31 de agosto de 2021
Conversas Sobre o Tempo #05 - Aquele em que falamos de dificuldades de interpretação
Umas semanas atrás dei de cara com um artigo no The Mary Sue sobre como grupos transfóbicos estariam tentando cooptar sir Terry Pratchett para suas linhas, aproveitando-se do fato dele estar morto e não poder se pronunciar sobre o assunto. Cá entre nós, tenho minhas dúvidas se esse pessoal realmente leu algum livro do Pterry - afinal, como eles conseguiriam encaixar Cheery Littlebottom ou o elenco de Monstrous Regiment nessa teoria?
O mais bizarro é que esses supostos leitores (bem, talvez até tenham lido, e sofram de uma severa incapacidade de interpretação de texto?) acharam de bater boca com Neil Gaiman e Rhianna Pratchett, porque, obviamente, eles estão mais bem informados que um dos melhores amigos e a própria filha de sir Terry.
Sou, aparentemente, uma pessoa masoquista, de forma que fui ler os comentários (por que faço isso comigo mesma?) e me deparei com uma fulana dizendo para Gaiman e Rhianna que Terry Pratchett não ia desejar que a filha dele fosse obrigada a dividir um vestiário com um homem que se diz mulher. É difícil não se perguntar se a pessoa se tocou de que estava escrevendo aquilo justamente PARA A FILHA DO CARA. É como se a pessoa dissesse “como você tem a audácia de dizer que sabe mais sobre seu pai do que pessoas aleatórias pela internet?”
No meu trabalho de investigação para descobrir como esse imbróglio todo começou, ainda me deparei com questões de antisemitismo (aparentemente os judeus estão por trás da agenda transgênero) e outra criatura dizendo que o próprio Gaiman já tinha concordado com os argumento da turma anti-trans (uma referência ao arco da Wanda em Um Jogo de Você), mas mudado a casaca para… não sei, se encaixar melhor num mundo de justiceiros sociais?
Para além do Gaiman e da Rhianna, várias outras pessoas (incluindo aí algumas que se identificam como trans) que conheceram sir PTerry falaram da forma como ele aceitava e acolhia todo mundo. Algum fã de boa memória desenterrou até uma entrevista em que ele tratava especificamente do assunto. E, se os testemunhos pessoais não são suficientes, sempre dá para analisar direto a obra dele.
Nessas horas, sempre me lembro do Eco. Depois que você lança um texto no mundo, ele está aberto a interpretação e cada leitor traz suas próprias vivências e crenças, sua bagagem, para a forma como o interpreta. Mas existem limites. Muito maluco leu os Protocolos de Sião como não-ficção (e fizeram o estrago que fizeram na História), mas dificilmente poderiam lê-lo como um… livro de receitas ou coisa parecida.
Nesse contexto, não sei como daria para interpretar os livros do Pratchett como transfóbicos. Só de Discworld são mais de quarenta livros, e em uma parte significativa deles, sir Terry alegremente passa de trator por cima de uma monte de convenções de gênero. Se bruxas são sempre mulheres e homens são sempre magos, ele nos apresenta Esk, uma garota cuja magia se identifica muito mais com a dos magos e, mais tarde, coloca Geoffrey, um rapaz, numa posição tipicamente feminina da hierarquia mágica (em um posto antes encabeçado por ninguém menos que vovó Cera do Tempo).
Seus anões são uma raça igualitária em que ninguém sabe o sexo de ninguém se você não perguntar de forma específica, até que Cheery desafie todas as convenções e decida se identificar com características femininas - uma identidade que, francamente, independe do que lhe vai por baixo da armadura. Nooby gosta de se travestir de mulher. E praticamente todo o exército de Borogravia é formado de mulheres posando de homens (“com o auxílio de um par de meias bem colocado”), que começaram dessa forma por necessidade, mas, em alguns casos, descobriram-se diante de tal oportunidade.
Quando um personagem morre no Disco, é recepcionado por Morte, mas o que ele encontrará para além da passagem é nada menos nada mais do que ele espera e acredita. Afinal, boa parte do universo do Disco se equilibra entre a lei da causalidade narrativa e o poder da crença. Se você acredita o suficiente numa determinada divindade, grandes são as chances de que ela venha a se manifestar - incluindo aí o “oh, deus das ressacas”. Então, se o que você acredita é capaz de criar seu próprio paraíso ou inferno (algo que realmente acontece em Pequenos Deuses); sua crença também determina aquilo que é fundamentalmente intrínseco a sua identidade, o que você é.
