12 de março de 2020

Dez Anos em Dez Ensaios - Albus Dumbledore: mago, mentor, manipulador


“Eis o ponto comum de todas as variantes do heroísmo concebidas pelo folclore universal: a criatura privilegiada ou eleita com vistas a tarefas sobre-humanas só pode ser um rejeitado, uma criança abandonada, sacrificada, crivada de golpes por aqueles mesmo que têm o dever de protegê-la. Não que o herói seja exaltado unicamente em virtude da resistência de que dá provas nos infortúnios de seus primórdios, sendo-o sobretudo porque, expulso de casa e assim obrigado a romper os laços de sangue, liberta-se das coerções carnais e espirituais que constituem o essencial da fatalidade para o homem comum. O mito não tem outra sabedoria a transmitir sob suas metamorfoses e prodígios, pois, embora diga claramente que ninguém é profeta em seu país, o faz sempre mostrando que só é profeta o homem sem família nem vínculos, o filho da pessoa que se engendra a si próprio em suas obras, o exilado que não conhece volta, sendo por isso mesmo escolhido para os mais elevados destinos.”

Quando li o trecho acima no livro Romance das Origens, Origens do Romance, da crítica francesa Marthe Robert, pensei na Jornada do Herói, sobre como os “escolhidos” de várias histórias começavam sempre como órfãos, a ausência de figuras parentais fortes sendo um requisito básico para a existência do Chosen One - e como quase sempre há um mentor nos bastidores bem versado nas artes da manipulação para empurrar o herói ao caminho certo; um caminho que não raro passa por auto-sacrifício.

À primeira vista, os mentores dos grandes heróis não me parecem muito convictos de que seus escolhidos serão capazes de fazer as escolhas certas (ou mesmo iniciar sua jornada) sem certa dose de manipulação. Bem, talvez possamos interpretar tais atitudes como “ensinamentos”... Depende do ponto de vista? Vejamos...

Merlin tem esse papel para Arthur, ao menos nas versões em que ele faz parte da infância do futuro soberano, que não conhece sua verdadeira descendência. Merlin, o arquétipo do mago mentor, influencia o próprio nascimento do herói: é ele quem transforma Uther na imagem do marido de Igraine para que o rei deite com ela, sob a condição de que o mago será responsável pela educação do filho que é resultado desse estupro. Arthur cresce longe dos pais, sem saber quem é de fato, totalmente a mercê dos desígnios de Merlin.

Gandalf, sucessor natural do mago que ajudou a moldar Camelot, é agente de transformação na vida de vários órfãos. Ele manipula Thorin Escudo de Carvalho para que o rei exilado retome Erebor - retirando do jogo o dragão Smaug, que teria sido importante aliado para Sauron no conflito que ele prevê para a Terra-média. A possível queda de Thorin na loucura que persegue sua família é um fator na decisão, mas é desconsiderado frente ao bem maior que a libertação de Erebor teria no grande esquema das coisas. Bilbo e Frodo Bolseiro, ambos órfãos, são levados a sair porta afora no caminho da aventura por maquinações de Gandalf. O próprio Aragorn, que tanto reluta em aceitar a coroa que lhe pertence por direito (ele também um órfão, auto-exilado) resigna-se a sua posição por influência do Mago Branco.

Numa lista de magos mentores, contudo, não creio que haja um manipulador tão convicto de que os fins justificam os meios quanto o diretor de Hogwarts, Albus Dumbledore. Talvez tenha sido algo que ele aprendeu com Gellert Grindewald - ele bem demonstra sua capacidade de manejar Newt Scamander no segundo filme de Animais Fantásticos e Onde Habitam e Grindewald impressiona exatamente por sua capacidade de usar e distorcer a verdade e os desejos de seus seguidores para alcançar seus próprios objetivos. A escala em que ele controla Harry Potter, contudo, está um nível acima que alguns elogios e cutucadas bem colocadas para tirar Newt de suas tentativas de neutralidade.


