5 de março de 2020

O Mundo Invisível entre Nós: poesia, decadência e estranheza


"Não faz sentido. Por que você não destrói o fóssil? Por que não destrói essa coisa?" Ela bate no vidro com força com a palma da mão. "Se é segredo, se ninguém pode saber, porque você não se livra de tudo?"

"
Você conseguiria destruir essas coisas?", pergunta o homem. "Não, achei que não. Você não fez uma espécie de juramento de buscar respostas, mesmo quando as respostas são inquietantes, mesmo quando são impossíveis? Pois é, querida, eu também."

Sabe quando você se apaixona por uma capa sem nem olhar a sinopse? Ou quando um título fica ecoando na sua cabeça e você fica imaginando a história por trás dele? Ou quando um autor te conquista de tal forma que o nome dele faz o dedo coçar antes mesmo do bendito entrar em pré-venda? Tudo isso me aconteceu quando dei de cara com O Mundo Invisível entre Nós, da Caitlín Kiernan e não hesitei em colocá-lo na lista de desejos.

A Menina Submersa foi um romance que me surpreendeu muito e, embora eu não seja uma grande fã de fluxo de consciência como ferramenta narrativa, o estilo, a voz da Kiernan me impactaram profundamente. O Mundo Invisível entre Nós, que reúne contos publicados entre 1993 e 2004, permite observar a evolução desse estilo, como Kiernan foi consolidando sua maneira de escrever e ver o mundo, além de estudar os temas que aparecem de forma constante em seu trabalho. De um ponto de vista crítico, uma antologia como essa é puro ouro, porque você tem a chance de enxergar esse desenvolvimento de uma forma linear e tudo num lugar só.

E o progresso é claro. Os contos da primeira parte (93 a 99) são interessantes, mas muitas vezes terminam de forma abrupta e te deixam atarantado. Alguns parecem ter sido escritos mais pelo desejo de chocar que para contar uma história, sendo claramente experimentais. Os da segunda (2000 a 2004), por outro lado, são excelentes - mais longos, melhor finalizados, com enredos definidos.

Se tivesse de escolher uma única palavra para definir essa coletânea, eu diria… perturbadora. Kiernan traz à tona o pior da humanidade em muitas dessas histórias: mesquinhez, falta de empatia, abuso, vingança, abandono, preconceito. Seus protagonistas muitas vezes vivem às margens da sociedade: imigrantes, viciados, prostitutas, artistas, visionários e loucos de toda espécie. Ao mesmo tempo, ela tem uma incrível capacidade de tornar a decadência com que pinta muitos de seus cenários em algo delirantemente belo.

Kiernan bebe de muitas fontes e é interessante que cada história é acompanhada de um frontispício com uma curta nota sua explicando algo da inspiração por trás do enredo. Folclore eslavo, personagens de clássicos, uma inteira série de contos com clara referência lovecraftiana, anjos, rusalkas, zumbis, bruxas canibais, sereias, casas assombradas… ela consegue se apropriar muito bem de suas referências e dar sua forma a elas. O fantástico e o não tão fantástico convivem juntos de forma tão prosaica que ela consegue torcer as coisas no final para que se tornem estranhas. E o estranho, o surreal, têm lugar de destaque em seus mundos.

Mais que isso, ler seus contos tem algo de sinestésico. Ela te faz sentir os cheiros, sabores, cores, o pulso de seus personagens. Tira seu fôlego, deixa suas pernas bambas, estômago embrulhado. Você se sente tragado pelas águas da enchente, pelas noites de tempestade, pelo vento parado e sol escaldante. Esse é o tipo de livro ao qual é difícil ficar indiferente: repulsa ou sedução, mas não passividade.

Por fim, gostaria de dizer que, mais uma vez, a Darkside me fez ficar de queixo caído com a beleza de suas edições. Da capa - que captura muito bem a beleza sinistra dos contos - à guarda, aos frontispícios com desenhos anatômicos de insetos que parecem imagens de pesadelo, às ilustrações que aparecem no começo e fim do livro, e o corte dourado das páginas, tudo faz de O Mundo Invisível entre Nós uma caixa de jóias. Toda vez me impressiono com o projeto gráfico da editora, mas acho que eles se superaram aqui.

Nota:
(de 1 a 5, sendo: 1 – Não Gostei; 2 – Mais ou Menos; 3 – Gostei; 4 – Gostei muito; 5 – Excelente)

Ficha Bibliográfica

Título: O Mundo Invisível entre Nós
Autor: Caitlín R. Kiernan
Tradução: Regiane Winarski
Editora: Darkside
Ano: 2020

Onde Comprar
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A Coruja


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