30 de maio de 2017
A Jornada do Herói - Parte V: Dando um Trato no Roteiro
Falei um bocado de Campbell, de histórias, dei vários exemplos bastante acessíveis, e agora é a hora de resumir tudo o que aprendemos e simplificar para entender como todos os estágios da jornada nos ajudam a criar uma história universal, histórias que geram empatia, com as quais somos capazes de nos identificar. Para isso, vou usar Vogler, que reduz e renomeia algumas das fases que já acompanhamos, trazendo a teoria de Campbell para o mundo dos roteiros e da cultura pop, fora da busca por significados místicos que está extremamente presente no professor.
Ok, então, Vogler manteve as três partes do ciclo do monomito, mas em vez de dezessete, há doze etapas em seu ciclo da jornada do herói. Como bem diz Vogler, se estamos tratando de um herói de mil faces, então é possível novas interpretações do mito, ainda que derivadas do esquema mítico identificado (não simplesmente inventado) por Campbell, então mudanças não devem ser encaradas como heresias. O contador de histórias adapta para suas necessidades a jornada, usando esses estágios como uma caixa de ferramentas, ‘uma forma, não uma fórmula’.
O primeiro ato da narrativa, que ele define como o momento em que herói decide agir é composto por cinco etapas: o primeiro é a apresentação do mundo comum como forma de demonstrar o contraste com o que virá adiante; seguido do chamado à aventura, que apresenta o problema ao herói; a recusa do chamado onde o herói reluta por medo do desconhecido; o encontro com o mentor, momento de preparação e motivação do herói e, claro, a travessia do limiar, o início da jornada após o protagonista aprender a dominar seu medo.
O segundo ato representa a ação propriamente dita da história, dividido em quatro momentos: testes, aliados e inimigos, quando o herói começa a aprender as regras do jogo, sendo um período de adaptação, de procurar informações e de passar por desafios que o forcem a crescer; a aproximação da caverna oculta, uma travessia de limiar, fronteira do lugar onde se esconde o objeto da busca; provação, quando o protagonista passa por um confronto direto com seu maior medo, enfrentando a possibilidade da morte e recompensa, quando ele toma posse do tesouro que veio buscar.
O terceiro e último ato são as consequências da ação, possuindo apenas três fases: o caminho de volta, na qual o herói precisa encontrar motivação para retornar para casa, podendo sofrer retaliações e perseguições na estrada; ressurreição, ou a transformação do caráter do herói, a última provação antes da derrota final do inimigo e, finalmente, o retorno com o elixir, o regresso ao ponto de partida reconhecendo, porém, que o herói mudou , que ele é diferente de como era no começo.
Não é difícil correlacionar Vogler e Campbell. Tendo explicado o monomito tal como detalhado em O Herói de Mil Faces, não vou me repetir. O que Vogler faz de interessante é justamente mostrar a jornada do herói não como uma pesquisa de mito comparado ou um caminho de iluminação pessoal, mas como uma ferramenta de escrita, uma forma de pensar em como criar sua própria história e não apenas identificar o passo-a-passo em autores antigos.
Para além disso, Vogler também junta à teoria do monomito os arquétipos ou funções de personagem identificados por Vladimir Propp, o folclorista russo que escreveu Morfologia dos Contos de Fadas no início do século XX. Os arquétipos, para Propp, não eram papéis rígidos para os personagens, mas funções que eles desempenham temporariamente para trazer determinados efeitos à história.
Na classificação original de Propp, são sete as classes de personagens ou agentes, divididos por esferas de ação: a primeira esfera é a do agressor, ‘o que faz o mal’; a segunda é a do doador, que dá ao herói o objeto mágico; a terceira esfera cuida do auxiliar; a quarta é a princesa e o pai; a quinta é o mandador, aquele que manda; a sexta esfera é o próprio herói e a última, o falso herói. Na nomenclatura de Vogler, essas sete classes são facetas da própria personalidade do herói, sendo elas, de novo, o herói, o mentor, o pícaro, o arauto, o camaleão, o guardião do limiar e a sombra. Para identificar a natureza de um arquétipo, Vogler propõe que se façam duas perguntas: que função psicológica ou que parte da personalidade seu arquétipo representa e qual a sua função dramática na história.