Pratchett celebra continuamente a diversidade, colocando preconceito e intolerância como os piores vilões em muitos de seus enredos. Ele satiriza e se exaspera com o potencial para estupidez que a humanidade possui, mas, de uma forma que me maravilha, nunca perde a esperança na capacidade de superação e compaixão do ser humano. Levando tudo isso em consideração, tentar impor a noção de que Terry Pratchett seria a favor de uma crítica de gênero excludente me parece ser, claramente, uma superinterpretação que extrapola todos os limites que o texto tem como suas fronteiras.
Quase ao mesmo tempo do debate sobre Pratchett, outro autor que admiro se envolveu numa baita polêmica - também pelo Twitter. Philip Pullman resenhou positivamente ‘Some Kids I Taught and What They Taught Me’ da Kate Clanchy, livro acusado de linguagem racista e capacitista - e comprou briga com autores que fazem parte de minorias que identificaram esses problemas e questionaram publicamente a Clanchy, ao ponto de compará-los [os críticos] ao Talibã (comparação que se provou ainda mais infeliz alguns dias depois, quando Cabul caiu diante do Talibã). Um desses escritores, a Monisha Rajesh, entregou um editorial sobre a confusão para o The Guardian, que traça muito bem as razões para a crítica.
Antes disso, a Clanchy já tinha reclamado de resenhas postadas no Goodreads identificando esses mesmos problemas de que a Rajesh fala, dizendo que era mentira da pessoa que tinha resenhado, que aqueles termos não estavam no livro… para ser desmentida quase de imediato. Com prints! Aí ela se defendeu dizendo que as citações tinham sido tiradas de contexto. No final, deletou os tweets e aparentemente vai reescrever as partes problemáticas tendo em mente as críticas que recebeu. Se você se perdeu no fio, aqui tem um resumo da ópera toda.
O Pullman se desculpou no dia seguinte, apagou o que tinha escrito de mais ofensivo e, em sua defesa, explicou que “não tinha lido” tudo e reagira ao que achava ser um ataque de gente que… não lera a obra geradora da confusão e aconselhava outros a não lerem também. Considerando a veemência com que ele disse que não iria se desculpar no dia anterior, fiquei com pé atrás de engolir tal contrição. Pessoas mudam de opinião o tempo todo, mas uma mudança tão radical (ou não tanto, por que ele dá a entender que se equivocou no alvo da crítica, mas não no conteúdo? Foi minha impressão...) em tão pouco tempo não me parece ser fruto de uma reflexão mais aprofundada e um real arrependimento, e sim uma preocupação com público consumidor e dividendos - o temor de ser “cancelado”.
Há algo similar nessas duas situações: Gaiman e Rhianna foram desafiados por um grupo de leitores (estes com uma agenda de exclusão de minorias) sobre a posição de outro autor - no caso, o falecido Terry Pratchett - acerca do público trans. Pullman foi questionado por um grupo de leitores que são eles mesmos membros de minorias e se sentiram ofendidos com uma obra que possui linguagem preconceituosa. Em ambos os casos, as redes sociais (em específico, o Twitter) permitiram esse confronto. No primeiro, as figuras públicas defenderam uma visão de diversidade e inclusão. No segundo, houve uma preocupação maior com o próprio privilégio, e a liberdade de expressão a qualquer custo e sem responsabilidade.
Fiquei decepcionada com o Pullman (bem, ele já tinha me decepcionado esse ano, quando terminei o segundo volume da nova trilogia dele…), porque o problema não foi simplesmente ele ter saído em defesa de uma outra autora, sua conhecida, mas a maneira como ele fez isso - primeiro ignorando as pessoas que levantaram a questão, depois comparando-as a extremistas religiosos (extremistas que perseguem e negam os direitos das mulheres). Em nenhum momento ele sequer tentou entender o outro lado, saindo-se de cara com um “isso me faz perder a fé na humanidade”. Meu amigo, tu és um escritor renomado, cadê tua capacidade de interpretação? Teu senso de contexto? Teu bom senso para dizer que essas pessoas que convivem com o preconceito têm, sim, o direito de se sentir ofendidas com linguagem preconceituosa?