Aliás, quando foi que Albus decidiu substituir os ternos elegantes pelas túnicas coloridas e enfeitadas? O que leva um homem - um mago poderoso - a se vestir de forma tão excêntrica? Perguntas, perguntas…

Enfim, comecemos do começo: a opção de deixar Harry aos cuidados dos Dursley, num total isolamento do mundo bruxo. As razões de Dumbledore podem fazer sentido a princípio: os Dursley são os últimos parentes de sangue de Harry e isso dará ao garoto uma proteção especial baseada no sacrifício de Lily Potter. Há de se ter esperança que, ainda que as irmãs tivessem rompido relações, a tragédia e o envolvimento de uma criança inocente levariam Petúnia a acolher o garoto.

Levando em consideração a importância de Harry como a criança da profecia, contudo, seria de se esperar que Dumbledore tivesse decidido conversar pessoalmente com os Dursley, em vez de largar o bebê na porta deles com uma carta explicando tudo. Ou que algumas proteções adicionais estivessem em vigor, algo que permitisse, mesmo à distância, saber o que estava acontecendo no número 4 de Privet Drive. Talvez até a visita de um assistente social, um funcionário do ministério ou mesmo alguém da confiança do diretor, que pudesse verificar se a família está se adaptando bem e se Harry está de fato em segurança.

No entanto, o que somos levados a crer como leitores é que Harry cresceu sem qualquer supervisão do mundo mágico. Que ninguém sabia que o garoto foi colocado no armário debaixo da escada, forçado a fazer todos os serviços domésticos, muitas vezes deixado com fome: trancá-lo no armário sem comida é um castigo recorrente. Harry dificilmente é chamado pelo próprio nome - ele é “aquele garoto” ou algum insulto -, além de ser o alvo preferencial dos punhos de Dudley (e não duvido que, em algum momento, também tenha sofrido na mão de Vernon). Não tem nada para chamar realmente de seu: suas roupas, brinquedos, tudo são descartes do primo, sendo apresentado ao resto do mundo como um delinquente; isso quando não é simplesmente escondido como se houvesse algo de vergonhoso em sua existência. Nada que ele faça é suficiente para os Dursley: ele é um peso, um desperdício de espaço, uma caridade, e ele cresce ouvindo que não merece afeto ou qualquer cortesia.

Quando a primeira carta de Hogwarts chega para Harry, ela é endereçada ao armário debaixo da escada, então não se pode dizer que não exista algum tipo de monitoramento. Só que, no calor dos acontecimentos, o leitor - especialmente o que está lendo pela primeira vez - não percebe isso. Pelo menos, eu não percebi. Foi só quando fiz minha releitura da saga, sabendo de tudo o que aconteceria dali pra frente, que me ative a tal detalhe.


Então, Harry chega a seu primeiro ano em Hogwarts. Pessoalmente, eu o imagino sendo o menor da turma - pergunto-me até se nas várias visitas dele à Enfermaria, Madame Pomfrey não teria percebido ou se a magia inerente dele teria corrigido as consequências da subnutrição de seus anos de formação. Um tico de gente com uma extrema necessidade de provar a si mesmo. Provar que não é o desastre que os Dursley sempre disseram que ele era, e provar também que ele merece a admiração que o mundo bruxo acaba de despejar em suas costas - algo que, ao meu ver, justificaria o Chapéu Seletor querer colocá-lo na Sonserina. Provar que ele merece estar em Hogwarts, fazer por merecer não voltar para Privet Drive.

E aí entra em cena Severus Snape, o professor de poções.

Há quem justifique a forma como Snape trata Harry como necessária para que o garoto não fique cheio de si. Mas, a se considerar a maneira como o garoto foi criado, o abuso (e sim, foi abuso) a que ele foi exposto desde muito cedo, acho difícil imaginá-lo como arrogante; pelo contrário, Harry tem uma péssima autoestima. E isso era necessário ao personagem, era uma característica que Harry precisava ter para que, chegando ao final da jornada, ele achasse completamente aceitável caminhar para a própria morte.

