22 de março de 2010

Neil Gaiman – Parte IV: De que matéria são feitos os deuses?

Não obstante, escusado será dizer que todas as pessoas – vivas, mortas e outros – desta história são ficcionais ou usadas num contexto ficcional. Apenas os deuses são reais.

(Neil Gaiman - Deuses Americanos)
Hoje nós vamos fazer meio que palavras cruzadas. Estou aqui com minha cópia de American Gods e Anansi Boys, além de Coisas Fragéis aberto no conto O Monarca do Vale e todos eles estão praticamente cobertos em post-its amarelos, rosa e azuis com pequenas notas explicativas sobre todos os pequenos detalhes mitológicos que eu era capaz de encontrar.

Por motivos que ficarão óbvios quando eu terminar esta parte da série – se é que você ainda não leu as histórias que acabo de citar - American Gods é o livro com mais anotações e quase não está fechando de tanto papelzinho que enfiei no coitado.

É claro que não vou usar nem sequer metade das anotações e comentários que fiz, ou estaria entregando completamente o plot e todos os grandes segredos da história monumental que Gaiman criou nesses livros... mas tudo bem, porque, ao final das contas, foi bem divertido brincar de palavras cruzadas com ele.

E, claro, quero fazer um agradecimento especial ao Santo Google, que me ajudou com as mitologias mais obscuras. Agora, feitas estas considerações iniciais... vamos ao que interessa.

American Gods - na versão em português, Deuses Americanos, é o quarto livro em prosa de Gaiman, tendo sido publicado em 2001. Em uma síntese bem apertada, podemos dizer que a história gira em torno da fé e de como os deuses e todas as outras criaturas mitológicas existem porque acreditamos nelas.

Nossa jornada começa com Shadow, na prisão, contando os dias para se ver novamente em liberdade. Ele está a apenas uma semana de cumprir sua sentença quando recebe a notícia de que está sendo liberado mais cedo, uma vez que sua esposa morreu num acidente de carro.

No funeral, ele descobre que ela morreu junto com seu melhor amigo, em quem estava praticando sexo oral no momento do acidente... De repente, tudo pelo que ele ansiara nos últimos anos, todos os planos que tinha feito... nada existia mais. Ele não tinha esposa, não tinha emprego, e era um ex-prisioneiro.

Entra em cena... Mr. Wednesday.

A primeira vez que Shadow encontra Mr. Wednesday é no vôo de volta para casa, quando está indo para o funeral, onde ele lhe oferece um trabalho... a princípio, Shadow acha que tudo não passa de uma brincadeira de péssimo gosto ou algo mais perigoso, uma vez que Mr. Wednesday sabe um pouco demais a seu respeito.

É só depois de compreender o que realmente aconteceu, como perdeu a esposa, o melhor amigo e o emprego que esperava ter quando deixasse a prisão, que Shadow decide aceitar a oferta de Mr. Wednesday, virando assim seu “guarda-costas” em meio a um grande plano que o outro homem está montando.

Aos poucos, vamos entendendo quem realmente é Mr. Wednesday e qual o seu plano, enquanto viajamos por quase todo os Estados Unidos, visitando uma série de personagens meio esquisitos – ao menos do ponto de vista de Shadow.

Vocês sabem que os nomes dos dias da semana em inglês são derivados de deuses do panteão nórdico e de planetas? Sunday e Monday são o dia do sol (Sun) e da lua (moon); Tuesday é o dia de Tyr, o deus da guerra, Wednesday é Wodan, ou Odin como é mais conhecido, Thursday é o dia de Thor, deus dos trovões, Friday é Freya, a deusa do amor e beleza e Saturday é Saturno.

Vocês já sabem quem, realmente, é Mr. Wednesday?

Gaiman usa aqui uma idéia bem interessante: os Estados Unidos foram, durante muito tempo, o país dos imigrantes – terra da liberdade e de oportunidades. Tudo bem que as coisas mudaram do início do século XX pra cá... Em todo caso, gente de todas as partes do mundo foi parar ali, trazendo na bagagem seus costumes, sua língua...

... seus deuses.

Vejam bem, contudo... não é que os deuses se mudaram de seus lares originais seguindo aqueles que partiam: uma vez na América, a força da crença desses imigrantes criava uma nova personificação da divindade, independente daquela que ficara em sua terra natal.

