14 de setembro de 2021

Square Haunting: Cinco Mulheres, Liberdade e Londres Entreguerras


A sala de estar, escreveu Harrison, foi designada território da esposa, mas permaneceu um espaço público, como 'a sala em que os “visitantes são introduzidos” - uma sala na qual você não pode se acomodar para pensar, porque qualquer pessoa pode entrar a qualquer momento'. O escritório do marido, ao contrário, era "um lugar inviolado, guardado por tabus imemoriais", onde o homem da casa "pensa, aprende e sabe"; havia, Harrison notou, "raramente duas cadeiras" na sala. A presença em quase todas as casas desses dois cômodos polarizados, ela sugeriu, servia como alegoria para a recusa da sociedade em levar as mulheres a sério. "A casa onde você não pode e não deve sentar no escritório não é para mim um lar", escreveu Harrison. ‘Mas, então, há muito sei que não sou uma "mulher verdadeira". Um dos sinais mais nefastos dos tempos é que as mulheres estão começando a exigir um estúdio para si.'

Começo hoje dizendo que não faço a menor ideia de como esse livro veio parar na minha mão. Eu jurava que o tinha visto recomendado no perfil do Literatura Inglesa Brasil, mas antes de me sentar para começar essa resenha, fui tirar a prova dos nove e não encontrei lá nada sobre o livro de Francesca Wade. Enfim, eu devo tê-lo visto talvez em alguma lista, ou nas indicações do Goodreads e coloquei na lista pela referência a escritoras, Londres e o período entre a Primeira e Segunda Guerra.

Entre 1916 e 1940, cinco mulheres extraordinárias viveram em diferentes casas e em diversos momentos num mesmo endereço: Mecklenburgh Square, em Londres. Costurando a biografia delas com o ambiente vibrante oferecido por Bloomsbury mesmo naqueles anos difíceis de guerra, Wade nos oferece um panorama interessante das vidas dessas mulheres, seus papéis como pioneiras em vários campos de conhecimento e da literatura, e na história do progresso dos direitos das mulheres.

Eu conhecia duas das biografadas - três, se contar uma delas apenas tangencialmente por causa de outra personagem. Virginia Woolf, que fecha o livro, claro, dispensa apresentações. Dorothy L. Sayers, parte da Era de Ouro dos romances policiais, está na minha lista de futuras leituras. Jane Ellen Harrison eu sabia que existira pela conexão com Hope Mirrlees, de Lud-in-the-Mist, mas não sabia nada da carreira dela.

O livro começa com a poetisa americana Hilda Doolitle Aldington, primeira mulher a receber a Medalha de Mérito por Poesia da Academia Americana de Artes e Letras em 1960, aclamada como um gênio e após sua morte, prontamente esquecida pelo grande público - exceto talvez por seus turbulentos relacionamentos: o noivado e seu papel de musa para Ezra Pound, o casamento com Richard Aldington, um suposto romance com D. H. Lawrence. Hilda, que assinava com o pseudônimo H.D., foi uma pioneira do Imagismo, primeiro movimento literário modernista da língua inglesa, além de ter escrito diários de sua terapia (ela foi fazer psicanálise com Freud em Viena), e romances que questionavam papéis de gênero. Ao ser redescoberta pela crítica na década de 70, tornou-se ícone de movimentos feministas e LGBTQ+ - Doolitle viveu de forma quase aberta sua bissexualidade, especialmente para a época em que viveu.

A ela segue Dorothy L. Sayers, uma das primeiras mulheres a ser diplomada no Reino Unido, formada na primeira turma feminina de Somerville College, em Oxford, tendo estudado letras e literatura medieval. Sayers teve uma importante produção acadêmica - era amiga próxima de C. S. Lewis e participou de encontros do grupo dos Inklings -, incluindo volumes sobre teologia e uma tradução muito elogiada de A Divina Comédia. Viveu no número 44 de Mecklenburgh Square - exatamente a mesma casa de Doolitle, ocupada pela americana até 1918 - no início da carreira, entre dezembro de 1920 a dezembro de 1921, e foi ali que criou Lord Peter Wimsey, protagonista de seus romances policiais mais famosos.

A Idade de Ouro das histórias de detetive, que prometia ordem satisfatoriamente restaurada do caos, a justiça feita por um detetive de aparente onisciência e toda transgressão punida, costuma ser vista como um sintoma do anseio britânico do pós-guerra por escapismo, exemplificado pela popularidade na década de 1920 das apostas no futebol, palavras cruzadas e entretenimento leve (como a comédia musical Chu Chin Chow, que estreou em Londres em agosto de 1916 e durou cinco anos consecutivos). 'Pode ser', Sayers escreveu mais tarde, talvez pensando em suas próprias motivações para mergulhar tanto na leitura quanto na escrita de histórias de detetive, 'que nelas [alguém] encontre uma espécie de catarse ou purificação dos [seus] medos e autoquestionamentos.'


