22 de abril de 2022

O Mar sem Estrelas: poesia e metanarrativa num mundo subterrâneo de livros, abelhas, corujas e gatos


O papel é frágil, mesmo quando encadernado com barbante em tecido ou couro. A maioria das histórias no Porto do Mar Sem Estrelas foi capturada em papel. Em livros ou pergaminhos ou dobradas em pássaros de origami e suspensas nos tetos. Há histórias ainda mais frágeis: para cada conto entalhado na rocha, há outros inscritos em folhas de outono ou trançados em teias de aranha.

Quando li O Circo da Noite, a coisa que mais me impressionou foi a capacidade da Morgenstern de trazer à mente cenários deslumbrantes com suas palavras. Ainda hoje quando penso nesse romance, enxergo o salão de baile preto e branco e algo me faz perder o fôlego. Essa característica está em ainda mais evidência em Mar sem Estrelas e acho que nunca ansiei tanto por uma adaptação cinematográfica milionária que traduzisse em algo palpável todos os lugares que ela nos faz visitar aqui.

Em essência, Mar sem Estrelas conta a história de Zacharias Ezra Rawlins, que um dia descobre na biblioteca de sua faculdade um livro antigo chamado “Doces Dores” e que traz como um de seus personagens… o próprio Zach. Não é uma simples identificação com o personagem: o filho da vidente que surge naquelas páginas é Zach. Intrigado com tão estranha coincidência, Zach acaba se envolvendo numa grande conspiração em torno de um mundo subterrâneo dominado por livros, gatos e corujas - um mundo criado para proteger histórias, sob uma ordem de guardiães, e cuja magia irradia de um porto no misterioso Mar sem Estrelas.

Zach, contudo, não é o único que tem seus passos previstos nas narrativas que emanam desse labirinto subterrâneo. Os capítulos se alternam não apenas entre diferentes narradores e épocas, mas também entre trechos de vários livros que os personagens estão lendo a todo e qualquer momento.

Essa fragmentação torna a leitura um desafio - é preciso prestar atenção para não se perder nas várias linhas narrativas. Há um certo quê de experimental na forma como Morgenstern alinha todos esses caminhos que me faz pensar em Calvino com Sê um Viajante numa Noite de Inverno e nos labirintos-torre-de-babel-bibliotecas de Jorge Luís Borges: a concorrência de contos, o contexto metalinguístico, os níveis de significado. E tudo isso causa uma estranheza que contrasta muito com a ironia intertextual que está sempre te passando a impressão de algo familiar.

Aliás, é um efeito muito interessante essa dualidade entre os twists surpreendentes e as referências familiares. Vi Jareth de Labirinto como o Rei Coruja; o encontro com a primeira porta é A Porta no Muro de H. G. Wells; Dorian, claro, deriva de Oscar Wilde e o próprio Zach tem no nome uma piscadela a Ezra Pound, expoente do modernismo e imagismo. Estão lá Alice no País das Maravilhas, Jonathan Strange e Mr. Norrell, As Crônicas de Nárnia, Onde Vivem os Monstros e os poemas nonsense de Edward Lear, em especial A Coruja e o Gato. Cada leitor traz suas próprias referências e reconhece sua biblioteca particular nos muitos níveis deste subterrâneo - e torna-se assim, também, um personagem da história.

Para além dos cenários deslumbrantes - e também pinturas surreais - a sensualidade sutil do romance me impressionou. Há o Bibliotecário a passar seus dias escrevendo poesia erótica sobre as várias encarnações da amada, a Lua e o dono da estalagem, e os encontros e desencontros de Eleanor e Simon; mas nada supera Dorian sussurrando ao pé de ouvido de Zach a história do Tempo e do Destino, que é uma das melhores cenas de sedução que já li.

Por isso mesmo é uma pena que o desenvolvimento da relação entre Dorian e Zach deixe algo a desejar. Não se trata de uma paixão à primeira vista, mas também não há espaço para que eles se conheçam, os dois passam a maior parte do enredo separados e tentando resgatar o outro, mas sem compreender de todo o porquê de estarem no mesmo caminho. É tipo, acabei de conhecer essa pessoa, mas já morreria por ela! E é uma pena, porque a cena inicial dos dois é realmente de causar palpitações!

Isso tem uma razão. Como mitologia, com seus vários contos que se entrecruzam numa narrativa maior, Mar sem Estrelas é extraordinário. Qualquer das muitas partes que vão compondo o quebra-cabeças - ou caminhos que se abrem no labirinto - poderia servir de mote a um livro inteiro e independente. Mas, de um ponto de vista estrutural, faltam algumas coisas; na verdade, considerando as mais de quinhentas páginas de enredo, fica muita coisa por contar.

São detalhes que podem ser lidos ou adivinhados nas entrelinhas, mas que beneficiariam a construção geral do romance. Como a relação de Allegra com Dorian, que, com um pouco mais de carne, teria dado uma carga dramática que ficou ausente no confronto deles. Na verdade, tudo o que há por trás da ligação de Dorian com os Colecionadores, seu encontro com Mirabel, sua transformação e o que ensejou sua busca por Zach estão boiando em algum ponto desse mar, e esqueceram de trazer a bordo. Você entende a certa altura que há algo de destino na ligação entre Dorian e Zach, mas, mesmo assim, falta alguma coisa.

Creio que um capítulo em que Dorian pudesse ser um pouco mais desenvolvido, passar de contornos rascunhados a uma figura mais tridimensional, resolveria esse problema.

No geral, eu gostei de Mar sem Estrelas. Queria muito descer pelo Elevador, jogar os dados, andar pelos labirintos, dançar no último baile de um porto esquecido. O ritmo da prosa é de uma beleza arrepiante, a ideia da metanarrativa é bem o tipo de coisa que me agrada, e as imagens que Morgenstern nos imprime à mente valem por si só, sem necessidade nem do plot. Para encantar.

Nota:
(de 1 a 5, sendo: 1 – Decepção; 2 – Mais ou Menos; 3 – Interessante; 4 – Recomendo; 5 – Merece Releitura)

Ficha Bibliográfica

Título: Mar sem Estrelas
Autor: Erin Morgenstern
Tradução: Isadora Prospero
Editora: Morro Branco
Ano: 2021

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