Os deuses, pois, eram americanos.

A certa altura do livro, Mr. Wednesday explica a Shadow o que é o Soma, a bebida favorita de dez entre dez deuses que eles encontram em sua jornada: “preces concentradas e crença, destilada em um potente licor”. Agora, o soma em si é tanto um deus da mitologia hindu – o deus da lua – quanto a amrita, a bebida que mantém os deuses imortais.

É, por assim dizer, o equivalente ao néctar dos deuses gregos e o hidromel dos nórdicos.

Em suma, os deuses se alimentam, muito literalmente, da crença de seus fiéis – eles existem e tiram sua força e poder da fé. Quando são esquecidos; quando os homens deixam de adorá-los – no passar de gerações, com a miscigenação e a construção de uma nova cultura independente daquele de seus antepassados – os deuses perdem poder, enfraquecem, definham, até desaparecer.

Novos deuses tomam lugar no altar dos humanos: a internet, a televisão (impagável a cena de Lucy, do antigo seriado I Love Lucy tentando Shadow a abandonar Mr. Wednesday), o cartão de crédito... É nisso que os homens agora depositam sua fé e, a partir dessa fé, novos deuses, personificando estas figuras abstratas, vão surgir.

O mito, como se depreende da obra de Gaiman, não é uma antigüidade acumulando poeira e cheirando a guardado nos porões do tempo. Tem gente que acredita que mito é tudo que é muito antigo. A verdade, porém, como tão bem demonstra American Gods é que todos os dias criamos novos mitos, figuras mitológicas, novos heróis.

Essa concepção é a essência de quase todas as obras de Gaiman e está no alicerce de sua obra máxima – Sandman.

Aliás, essa mesma idéia está contida na obra de Pratchett, da cabeçologia das bruxas à criação dos próprios deuses - Hogfather é toda sedimentada nessa teoria elevada à décima potência. É, em suma, o conceito de que o homem antecede deus, o qual foi criado a imagem e semelhança do homem.

Dou a palavra a Frank McConnell que resumiu admiravelmente a questão no prefácio de The Sandman: Book of Dreams:
Nós precisamos de deuses – Thor ou Zeus ou Krishna ou Jesus ou, bem, Deus – não tanto para adorar ou oferecer sacrifícios, mas porque eles satisfazem nossa necessidade – distinta daquelas de todos os outros animais – de imaginar um significado, um sentido para nossas vidas, de satisfazer nossa fome de acreditar que a lama e o caos da existência diária chega, ao final, a algum lugar. É a origem da religião, e é também a origem de contar histórias – ou não são ambos a mesma coisa? Como Voltaire disse de Deus: se ele não existisse, teria sido necessário inventá-lo.
Não vou adentrar muito mais no debate teológico aqui, mas gostaria de que tirassem uma dúvida... por que cargas d’água eu só encontro Pratchett e Gaiman na prateleira de infanto-juvenis quando vou à livraria?

Ok, voltemos ao que interessa. Temos, como eu já disse alguns parágrafos atrás, antigos deuses que vieram para a América acompanhando os imigrantes e temos os novos deuses surgidos da tecnologia (não tanto do dinheiro, porque há muitos deuses antigos que estão ligados à fortuna). Temos uma briga por poder. Temos uma tempestade se aproximando – uma tempestade de que Shadow é avisado mesmo antes de sair da cadeia.

Somando tudo, temos o resultado guerra.

Na verdade, guerra é apenas um efeito secundário na trama urdida pelo Lorde de Asgard... uma trama que cruza os Estados Unidos de ponta a ponta e que nos apresentará a uma série de figuras pitorescas: Mr. Nancy, ou Anansi, o homem aranha contador de histórias e mensageiro dos deuses nas lendas do oeste africano; Bielebog e Czernobog, o deus branco e o deus negro dos eslavos; Mr. Jacquel e Mr. Ibis, Anubis e Thoth dos egípcios, comandando uma funerária e tantos, tantos outros...

Não é uma simples coincidência que Shadow tenha entrado nesse mundo; não é simples coincidência que Mr. Wednesday o desejasse por seu guarda-costas e companheiro. Se vocês lerem o conto O Monarca do Vale antes de Deuses Americanos, saberão que o nome na certidão de nascimento de Shadow é...