Mas estou me adiantando. Fato é que, embora Snape salve Harry diversas vezes, ele perpetua o abuso dos Dursley e um abuso que o próprio professor sofreu - a julgar pelas memórias de infância que nos são mostradas - e que deveria ser capaz de identificar em seus alunos. Salvar a vida de Harry não desculpa as humilhações, insultos, castigos. É sempre bom lembrar que Snape escolheu acreditar na retórica de Voldemort, ele escolheu se juntar aos Comensais da Morte, e só se arrependeu porque a mulher que ele amava tornou-se um alvo de seu Lorde das Trevas. Se a profecia tivesse feito referência a qualquer outra pessoa que nada tivesse a ver com Lily Potter, Snape não teria procurado Dumbledore e decidido se tornar um espião.

E Snape não faz isso só com Harry: como justificar o tratamento que ele dispensa a Neville, por exemplo? O pai de Neville, até onde se saiba, não era um inimigo pessoal do professor (não que os pecados do pai justifiquem a vingança no filho), mas isso não impede Snape de decidir aterrorizá-lo, ordenar que o garoto dê uma poção possivelmente mortal para seu animal de estimação e depois o castigue porque Trevor não morreu. O que Snape teria feito se Trevor tivesse morrido? Ele não teria como trazer o animal de volta. Como seria possível justificar esse grau de crueldade?


Dumbledore não estava alheio ao tratamento que Snape dispensava a seus alunos. Não como talvez se pudesse argumentar que ele estivesse alheio ao que os Dursley faziam. Como diretor de Hogwarts, ele tinha poder suficiente para intervir. Mas não o faz. Ao contrário, as ações de Dumbledore são pensadas para pôr à prova seu jovem escolhido. Que outra justificativa haveria para o desastre que é o enredo de A Pedra Filosofal?

Vejam, ele sabe que Quirrell é um perigo - muitos livros depois, vemos nas memórias de Snape que ele queria que seu mestre de poções ficasse de olho no outro professor - e, mesmo assim, deixa que ele fique em Hogwarts como professor. Ele até podia não saber com certeza que Voldemort estava possuindo o corpo de Quirrell, mas sabia que algo estava errado e achou razoável permitir o risco num castelo repleto de crianças. Mais que isso até: ele intencionalmente usou a escola como uma armadilha, atraindo a atenção de Voldemort com a guarda da pedra filosofal.

O gabinete se dissolveu, mas reapareceu instantaneamente. Snape andava de um lado para outro diante de Dumbledore.

– ... medíocre, arrogante como o pai, deliberadamente indisciplinado, encantado com a fama, exibido e impertinente...

– Você vê o que espera ver, Severo – disse Dumbledore, sem erguer os olhos do exemplar de Transfiguração Hoje. – Outros professores me informam que o garoto é modesto, amável e tem algum talento. Pessoalmente, eu o acho uma criança cativante.

Dumbledore virou uma página e disse sem erguer os olhos:

– Vigie Quirrell, por favor.

Se o objetivo, de fato, fosse a guarda da pedra, Dumbledore teria encantado o Espelho de Ojesed - como fez na história - e depois teria enviado o espelho para outro lugar. Mas o que ele faz é, primeiro, dar a Harry as ferramentas necessárias para a aventura (a capa de invisibilidade, o primeiro encontro com o espelho, para que o garoto soubesse como ele funcionava) e, depois, estabelecido um desafio dentro da capacidade de crianças do primeiro ano (não é coincidência que cada uma das provas para chegar à pedra envolva talentos pessoais de Harry, Ron e Hermione, ou esteja no currículo, como o Visgo do Diabo, planta estudada por eles em Herbologia). Repito, se o real interesse fosse manter a pedra segura, você não colocaria um jogo de xadrez no caminho para ela! O que você está me dizendo com isso é que toda aquela corrida de obstáculos é, de fato, um jogo!

Resumindo: Dumbledore acha aceitável colocar Harry (e o resto de Hogwarts) em risco, de forma a prepará-lo para o que vem por aí. O que é uma única criança contra a vida de todo o resto da sociedade bruxa?

Convenientemente, todas as vezes que Harry tenta pedir ajuda ou dar informações a um adulto , ele sofre uma decepção, de tal maneira que, a partir do quarto ano, ele não procura mais as figuras de autoridade em sua vida. Do que adianta? Ou eles não acreditam e se recusam a ajudar; são uma fraude, ou ainda têm outras prioridades.