O herói tem por função psicológica a busca de identidade e a transcendência do ego. Já sua função dramática é servir como ponto de identificação com a plateia, através do qual projetamos nossa jornada pessoal. Seu ciclo inclui amadurecimento, ação e sacrifício, bem ainda como a consciência da morte. Aliás, sacrifício é algo essencial ao arquétipo: ele é alguém que “está disposto a sacrificar suas próprias necessidades em benefício dos outros". A própria etimologia da palavra nos diz o que é mais importante compreender sobre a essência desse personagem: herói vem do grego e significa, literalmente, proteger e servir.
Morpheus, protagonista de Sandman, é um ótimo exemplo de herói clássico (e trágico). Aliás, Sandman, de uma maneira geral, é um perfeito exemplo de como funciona a jornada do herói, como utilizar os temas universais presentes nos mitos para construir histórias cuja amplitude emocional vai de um extremo a outro do mundo.
O mentor é a personificação da consciência - é o grilo falante, a fada madrinha, o professor, o mestre. Entre suas funções dramáticas estão a de ensinar, dar presentes, motivar o herói, plantar informações, iniciar o personagem nos diversos ritos da vida, incluindo aí a iniciação sexual. Para Morpheus, sua irmã mais velha, Morte, é provavelmente a melhor encarnação desse arquétipo. Destruição também age como um mentor, especialmente já ao final da história, mas Morte é a verdadeira consciência de Sonho, estando por trás de muitas das decisões que deram início à jornada dele.
Falamos já do guardião do limiar, visto ele estar bem presente no monomito. Guardiões podem ser asseclas do vilão, personagens neutros ou mesmo aliados ocultos do herói. Sua função psicológica é de representar nossos demônio internos, nossas neuroses - são os obstáculos que enfrentamos em nosso dia-a-dia. Eles estão na história, primordialmente, para testar o herói.
Considerando que eles aparecem muitas vezes antes que o herói se ponha a caminho em sua busca, bem como antes dos momentos de mudança crítica, creio que as Moiras seriam uma boa indicação para representar essa figura.
Seguindo o esquema de Vogler, o próximo grande arquétipo é o do arauto. Ele é quem nos chama à mudança e, na narrativa, costuma ser o impulso inicial para a aventura, a motivação para que o herói deixe seu conforto para lançar-se à jornada. Delírio faz as vezes de arauto para empurrar Sonho em seus passos finais da jornada. É ela que o convence a partir em busca de Destruição e é na busca por Destruição que Sonho se põe frente a frente com Orpheus e realiza o maior sacrifício que um herói poderia fazer.
O camaleão é o mais complexo dos arquétipos e, como fica óbvio pela nomenclatura, é um personagem que está sempre mudando - de aparência ou de humor. Constantemente, o camaleão está ligado à questões de sexualidade e relacionamentos, surgindo para lançar a sombra da dúvida, a tensão do suspense ao roteiro. O interesse amoroso do herói é, muitas vezes, um camaleão, mas, de maneira geral, esse é um personagem sobre o qual o protagonista e a plateia não têm certeza sobre o que esperar.
Há muitos camaleões em Sandman, claro, mas nenhum é tão óbvio e segue tanto a definição literal quanto Desejo, que possui duas naturezas, feminina e masculina; cujas intenções estão sempre ambíguas e cujo relacionamento com Sonho é um dos pontos de maior tensão na história.
O pícaro talvez seja mais conhecido pelo nome em inglês - trata-se do trickster, personagens que aparecem em todas as mitologias, presença frequente dos contos de fadas. Loki, da mitologia nórdica e Puck, de Sonho de uma Noite de Verão são a pura definição desse arquétipo - e gosto particularmente de pensar neles dessa maneira em suas encarnações gaimanianas. O pícaro costuma ser um avatar de mudança, catalisador da ação, inimigos do status quo e servem à narrativa como alívio cômico. Gaiman consegue dar cores muito mais fortes e sombrias a essa figura em Sandman, vez que todos os seus pícaros são bem amorais e acho esse uso que ele faz do arquétipo tanto inesperado quanto muito inteligente.