Hum... melhor não dizer. Terão que descobrir sozinhos...

Antes que eu diga mais do que deveria dizer (se é que já não disse), vamos dar uma olhada no próximo livro.

Anansi Boys - em português, Os Filhos de Anansi foi escrito antes de Deuses Americanos, mas publicado posteriormente. Embora as duas obras estejam no mesmo plano ficcional, elas se mantém como histórias separadas, independentes – nenhuma delas é uma seqüência para a outra.

Os filhos de Anansi, o Mr. Nancy que já citamos anteriormente, são dois: Charlie e Spider (nome bastante apropriado para o filho do homem aranha – e não, não tem nada a ver com o Peter Park...).

Bem, a princípio, Charlie sequer sabia que tinha um irmão... não até a morte do pai, quando os dois finalmente se encontram... e a vida de Charlie, que já não era lá as mil maravilhas – Charlie é quase um assoalho de porta, em quem todo mundo pisa e limpa os pés, o perfeito bode expiatório para uma certa fraude fiscal que seu chefe está arquitetando... – se torna a absoluta imagem do caos.

Ele inclusive perde a noiva para o irmão. Que maravilha, hein?

A primeira vez que li Anansi Boys, cheguei mais ou menos na metade e empaquei, cansada de ver Charlie levar tanto na cabeça... enrolei algumas semanas antes de voltar o livro e do meio para o final praticamente li de uma única sentada – afinal, Charlie finalmente toma uma atitude e mostra que é filho de um deus.

Acho que com isso cobrimos mais ou menos os grandes romances de Gaiman... ou, pelo menos, aqueles que já tive o grande prazer de ler. Na próxima parte, vamos finalmente entrar no reino de Lorde Morpheus.

E aí, vocês já conhecem o Sonhar?

(Continua em “Perpétuos”)

A Coruja


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9 comentários:

  1. Muito bom, Lulu! Deuses Americanos é muito legal...eu gosto particularmente do MONTE de referências a mitologia nórdica, desde o próprio Sr. Wednesday, passando pelo episódio do Shadow pendurado no freixo por 9 dias, e da participação mais que especial do deus trickster mais legal de todos. Ah, e eu queria uma camiseta ou um poster com aquele "discurso" da moça-índia, quando ela fala pro Shadow sobre todas as coisas em que ela acredita. E sobre Anansi Boys...ah, o final é ÓTIMO, quando o Charlie finalmente acorda. Eu gosto da liçãozinha do livro: você tem que cantar sua canção, custe o que custar. E...ok, chega, comentário enorme! Fico esperando a parte sobre Sandman agora! =D

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  2. Já tinha ouvido falar muito bem de Deuses Americanos. É meu próximo item da minha lista de livros para comprar!

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  3. Sim, sim, meninos... American Gods é um dos meus livros favoritos do Gaiman... é um dos, porque é muito difícil escolher um só...

    E eu adoro comentários enormes... o que me faz perguntar, André, porque deletasse aquele seu simpático comentário respondendo das minhas conversas climáticas?

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  4. Bem, na verdade, tive a impressão que certas coisas que escrevi poderiam parecer ofensivas.
    Quando reli depois, tive esta impressão, por isso deletei...
    Mas repito, precisando de ajuda com os lobisomens, é só pedir.

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  5. Bem... eu não vi nada de ofensivo...

    Aliás, vale lembrar que eu recebo os comentários de vocês por email no momento em que vocês o postam, de forma que, mesmo deletando... eu recebo. Huahuahuahuahua...

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  6. Creio que a melhor retórica que eu possa colocar aqui é: "DOH!!!"

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  7. Creio que a melhor retórica que eu possa colocar aqui é: "DOH!!!"

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  8. Esse trem está cada vez melhor... Ainda não li nenhum desses, e nem conhecia o plot deles, mas já esotu doida, doida para ler :D
    estrelinhas coloridas...

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  9. Amooo deuses americanos e dias desse estava relendo para tentar decifrar todas as referências, entretanto empaquei na identidade do Deus cinzento -aquele q todos parecem esquecer q cruzaram- vc sabe quem ele é e qual mitologia pertence? Deixei escapar algo do livro? Gaiman é sem dúvida o meu autor favorito, mas conseguir pegar todas as milhões de referências contidas nas suas obras é uma tarefa das mais desafiadoras.

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