No primeiro ano, McGonagall se recusa a crer nos avisos de perigo à pedra filosofal. No segundo, Lockhart se volta contra ele e Ron quando os dois tentam lhe contar sobre a Câmara Secreta e assim salvar Ginny. No terceiro, Remus não fala a ninguém sobre o fato de Sirius ser um animago, protegendo e priorizando (talvez até de forma inconsciente) o amigo, em lugar dos alunos. Ninguém vem em defesa de Harry quando ele é selecionado para o Torneio Tribruxo, seu nome colocado na taça pelo Moody que ninguém percebeu ser um impostor.

Aliás, essa substituição é um negócio irônico, considerando que não é a primeira vez que acontece: Percival Graves, com um cargo equivalente ao de Moody, foi substituído pelo próprio Grindewald e, apesar disso, décadas depois, ninguém pensara ainda em uma defesa eficaz contra impostores usando polissuco? Bruxos não aprendem mesmo com seus erros passados, né?

Talvez pior que o torneio seja o fato de que o conselho de McGonagall para Harry sobre Umbridge seja manter a cabeça abaixada… abrindo caminho para que ele decida ficar calado sobre a Inquisidora usar detenções para tortura - de novo, não fujamos da palavra. Da mesma forma que o que os Dursley e Snape fazem é abuso, o que Umbridge pratica é tortura. Vez que Harry - acostumado a esconder as injúrias que sofre - não é a única vítima, não consigo crer que todos os professores tenham ficado cegos ao que Umbridge estava fazendo. E, mesmo assim, ninguém faz nada.

Snape, ao dar a aparência de não se importar com as palavras de Harry sobre Sirius, dá a ele o impulso final para seguir para o Departamento de Mistérios e a tragédia que lá o espera. A essa altura, Harry está tão acostumado a depender apenas de si mesmo que ele não raciocina, ele age. É o desespero, a falta de confiança, de uma rede de segurança em que se apoiar. Se Snape podia ou não ter encontrado uma maneira de sinalizar a tempo para o garoto que Sirius estava a salvo, é algo que só podemos conjecturar. Mas, conhecendo Harry como ele conhecia, Snape deveria ter uma ideia do que esperar, não?

Sexto ano tem Draco Malfoy. Harry estava certo em desconfiar de Draco, Dumbledore estava ciente da missão do sonserino e, apesar disso, o diretor se recusou a ouvi-lo. E isso a despeito do fato de que pedira a Snape que descobrisse o que o jovem Malfoy estava tramando! Mais uma vez, Harry tinha informações vitais, incompletas, mas concretas o suficiente que poderiam ter impedido a invasão de Hogwarts. Se, pelo menos, tivessem ouvido, dado uma chance de explicar, acreditado…

Voltando ao que escrevi mais acima, para Harry ser Harry Potter, O-Garoto-que-Sobreviveu, o Escolhido da profecia, ele precisa ser órfão, precisa ser alguém sem protetores reais, criado por uma família que não se importa com ele, sendo constantemente decepcionado pelos adultos em sua vida. Harry precisa ser convencido de que tudo depende dele, que ele precisa fazer tudo sozinho. Mais que isso, Harry precisa aprender que, no grande esquema das coisas, ele é descartável. Sua existência como algo para além de um símbolo é irrelevante. É isso que viver com os Dursley lhe ensina, que impacta brutalmente sua autoestima, que o coloca caminhando na Floresta Proibida direto para sua morte, sem questionar, sem reação, aceitando completamente o fato de que ele foi treinado para se entregar em sacrifício para Voldemort.

E tudo isso é feito sob os auspícios de Albus Dumbledore.

– Harry não pode saber, não até o último momento, não até que seja necessário, do contrário como poderia ter a força para fazer o que deve ser feito?

– Mas o que deve fazer?

– Isto é entre mim e Harry. Agora escute bem, Severo. Virá um tempo... depois da minha morte... não discuta, não interrompa! Virá um tempo em que Lorde Voldemort temerá pela vida da cobra dele.