Finalmente, o último dos arquétipos de Vogler é a sombra. A sombra é o grande vilão da história e inimigo do herói; é Sauron, Voldemort e Palpatine combinados. Na psicologia, a sombra é nossa faceta mais obscura, nossos desejos reprimidos. Sua função é desafiar o herói, ser um oponente a sua altura.
Sonho tem muitos inimigos - considerando sua idade, poder e temperamento, estranho seria se não os tivesse - mas o grande vilão de sua história é… ele mesmo. São a arrogância e os erros do passado que assombram Morpheus e sua jornada pessoal é uma jornada de redenção para desfazer os estragos que deixou para trás.
Creio que com isso tenha conseguido explicar todo o grande esquema da Jornada do Herói e respondido também às questões que coloquei lá na primeira parte do artigo.
O monomito não é, nem nunca teve pretensão de ser, uma receita de bolo. Ninguém precisa conhecê-lo para ser capaz de criar uma história, até porque, muitos dos seus estágios nos aparecem intuitivamente quando trabalhamos com uma narrativa. Ainda, há quem prefira passar ao largo desse tipo de esquema por argumentar que moldes fixos interferem no processo criativo e também concordo com isso. Mas, vejam, conhecer as regras nos dá ferramentas para quebrá-las e subvertê-las de maneiras inesperadas. Ninguém parte para a pintura impressionista sem começar fazendo rabiscos padrão primeiro.
Pratchett fazia isso muito bem. Ele conhecia as ‘regras do jogo’ e talvez por isso mesmo fosse capaz de subvertê-las de maneiras tão deliciosas e criativas. Cenoura, que foi criado para ser um caso clássico de Herói - com direito a marca de nascença, espada misteriosa e potencial herdeiro do trono - age, no mais das vezes, de formas inesperadas, torcendo os estágios da jornada de forma a jogar interesse em Vimes, que tinha tudo para ser um vilão, a começar pela sobriedade dolorosa que ele tem de medicar com copiosas doses de álcool para se sentir normal.
Gaiman também é um mestre em se apropriar do monomito e simplesmente retorcê-lo para pegar seu leitor completamente de surpresa. Sandman, com toda a sua metalinguagem, é uma resposta direta ao conceito da jornada do herói, da mesma forma que Stardust e Deuses Americanos.
Dos grandes nomes da mitologia antiga aos cavaleiros andantes dos romances medievais e até os super-heróis modernos, fato é que temos histórias cuja essência continua a mesma, que de alguma forma sempre conseguem conversar conosco, oferecer catarse, libertação, alívio e, sim, claro, diversão. São elas respostas para perguntas que se mantêm através dos tempos, intrínsecas à humanidade.
Eu apenas toquei no assunto ao longo das últimas semanas. Compreender a jornada do herói é um trabalho para a vida inteira, explorando-a em cada nova narrativa que nos chega em mãos. Mas é preciso começar por algum lugar. Então, esse é o começo… você está agora pronto para responder ao chamado da sua aventura?
Parte I - Mitos, Sonhos e Estruturas Narrativas
Parte II - O Chamado da Aventura
Parte III - O Caminho das Provas
Parte IV - Retorno
Parte V - Dando um Trato no Roteiro
A Coruja
Arquivado em
arquétipos
encyclopaedia
fantasia
gaiman
jornada do herói
literatura
livros sobre livros
metalinguagem
mitologia
Sandman
sobre escrever
Assinar:
Postar comentários (Atom)
Sobre
Livros, viagens, filosofia de botequim e causos da carochinha: o Coruja em Teto de Zinco Quente foi criado para ser um depósito de ideias, opiniões, debates e resmungos sobre a vida, o universo e tudo o mais. Para saber mais, clique aqui.
Nenhum comentário:
Postar um comentário