16 de maio de 2017
A Jornada do Herói - Parte III: O Caminho das Provas
Tendo atravessado o limiar, o herói se vê num mundo completamente diferente do seu, um mundo em que ele deverá passar por testes e provações para demonstrar seu valor. Esse estágio da jornada, que costuma ser o momento em que se constrói tensão dentro da narrativa e se desenvolve o caráter do herói, é chamado por Campbell de o caminho das provas. Os doze trabalhos de Hércules ou ainda a história de Psique, descendo ao Mundo Inferior sob as ordens de Afrodite para ter oportunidade de reencontrar Eros ao fim de suas tribulações, são bons exemplos dessa etapa.
O caminho das provas, a carne e o recheio da jornada do herói, é uma continuidade ou aprofundamento das questões levantadas quando da travessia do primeiro limiar: ao aceitar a aventura, o protagonista está se propondo a construir uma nova identidade - ou descobrir o potencial que possui - e isso significa uma morte simbólica de quem ele era antes de adentrar o novo mundo.
O próximo estágio é o encontro com a deusa, quando o herói se depara com uma figura feminina de grande poder e, de alguma forma, une-se a ela - não necessariamente de forma romântica. De novo, nas palavras de Campbell:
Essas palavras me fazem pensar primeiro em Arwen e sua importância para Aragorn; mas é no encontro da Sociedade com Galadriel em Lothlórien, após as terríveis provações e perdas nas minas de Moria, que se enxerga o potencial desse estágio. Galadriel oferece a eles conforto e esperança, mas também os faz confrontar seus pensamentos mais escuros - Boromir, especialmente, sofre nessa exposição.“Ela é o modelo dos modelos de perfeição, a resposta a todos os desejos, de onde provêm as bençãos da busca terrena ou divina de todo herói. É a mãe, a irmã, a amante, a noiva. Tudo o que o mundo possui de sedutor, tudo o que nele for promessa de gozo, constitui indício de sua existência tanto nas profundezas do sono quanto nas cidades e florestas do mundo. Pois ela é a encarnação da promessa de perfeição; a garantia concedida à alma de que, ao final do exílio num mundo de inadequações organizadas, a benção antes conhecida voltará a sê-lo; a confortadora, nutridora e “boa” mãe - jovem e bela - que outrora conhecemos, e até provarmos, no passado mais remoto. O tempo a fez afastar-se e, no entanto, ela ainda habita, como quem dorme na intemporalidade, no leito do mar intemporal.”
Ao mesmo tempo em que é vista como criatura divina e ideal de perfeição, também se considera a mulher como tentação o terceiro momento nesta etapa da jornada. O cerne dessa fase da narrativa é que o herói tem de enfrentar impulso e desejo: a sedução do Um Anel ou do lado negro da Força, por exemplo.
A nomenclatura pode causar desconforto, mas levemos em consideração que Campbell se utiliza dos mitos clássicos para estabelecer esses estágios - e os mitos clássicos têm um foco predominantemente masculino. Mesmo assim, é preciso refletir um pouco a questão e assim é que abro aqui um parênteses para discutir sobre qual a posição da heroína em todo esse esquema.
Campbell não faz distinção quando estabelece seu herói - sua própria definição para o que seja essa figura arquetípica é de “o homem ou mulher que consegue vencer suas limitações históricas pessoais e locais e alcançou formas normalmente válidas, humanas”. Campbell está mais preocupado com a ‘transcendência da tragédia universal do homem’ que formas mais neutras de intitular cada etapa de seu ciclo narrativo. Particularmente, não acho que a mulher esteja excluída desse ciclo, afinal, a jornada do herói foi pensada para refletir questões fundamentais da natureza humana.
Considerando que a maior parte das críticas ao monomito é sua generalização, não acho que se sustenta dizer que a jornada do herói elimina a existência da heroína. Tanto é assim que anos atrás fiz uma apresentação num dos encontros da JASBRA aplicando todo o roteiro do monomito às desventuras das irmãs Dashwood de Razão e Sentimento, e nem precisei suar muito para fazê-lo, ainda que possa parecer estranho utilizar a jornada num romance, quando muito do contexto que temos para o tema são mitos, histórias de fantasia e aventura.“Cada pessoa traz dentro de si mesma o todo; por conseguinte, é possível procurá-lo e descobri-lo no próprio íntimo. As diferenciações em termos de sexo, idade e ocupação não são essenciais ao nosso caráter; não passam de trajes que utilizamos por algum tempo no palco do mundo. A imagem do homem que se acha no interior não deve ser confundida com as vestes que o envolvem. Pensamos em nós mesmos como americanos, filhos do século XX, ocidentais, cristãos civilizados. Somos virtuosos ou pecadores. No entanto, essas designações não nos dizem o que é ser um homem; servem tão somente para denotar os acidentes de geografia, da data de nascimento e da renda. Qual é o nosso núcleo? Qual o caráter básico do nosso ser?”