– Por Nagini? – Snape pareceu admirado.

– Exatamente. Quando chegar o momento em que Lorde Voldemort parar de mandar a cobra cumprir os seus mandados, e a mantiver segura ao seu lado, sob proteção mágica, então, acho, não haverá perigo em contar a Harry.

– Contar o quê?

Dumbledore inspirou profundamente e fechou os olhos.

– Conte-lhe que na noite em que Lorde Voldemort tentou matá-lo, quando Lílian pôs a própria vida entre os dois como um escudo, a Maldição da Morte ricocheteou em Lorde Voldemort, e um fragmento da alma dele irrompeu do todo e se prendeu à única alma sobrevivente na casa que desabava. Parte de Lorde Voldemort vive em Harry, e é esta parte que lhe dá tanto a capacidade de falar com cobras quanto uma ligação com a mente de Lorde Voldemort que ele jamais entendeu. E enquanto esse fragmento de alma, de que Voldemort não sentiu falta, permanecer preso e protegido por Harry, Lorde Voldemort não poderá morrer.

Harry teve a sensação de estar observando os dois homens do fim de um longo túnel, tão distantes estavam dele, as vozes ecoando estranhamente em seus ouvidos.

– Então o garoto... o garoto deve morrer? – perguntou Snape, muito calmo.

– E é Voldemort quem deve matá-lo, Severo. Isto é essencial.

Seguiu-se outro longo silêncio. Então Snape falou:

– Pensei... todos esses anos... que nós o protegíamos por causa dela. De Lílian.

– Nós o protegíamos porque era essencial que fosse ensinado, criado e pudesse experimentar a própria força – explicou Dumbledore, com os olhos ainda fechados. – Nesse meio-tempo, a ligação entre os dois foi crescendo, um crescimento parasitário: às vezes penso que Harry suspeita disso. Se bem o conheço, tomará providências para que, ao sair ao encontro da morte, isto represente, verdadeiramente, o fim de Voldemort.

Dumbledore reabriu os olhos. Snape estava horrorizado.

– Você o manteve vivo para que pudesse morrer na hora certa?

– Não fique chocado, Severo. Quantos homens e mulheres você viu morrer?

– Ultimamente apenas os que não pude salvar. – Ele se levantou. – Você me usou.

– Em que sentido?

– Espionei por você, menti por você, corri risco mortal por você. Supostamente tudo para manter o filho de Lílian Potter vivo. Agora você me diz que o esteve criando como um porco para o abate...

Reler a saga a luz da conversa que Dumbledore tem com Snape - que vemos nas memórias do professor de poções, quase ao final de As Relíquias da Morte - muda nossa interpretação do diretor de Hogwarts como um sábio mentor ligeiramente excêntrico. Que as intenções de Albus fossem boas (derrotar Voldemort e salvar o mundo bruxo) não o absolvem de seu papel de ‘mestre das marionetes’. Mais que um protetor, ele é uma sombra perturbadora, tão impiedosa quanto a que Voldemort lança sobre Harry - especialmente se você aceita a ideia de que ele foi conivente com todos os abusos sofridos pelo garoto. Há argumentos suficientes para pintá-lo como vilão: ele acredita em sua retórica e é capaz de qualquer coisa para atingir seus objetivos, incluindo aí sacrificar pessoas inocentes por sua causa.


E não, Dumbledore não tinha como saber que Harry voltaria de sua morte. Se foi uma aposta do diretor, foi um palpite bem arriscado. Não: quando Dumbledore disse que Harry precisava morrer, ele não estava pensando numa morte temporária.

A traição de Dumbledore quase não pesava. Naturalmente houvera um plano maior; Harry fora simplesmente tolo demais para enxergá-lo, percebia agora. Jamais questionara sua suposição de que Dumbledore o queria vivo. Agora entendia que a duração de sua vida sempre fora definida pelo tempo que gastaria para eliminar todas as Horcruxes. Dumbledore transferira a ele a tarefa de destruí-las, e, obedientemente, ele continuara a cortar os laços que ligavam não apenas Voldemort, mas ele próprio, à vida! Que precisão, que elegância, não desperdiçar mais vidas, mas entregar a perigosa tarefa ao garoto que já estava marcado para o abate, e cuja morte não seria uma calamidade e sim mais um golpe contra Voldemort.