Jane Ellen Harrison foi uma importante historiadora helenista, uma das fundadoras dos estudos modernos de mitologia grega, aplicando descobertas arqueológicas de então à interpretação mitológica. Linguista excepcional (fluente em dezesseis línguas, incluindo russo), sufragista, foi professora em Cambridge - creditada como a primeira mulher a exercer uma carreira acadêmica na Inglaterra. Morou no número 11 de Mecklenburgh Street, de maio de 1926 a abril de 1928, quando veio a falecer, sempre acompanhada de Hope Mirrlees, com quem vivia desde 1913, ex-aluna que se tornou uma “filha espiritual” nas palavras de Harrison.

A biografada seguinte é Eileen Power, historiadora de economia, medievalista, pacifista e estudiosa especializada na China, que viveu no número 20 de Mecklenburgh Square de janeiro de 1922 a agosto de 1940. Ela foi a primeira mulher a receber a bolsa de viagem acadêmica Albert Kahn em 1920, quando viajou, sozinha, para Índia, Japão e China para realização de pesquisas e estudos - embora o painel responsável pela bolsa temesse a possibilidade dela “cometer matrimônio” (a escolha da palavra aqui é realmente reveladora) no decorrer do projeto. Power, contudo, passou por cima de todas as desconfianças e entregou resultados excepcionais em tudo o que se aplicou - de programas escolares sobre História para serem apresentados na rádio BBC a titular da cátedra de História Econômica na Escola de Londres de Economia e Ciência Política.

‘Como mulher’, escreve ela, ‘não tenho país. Como mulher, não quero país. Como mulher, meu país é o mundo inteiro.'


Square Haunting abre e fecha com Virginia Woolf, moradora do número 37 de Mecklenburgh Square entre agosto de 1939 e outubro de 1940 - os anos de Blitz, bombardeios nazistas a Londres, que acertaram a praça e fizeram os Woolf se mudarem dali. No prólogo, temos Virginia retornando após a destruição do lugar e tendo de entrar pelos escombros para resgatar seus diários. No último capítulo, que explora a biografada com mais vagar, lembramos de Um Teto Todo Seu, ensaio que tem tudo a ver com o tema que perpassa todo o volume, bem como a criação da Hogarth Press.

Wade consegue unir esses perfis que, à primeira vista, são muito diferentes, numa biografia coletiva que faz sentido, uma leitura saborosa, inteligente, que me deixou com vontade de arrumar as malas e fazer uma nova peregrinação literária por Bloomsbury - e especificamente, claro, por Mecklenburgh Square. Mas é importante notar que coincidência de endereço dessas cinco mulheres extraordinárias não é a única razão delas surgirem todas aqui: suas obras e suas existências se cruzam de formas curiosas. E seu trabalho faz parte da batalha por direitos iguais. Algumas delas foram sufragistas, praticamente todas foram pioneiras em seus campos, quebrando tabus, enfrentando preconceitos - e tudo isso no contexto de duas guerras mundiais que bateram (ou explodiram) em suas portas.

Se há um defeito aqui é que os perfis das biografadas são relativamente curtos para vidas tão ricas. Qualquer uma delas mereceria um livro inteiramente para si - bem, algumas delas eu sei que possuem mais de um volume nesse sentido - e ‘resumi-las’ em pouco mais de quatrocentas páginas é um projeto bem ambicioso. Seja como for, Wade nos abre o apetite para pesquisar e descobrir mais sobre elas, ler diretamente suas obras. Como aperitivo, Square Haunting certamente cumpre o que promete.

E lá vamos aumentar a lista de futuras leituras de novo...

Nota:
(de 1 a 5, sendo: 1 – Decepção; 2 – Mais ou Menos; 3 – Interessante; 4 – Recomendo; 5 – Merece Releitura)

Ficha Bibliográfica

Título: Square Haunting: Five Women, Freedom and London Between the Wars
Autor: Francesca Wade
Editora: Faber & Faber
Ano: 2020

Onde Comprar

Amazon


A Coruja


____________________________________

 

Nenhum comentário:

Postar um comentário

Sobre

Livros, viagens, filosofia de botequim e causos da carochinha: o Coruja em Teto de Zinco Quente foi criado para ser um depósito de ideias, opiniões, debates e resmungos sobre a vida, o universo e tudo o mais. Para saber mais, clique aqui.

Cadastre seu email e receba a newsletter do blog

powered by TinyLetter

facebook

Arquivo do blog