3 de setembro de 2021
Projeto Agatha Christie: O Homem do Terno Marrom
Então aqui vai. Anne Beddingfeld dá início à narrativa de suas aventuras.
Sempre desejei viver aventuras. Entenda, minha vida era de uma mesmice aterradora. Meu pai, professor Beddingfeld, era uma das maiores autoridades vivas da Inglaterra sobre o Homem Primitivo. Era realmente um gênio - todos dizem. A mente dele vivia na época do Paleolítico, e a inconveniência da vida para ele era que seu corpo habitava o mundo moderno. Papai não se importava com o homem moderno - até o Homem Neolítico ele desprezava, como se fosse um mero pastor de rebanhos, e nada o entusiasmava até chegar ao período musteriense.
Infelizmente, não é possível dispensar por inteiro o homem moderno, somos forçados a fazer algum contato com açougueiros, padeiros, leiteiros e verdureiros. Logo, com papai imerso no passado e mamãe tendo morrido quando eu ainda era bebê, coube a mim dar conta do lado prático da vida.
Publicado pela primeira vez em 1924, O Homem do Terno Marrom começou como uma serialização no The Evening News sob o título Anna, a Aventureira. Sob certos aspectos, o enredo faz lembrar o plot de O Adversário Secreto, mas, cá entre nós, não tem a mesma graça e energia da dupla formada por Tommy e Tuppence.
Anne Beddingfeld acaba de perder o pai, um antropólogo renomado, mas sem muita cabeça para as coisas práticas da vida. Depois de uma vida inteira na monotonia, Anne decide que é hora de agitar um pouco as coisas e tomar as rédeas da vida em suas mãos. Assim é que, mesmo com pouquíssimos recursos, Anne vai para Londres, por pura curiosidade se mete numa investigação de assassinato, e logo investe todos os recursos que possui numa passagem só de ida para a África.
Pelo meio do caminho ela encontrará uma confraria de criminosos, aliados, outros tantos inimigos, sofrerá algumas tentativas de assassinato, salvará rapazes aleatórios e depois será igualmente resgatada por eles e, de uma maneira geral, procederá com pouquíssimo rigor científico em suas investigações.
Embora comece como um mistério típico - quem matou a moça na casa de sir Eustace Pedler? -, o enredo se desenvolve num thriller internacional com direito a cenas em meio a um país em revolução e vai até uma aventura que me fez lembrar (acredite se quiser) de Tarzan na versão Disney. No final, a história está mais interessada em costurar um romance para Anne do que que descobrir o grande criminoso por trás de um rol imenso de crimes - que vão do roubo de diamantes ao tráfico de armas.
O livro é divertido nas idas e vindas, na jornada pitoresca e no elenco de personagens que, tenho de dizer, é muito sem noção. Sir Eustace - que tem capítulos dedicados ao seu diário -, o secretário Pagett, a entediada Suzanne, Miss Pettigrew e o reverendo Chichester, Harry, até o Coronel Race (supostamente um investigador para o MI5) têm atitudes francamente ridículas. Quanto à protagonista, Anne é impulsiva, cai em armadilhas óbvias, perde o foco mais de uma vez - embora seja capaz, ao final, de desvendar a verdade. Considerando que cresceu no interior, só com o pai, que era um daqueles tipos gênio inepto, até posso engolir um pouco da ingenuidade romântica dela. Mas só até certo ponto.
A decisão de Anne de simplesmente partir para África do Sul, sem qualquer plano para o que fazer quando chegar lá, com pouquíssimos recursos (que ela não tenta economizar em nenhum momento), e sem conhecer ninguém no caminho, não é simplesmente impulsiva: é estúpida. E isso tudo para… seguir atrás de alguém que ela sabe que não teve escrúpulos de matar uma mulher antes? E então se apaixonar à primeira vista por um homem que aparece sangrando em sua cabine, que é, potencialmente, o assassino, e que não demonstra qualquer cortesia para com ela? E cujo flerte, mais tarde, envolve ameaças de violência? Sério, mesmo?
Confesso que normalmente não sou fã de romances em que o casal se apaixona à primeira vista, mas a situação aqui é ainda mais inexplicável do que o normal desse gênero. Quando quer, Christie sabe escrever romances convincentes - lembro-me dos já citados Tommy e Tuppence -, mas eu não consegui acreditar na paixão repentina de Anne e Harry. Talvez até pelo fato de boa parte da narração ser feita em primeira pessoa por Anne, eu não consegui nem entender qual era o fascínio que a moça conseguia exercer em praticamente todos os homens com quem cruza ao longo de sua jornada.
Achei mais fácil acreditar no desenvolvimento da amizade de Anne e Suzanne que no resto dos relacionamentos.
Há problemas típicos de narrativas do período - tiradas sexistas e referências que podem ser lidas como racistas. O mistério, em si, não tem muito da complexidade que é marca registrada em seus enredos mais detetivescos. Achei que era meio óbvio quem estava por trás de tudo e acertei de primeira dessa vez. O que ainda prende é o cenário - Christie sabe nos fazer embarcar em suas jornadas, de navio, de trem, por planícies quentes, rios repletos de crocodilos - e o humor autodepreciativo que é bem típico em personagens britânicos.
Nota:
(de 1 a 5, sendo: 1 – Decepção; 2 – Mais ou Menos; 3 – Interessante; 4 – Recomendo; 5 – Merece Releitura)
Ficha Bibliográfica
Título: O Homem do Terno Marrom
Autor: Agatha Christie
Tradução: Petrucia Finkler
Editora: L&PM Pocket
Ano: 2016
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