Isso não significa, contudo, que não se possa pensar em esquemas narrativos que sejam exclusivamente voltados para o feminino, o que foi feito por uma estudiosa do trabalho de Campbell, Maureen Murdock, no início da década de 90. Em seu A Jornada da Heroína, Murdock parte dos mesmos mitos e contos de fadas que inspiraram Campbell, propondo um modelo paralelo ao do professor. Como já disse antes, O Herói de Mil Faces concentra-se numa jornada espiritual - o crescimento do herói não é simplesmente o de sua força e agilidade em batalha, mas uma busca pela essência de si mesmo. A busca da heroína de Murdock, contudo, atende a outra necessidade, uma experiência psicológica em vez de mítica, que em oito estágios, trata da identidade pessoal da protagonista entre feminino e masculino.
Murdock começa com a troca do feminino pelo masculino, para então seguir pela estrada das provações, sobre o qual já falamos, a ilusão do sucesso e a descida, quando então a protagonista volta a se reconectar com seu lado feminino no estágio do encontro com a deusa, para vir então a reconciliação com o feminino, a (re)incorporação do masculino, terminando com a união. Simplificando tudo, você tem a história de Mulan, que inicia sua jornada se disfarçando como homem porque ela - e a sociedade em que ela está integrada - creem que seu gênero é delicado demais para as armas. Mulan prova que sua capacidade independe de gênero para então se transformar na maior heroína da China.
Poderia continuar falando sobre o assunto, mas embora seja uma reflexão que vale à pena fazer, vou deixá-la para outro dia e voltar a me concentrar no Campbell, o que significa voltar ao estágio da tentação. Dentro da história, esse é o momento em que o herói prova sua integridade, recusando um prazer fácil, o caminho de menor resistência. Constantemente se pensa na tentação como algo sexual, e há sempre a clássica referência a Eva, mas a verdade é que vamos para além disso - cuida-se aqui de todos os desejos, todos os desvios, apelos carnais ou materiais.
Tendo ultrapassado as tentações que se interpõem em seu percurso, o herói chega ao estágio da sintonia com o pai - lembrando que, como no encontro com a deusa, a figura paterna dessa parte é simbólica: trata-se de alguém com significativo poder, que o protagonista deve derrotar, persuadir ou obter aprovação - podendo ser até um ideal, uma diretriz pela qual o herói se norteia.
Campbell cita vários exemplos repletos de conflitos edipianos, mas quando penso nessa etapa da jornada, são duas as histórias que me vêm à mente: Star Wars, com Darth Vader e Luke Skywalker na cena em que o vilão revela seu parentesco e a sombra de Mufasa nas estrelas, em O Rei Leão, dizendo a Simba “lembre-se de quem você é”. São momentos de transição para os heróis, de descoberta e aceitação - reconciliação consigo mesmo ou com o Outro. O pai não é apenas poderoso, ele representa o próprio poder dentro de qualquer que seja a hierarquia a qual está inserido o protagonista e quer o herói o derrote, quer com ele se reconcilie, isso significa ascender a uma posição de maior destaque.
Pensando em Deuses Americanos, do Gaiman, Shadow é também um bom exemplo dessa etapa. Subordinado a Wednesday durante boa parte da história, ele se torna um sacrifício em nome dos deuses antigos e através desse sacrifício ganha revelação e conhecimento, a compreensão do seu verdadeiro papel em todo o grande esquema de Odin.
O poder assumido na sintonia com o pai será necessário para a mais difícil parte da jornada, a apoteose. Tudo o que o herói viveu até aqui foi uma preparação; o conhecimento que adquiriu, a nova percepção que tem de si mesmo, seu crescimento pessoal. Apoteose significa, literalmente, divinização, endeusamento. O herói ascende ao status de deus após derrotar seu grande nêmesis. Ou ele renasce sob uma nova forma após se sacrificar pela causa.
A apoteose pessoal de Gandalf é sua luta com o Balrog, da qual ele retorna como o Branco, em vez de o Cinzento. No imaginário Tolkeniano, gosto particularmente da história de Bilbo, que começa como um pequeno covarde extremamente preocupado com sua louça e que, mesmo não sendo o melhor guerreiro, faz o que pode na Batalha dos Cinco Exércitos - e isso mesmo depois de enfrentar a fúria de Thorin e ser expulso da Montanha Solitária.
Assim é que o objetivo com que o herói saiu de casa para começar sua empreitada foi completado e isso nos leva ao próximo ponto da jornada: a benção final. O inimigo foi derrotado, a Estrela da Morte explodiu, o Um Anel foi destruído, Voldemort sucumbiu. Essa é a resolução, o grande clímax da história. A vitória do herói prova seu merecimento e com isso, claro, há a recompensa.
A benção final pode ser simplesmente o fato de que, após tantas dificuldades, o herói sobreviveu. Ele está em paz consigo mesmo. As águias estão chegando no horizonte e nada mais importa. Ou então pode ser um objeto, um elixir especial, ou o Santo Graal que todos os cavaleiros da Távola Redonda vivem a perseguir e que é finalmente encontrado por… Indiana Jones.
Contudo, ainda que se tenha alcançado o propósito da jornada, isso não significa que ela tenha terminado. Afinal, é necessário que nosso herói volte para casa… e ninguém disse que a volta seria mais fácil do que a ida.
(Continua em O Retorno...)
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