Eu sei que se formos jogar fora todos os livros que se encaixem nesse tipo de polêmica - seja pela linguagem e retratos estereotipados, seja pela vida do autor - deve sobrar pouca coisa do que a Academia considera Cânone. Mas não estamos falando de um uma obra cujo escritor já morreu, um livro de décadas ou séculos atrás, que, para além do enredo, serve também de documento histórico do período em que foi escrito. Trata-se de uma obra contemporânea, em que a autora - uma professora - fala de suas experiências ensinando a crianças que fazem parte de várias minorias. É razoável que haja esse questionamento - tanto que no final das contas, ela afirmou que reescreveria as partes controversas.
Deixando de lado o debate de validade do que foi reivindicado em ambas circunstâncias, eu me pergunto se no dito ‘mundo real’, anônimos que nunca conviveram com sir PTerry teriam coragem de questionar a filha dele sobre os princípios e crenças de que ele comungava? Ou Pullman teria chamado um grupo de autoras negras de terroristas (na comparação com o Talibã e o Estado Islâmico) por elas chamarem a atenção de alguém que estava usando linguagem racista?
Tem sido um debate bem constante a forma como a internet nos facilita acesso - a informação, dados, pessoas - e também como nos insere em bolhas em que reverberam apenas as mesmas opiniões que esposamos. Como é uma ferramenta poderosa de educação e como também amplia a voz do “idiota da aldeia” (para usar uma expressão do Eco, já que falei dele agora há pouco). A liberdade de expressão é um direito fundamental, mas não é absoluto. Quem fala o que quer tem de arcar também com as consequências do que fala - na literatura, na política, na vida.
Enfim, esse é um assunto que merece mais reflexão e debate que uma curta crônica por aqui. Mas acho que ter um pouco de bom senso, capacidade lógica, empatia e, claro, saber fazer interpretação de texto, são elementos indispensáveis para enfrentarmos essa conversa.
No Escaninho. Tendo falado tanto de luto e de comida no Coruja esse mês, chamou-me a atenção a reportagem da BBC sobre como a comida pode ajudar após a perda de um ente querido. A Didion falou algo muito parecido no livro dela que me pescou durante a leitura (foi uma das partes que sublinhei por sinal).
Por esses dias li uma newsletter que falava sobre como o Twitter teria “quebrado” o YA. Eu me lembrei desse texto enquanto ia seguindo o rastilho de pólvora das polêmicas de que tratei na crônica de hoje. Especialmente sobre o que a Nicole falou de “relacionamento parasocial”, desumanização do autor e colapso do contexto. O artigo é grande, mas vale a pena lê-lo até o fim.
E já que tratamos de toda a polêmica sobre o uso de linguagem preconceituosa, vale dar uma olhada no Writing With Color, que centraliza uma série de recursos - guias, conselhos, recomendações de leituras - para autores escrevendo personagens diversos em raça, etnia e religião.
Dez anos após publicar uma lista dos 100 Melhores Livros da Fantasia e Ficção Científica de Todos os Tempos, o pessoal do site NPR abriu uma nova votação para que os leitores escolhessem os 50 Melhores Títulos de Fantasia e Ficção Científica da Última Década. Entre uma e outra, houve um ganho enorme de representatividade. Para quem gosta de listas, essa está imperdível (e tem várias outras em diferentes gêneros literários por lá).
E este vale a reflexão: uma corte australiana determinou que uma Inteligência Artificial pode ser uma inventora - em outras palavras, uma IA pode patentear invenções. Fez-me lembrar da leitura de O Humano Mais Humano de Brian Christian, que é um livro absolutamente fantástico sobre os avanços da inteligência artificial e seu lugar na sociedade. Recomendo fortemente! (talvez até mereça uma releitura para ser resenhado no blog…)
Previsão do Tempo para Hoje. Estamos num dia de humor ferino aqui, então vamos com o filósofo dinamarquês Søren Kierkegaard, no ensaio Diapsalmata:
"As pessoas exigem liberdade de expressão como uma compensação pela liberdade de pensamento que elas raramente usam."
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