8 de setembro de 2021

Hibisco Roxo: Encontrando a Própria Voz


Naquele instante, percebi que era isso que tia Ifeoma fazia com os meus primos, obrigando-os a ir cada vez mais alto graças à forma como falava com eles, graças ao que esperava deles. Ela fazia isso o tempo todo, acreditando que eles iam conseguir saltar. E eles saltavam. Comigo e com Jaja, era diferente. Nós não saltávamos por acreditarmos que podíamos; saltávamos porque tínhamos pânico de não conseguir.

Já tinha lido antes alguns dos volumes de não-ficção da Chimamanda - Sejamos Todos Feministas, O Perigo de uma História Única e Notas sobre o Luto - mas ainda não tinha pego em nenhuma das obras de ficção dela. Estava na lista, mas sempre ia aparecendo outras prioridades e ia deixando para depois. Até Hibisco Roxo ser indicado para o clube do livro e virar meu mundo de cabeça pra baixo.

Primeiro romance publicado de Chimamanda, Hibisco Roxo traz como narradora a jovem Kambili. Tendo crescido num ambiente opressivo, dominado pelo pai, o industrial Eugene - por um lado defensor da liberdade de expressão e opositor do governo ditatorial que tomou o poder na Nigéria, por outro, um fanático religioso que tortura toda a família em nome de sua fé - Kambili e seu irmão, Jaja, descobrem uma realidade completamente diferente ao passarem alguns dias hospedados com a tia Ifeoma e seus filhos.

É uma clássica história de amadurecimento - Kambili é uma adolescente de quinze anos, saindo de casa e se distanciando dos pais pela primeira vez, tendo desafiada sua visão de mundo, descobrindo-se de fato como uma pessoa independente. E isso num contexto político de instabilidade, numa Nigéria que, como país, também passa pelas dores do crescimento. É uma jornada dolorosa, mas necessária, surpreendente na maneira que consegue trazer leveza mesmo nos momentos de maior brutalidade do texto, costurada pelo contraste entre a religião focada no pecado e penitência de Eugene e a música e o riso, a mensagem de esperança e tolerância da crença de Ifeoma.

Não me lembro recentemente de um livro que tenha tido um impacto tão físico em mim. Demorei bastante na primeira parte do livro porque tinha horas que parecia me faltar o ar, o coração apertado no peito. Aliás, não consigo explicar como Chimamanda consegue passar essa sensação visceral de sufocamento - o calor opressivo, a violência do regime militar, a tirania de Eugene - só com sua prosa. Ela é concisa, sem grandes adjetivações, sem palavras desnecessárias. Uma melodia de notas exatas que consegue nos tocar de maneira impressionante.

Na segunda parte, quando Kambili e Jaja se encontram na casa de tia Ifeoma, houve momentos em que eu achava que também estava sentindo os cheiros e sabores que ela experimentava, e havia um encantamento, uma sensação de deslumbre e descoberta em cada cena. O desabrochar dos dois irmãos é seguido por uma efusão de cores, música, histórias e, sim, fé. É algo que transborda, um respirar fundo depois de longa constrição. É o momento em que Kambili - que até então se expressava muito mais por seus silêncios - encontra a própria voz.

Hibisco Roxo é uma obra complexa, que se presta a muitas reflexões - a depender dos interesses do leitor, há diferentes focos de interpretação do enredo, da dominação europeia e seus reflexos pós-coloniais a questão da violência doméstica - e rende um bom debate. Não se trata de uma leitura fácil, mas é de um desafio que vale a pena assumir.

Nota:
(de 1 a 5, sendo: 1 – Decepção; 2 – Mais ou Menos; 3 – Interessante; 4 – Recomendo; 5 – Merece Releitura)

Ficha Bibliográfica

Título: Hibisco Roxo
Autor: Chimamanda Ngozi Adichie
Tradução: Julia Romeu
Editora: Companhia das Letras
Ano: 2016

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