A complexidade de caráter de personagens como Dumbledore e Snape é um ponto genial em favor de J. K. Rowling. Toda essa desconstrução deles não significa que eu tenha passado a desgotar de ambos; pelo contrário, eles se tornam infinitamente mais ricos e interessantes dessa forma. Gosto de personagens maquiavélicos - no sentido original do termo - porque eles costumam render ótimas reflexões e Dumbledore se encaixa como uma luva nessa categoria.

Tomando por base tais fatos, há de se perguntar: até onde podemos aceitar que os fins justifiquem os meios? É moralmente aceitável despejar a responsabilidade de salvar uma inteira sociedade nos ombros de uma criança, com base numa profecia? São razoáveis todos os esquemas de manipulação que Dumbledore utiliza ao longo da saga? Todos os sacrifícios que ele permite? E porque diabos Harry batizaria o filho com o nome Albus Severus depois de tudo isso?????

(Na verdade, o epílogo da saga não faz o menor sentido pra mim. Nessas horas, só apelando para fanfics: li uma que decidi que seria meu epílogo pessoal, perfeitamente no tom, narrada pela McGonagall, com Harry tornando-se professor de Defesa, sonserinos não-vilanizados e uma cena em que ele tem um momento extremamente catártico com o retrato de Dumbledore. A quem interessar, o nome é Hogwarts, to welcome you home).

Dez Anos em Dez Ensaios: Mais de duas décadas se passaram desde a publicação do primeiro volume de Harry Potter, mas a saga continua gerando conteúdo, reflexões, polêmicas e debates. Minha geração cresceu com o bruxinho e ele é hoje parte intrínseca de nossa cultura e imaginário coletivo. Eu comecei a escrever e publicar na internet por causa dele - primeiro no fanfiction.net, depois histórias coletivas num esquema quase de RPG no Expresso Hogwarts, que serviu de degrau à criação do Coruja. Assim, não tinha como ele não aparecer por aqui nessa série de ensaios. Passei um tempo remoendo que tema queria tratar, até encontrar a citação da Marthe Robert e costurar com um bocado dos meus sentimentos acerca do Dumbledore. A despeito de tanta desconstrução, confesso que o diretor de Hogwarts continua a ser um dos meus personagens favoritos da saga e gostaria de ver mais dele nos próximos episódios de Animais Fantásticos e Onde Habitam.


Lumos || Parte I - Parte II - Parte III - Parte IV

A Jornada do Herói || Parte I - Parte II - Parte III - Parte IV - Parte V

As (outras) Casas de Hogwarts: uma defesa de lufanos, corvinais e sonserinos - um ensaio no qual tagarelo um bocado sobre como departamentos de marketing deveriam prestar atenção na existência do Chapéu Seletor e como nos importamos com as qualidades que cada uma das casas de Hogwarts representa.


A Coruja


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2 comentários:

  1. Ahhhhh nossa, adorei sua análise! Já tinha lido alguns ensaios sobre Dumbledore e seu dedo para manipulação, mas você trouxe os elementos completos da saga, do livro um ao sete, deixando essa jornada maquiavélica bastante em evidência. Eu gosto muito desse ponto da série porque, no fim, JK expõe Dumbledore realmente por quem ele foi durante todo esse tempo: um vilão.

    Esperando mais ensaios seus sobre HP! Vinte anos depois e ainda não nos cansamos de debater esses livros.

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    1. Que bom que gostou! Esse é mesmo um debate do qual nunca nos cansamos, não é mesmo?

      Não sou uma fã de maniqueísmos. Acho que o tipo de complexidade ambígua que vai no caráter de Dumbledore e Snape - que são os exemplos do ensaio - enriquecem demais a história. Curioso é que estava tudo lá, desde sempre, mas precisamos daquelas conversas da memória de Snape para entender o contexto e enxergar as coisas como elas são.

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