
O ritmo da história é devagar, mas isso é compensado pela construção de mundo, pela sutileza dos detalhes que vão se revelando pouco a pouco - tanto sobre o universo em que estamos, como da situação de Ophélie. Nada é dito de forma clara e explícita; é através das nuances de caráter que vamos compreendendo os personagens e sua narrativa. A figura misteriosa dos espíritos familiares e sua relação com o que quer que tenha acontecido nesse mundo desintegrado em arcas; a tenacidade de Ophélie em fugir dos padrões que tentam impor a ela; a ambiguidade dos supostos aliados da protagonista, e do próprio Thorn, que está bem longe de ser um herói padrão a conquistar a mocinha: Dabos constrói Os Noivos do Inverno de uma forma muito elegante, que, na minha experiência, não é tão comum nos romances juvenis, e que me surpreendeu em sua complexidade.
Ler um objeto exige esquecer-se um pouco de si para dar espaço ao passado dos outros. Passar por espelhos exige enfrentar a si mesmo. É preciso ter estômago, sabe, para se olhar bem nos olhos, se ver como é, mergulhar no próprio reflexo. Aqueles que escondem o rosto, que mentem para si, que se veem melhores do que são, nunca conseguiriam.
Aliás, é extremamente curioso como ela consegue fazer o leitor torcer pelo relacionamento de Ophélie e Thorn, especialmente a se considerar que Thorn é descrito de maneira muito pouco lisonjeira. Ophélie é pequena, desajeitada e extremamente míope, o que a coloca confortavelmente naqueles estereótipos de mocinha-patinho-feio comuns no gênero. Ela não se importa particularmente com sua aparência e vive para o trabalho, embora isso não a faça nem um pouco previsível. Sua ética, seus princípios, e sua liberdade são o que mais interessam a ela. Thorn, por outro lado, é extremamente alto e magro, repleto de cicatrizes e tão taciturno e brutal quanto sua aparência e nome revelam (sério, ‘thorn”, espinhos, que nome mais perfeito para esse homem tão espinhoso!). Metódico, está sempre às voltas com os números. Ela vem de uma comunidade matriarcal em que todos se tratam como família; ele é um bastardo numa sociedade extremamente classicista em que todos vivem de aparências. Eles são em tudo opostos e, à primeira vista totalmente aversos ao outro. Mas será mesmo?
Ilustração de Miss-Pannacotta |
Thorn começa a se interessar de verdade pela noiva ao perceber que ela não é tão frágil quanto aparenta. Seu antagonismo inicial se dissolve quando Ophélie demonstra que não tem interesse em ser peça decorativa ou peão nos jogos de poder do Polo. A autenticidade dela, tão diferente de tudo com o que ele está acostumado, é fascinante. E o melhor de tudo é percebermos isso através da própria Ophélie - afinal, estamos acompanhando a história pelo ponto de vista dela -, o que demonstra que ela presta tanta atenção em Thorn quanto ele, nela. Nesse aspecto, o relacionamento dos dois me lembrou demais Lizzie e Darcy em Orgulho e Preconceito; ou, melhor ainda, Margaret Hale e John Thornton (os nomes são até parecidos!), de Norte e Sul (até porque, Anima é uma arca sulista e o Polo é no norte!).
No que eles parecem representar opostos, a verdade é que eles têm muito em comum. Ambos desejam fugir ao papel imposto a eles pela sociedade em que vivem, tendo uma força de vontade fora do comum para enfrentar esses pré-conceitos. Os dois têm dificuldades de se socializar e utilizam as percepções dos outros para tirar força disso: a aparente timidez de Ophélie e a aura intimidante de Thorn têm o mesmo papel. Ironicamente, embora usem a maneira como os outros os percebem para seus próprios fins, desprezam os jogos de fumaça e espelhos em que estão encarcerados. Daí que o grande conflito entre eles é uma questão de confiança: Ophélie é sempre genuína e espera o mesmo nível de honestidade de Thorn, algo que ele aparenta ser, mas não é totalmente. Thorn tem seus próprios objetivos com esse casamento e, que ele não os tenha revelado para Ophélie é algo que ela não consegue perdoar.
O que acontecerá a seguir? Bem, temos três volumes a frente para desvendar. Seja como for, Os Noivos do Inverno é uma ótima leitura, com um universo rico sobre o qual fiquei muito curiosa para saber mais e um elenco de personagens envolvente. O segundo título já chegou aqui em casa e deve ser uma das minhas próximas leituras. Depois disso… não sei se vou me aguentar até o próximo livro traduzido. Talvez seja a hora de forçar aquela fluência na leitura em francês que tanto tem me escapado...
Nota:
(de 1 a 5, sendo: 1 – Não Gostei; 2 – Mais ou Menos; 3 – Gostei; 4 – Gostei muito; 5 – Excelente)
Ficha Bibliográfica
Título: Os Noivos do Inverno
Autor: Christelle Dabos
Tradução: Sofia Soter
Ilustrações: Laurent Gapaillard
Editora: Morro Branco
Ano: 2018
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