10 de agosto de 2021

Mas que Pombas, Pullman! (Ou minhas reações ao ler "A Comunidade Secreta")


Sem imaginação? Tentando viver sem imaginação? Nunca antes ela pensara no que podia ser sua imaginação. Se tivesse pensado, talvez sentisse que aquele aspecto de si mesma residia mais em Pan, porque ela era prática, direta, realista... Mas como sabia disso? Outras pessoas pareciam considerá-la assim, ou pelo menos a tratavam como se ela tivesse essas qualidades.

Fronteiras do Universo foi uma das histórias que definiu minha adolescência e cresceu comigo - um daqueles livros que faz parte da sua formação, da sua própria estrutura e maneira de pensar. É uma fantasia maravilhosa, mas também uma obra sobre questionar e até quebrar dogmas. Foi com ela que aprendi o significado de ‘iconoclasta’.

Dito isso, não é surpresa o quanto eu me empolguei quando descobri que Pullman estava trabalhando numa segunda trilogia dentro do mesmo universo (ainda que eu não conseguisse ver como melhorar aquela final de A Luneta Âmbar). Foi com enorme expectativa que comecei La Belle Sauvage, e, ao terminá-lo, não sabia bem como me sentir sobre ele. Levei em consideração o peso dos meus anseios no julgamento final e permaneci curiosa para ver como o autor trabalharia essa partida da mitologia judaico-cristã que domina a primeira série.

Quando comecei A Comunidade Secreta, mesmo sabendo que nele estaria finalmente de volta com Lyra e Pan - personagens que foram tão importantes no meu desenvolvimento -, consegui me refrear na empolgação. Eu realmente nem sabia o que começar a esperar do livro, depois do sacode que levei com La Belle Sauvage. Mas, depois de me arrastar pela leitura por meses e terminar mais por teimosia que gosto pela história, não tenho como dizer outra coisa sobre ele: foi uma decepção.

Ok, então, o enredo não está muito longe das intrigas político-religiosas de Fronteiras do Universo. Encontramos Lyra como uma jovem adulta, na universidade e… às turras com Pantalaimon. Um assassinato acontece, vários debates filosóficos se alternam, há um misterioso óleo de rosas com propriedades místicas e científicas, o Magisterium, de novo, está por trás de tudo. Temos jornadas paralelas, vários pontos de vista diferentes, retorno de personagens como Fader Coram e Mãe Costa, e também Malcolm e Alice. Um tanto de espionagem, uma pitada de romance, segredos de família.

E por que eu não gostei? Pelo resumo, parece algo bem ao meu gosto, não é mesmo? Bem, a razão é simples: todo o amadurecimento dos protagonistas foi jogado pela janela. É difícil de acreditar que a Lyra que viveu tudo o que viveu desde A Bússola Dourada tenha se tornado tão cínica e francamente detestável. A perda da cumplicidade e confiança dela com Pantalaimon até poderia ser explicada e digerida, mas a razão que Pullman nos dá - um conflito literário e filosófico - é tão sem fundamento que não consigo enxergar coerência nas ações dos personagens.

Alguma coisa se quebrou aqui e desconfio que tenha sido meu coração...

Haveria maneiras de traduzir um conflito moral que colocasse Lyra com a Razão e Pan com a Emoção. Especialmente quando você tem todo o argumento metafísico dos daimons como uma parte visível da alma de um ser humano; e Lyra como uma jovem tentando se encaixar no mundo e num grupo, indo na conversa do que está na moda. Seria crível colocar esse confronto entre aquilo que apresentamos ao mundo e o que realmente nos vai no interior. Eu até acolheria o argumento de uma pessoa tão autodestrutiva, tão divorciada de si mesma, que ela e sua “alma” são capazes de se compreender. Isso acontece em La Belle Sauvage, com Gerard Bonneville. Eu acreditei na possibilidade ali.

A questão é que Pullman nos joga dentro do conflito (e eu realmente me senti jogada) de Lyra e Pan, deixa implícito que é algo que vem supurando há anos (desde a separação deles quando ela foi para a Terra dos Mortos), e que, embora isso sirva de base para toda a trama, ele não tem interesse em explicar o que aconteceu. E, sem enxergar como a coisa chegou naquele ponto, tendo por referência o final da primeira trilogia e nada que sirva de elo entre uma história e outra, Lyra e Pan perdem o sentido que eles faziam para mim.

Sério, eu basicamente passei a primeira metade do livro resmungando comigo mesma “isso não faz sentido, isso não faz sentido, ISSO NÃO FAZ SENTIDO!!!”

E aí você tem as contrapartes de Lyra no enredo. Sobre o Malcolm, não tenho nada contra, até consigo aceitar a fascinação dele com Lyra, mesmo quando ela era uma aluna dele. Atração não é uma coisa que você consiga controlar; as ações daí decorrentes, sim, você controla e ele fez isso. Vi críticas que o chamam até de pedófilo, mas, de boa, não tem nada de Lolita aqui. Malcolm nunca tentou usar sua posição enquanto era professor de Lyra; eles se reencontram anos depois, com ela já adulta e nada chega a acontecer de fato além de olhares de interesse - a diferença de idade é grande, mas não chega a ser irreconciliável.

Marcel Delamare, que é aparentemente o grande vilão dessa trilogia, é simplesmente bizarro. Honestamente não consegui compreender as razões dele. Vingança? Despeito? Complexo de Édipo, com uma paixão compartilhada pela mãe, irmã e sobrinha? Ele consegue se colocar numa posição de poder absoluto no Magisterium - mas minha impressão é que ele não está de fato interessado no poder. Há uma sugestão de interesse mais que fraternal na relação dele com Mrs. Coulter que, de novo, aparece de forma tão de repente que parece um naco de carne jogado aos tigres. 

Quando ele e a mãe conversam sobre os acontecimentos de Fronteiras do Universo eu só conseguia pensar com meus botões “ok, mas de onde vocês vieram? O que vocês estavam fazendo quando Asriel basicamente declarou guerra contra Deus? Vocês caíram de paraquedas aqui, e mesmo assim eu tenho de acreditar que vocês eram pessoas intimamente ligadas a uma das personagens mais importantes da primeira trilogia, e ela nunca sequer gastou uma linha de pensamento com vocês?”.

Mrs. Coulter está te julgando.

Para conseguir mergulhar numa história, você tem de ligar sua suspensão de descrença. Considerando que passei o tempo inteiro da leitura questionando as escolhas do Pullman - por que não havia como NÃO questionar -, como eu poderia suspender minha descrença por tempo suficiente para acreditar minimamente no enredo?

E aí tem Olivier Bonneville, o aletiometrista que está na cola da Lyra, que não apenas é filho do vilão ensandecido de La Belle Sauvage, Gerard Bonneville (que tentou matar nossa protagonista quando ela era um bebê), como é aparentemente idêntico fisicamente ao Will. Sim, o mesmo Will que é o primeiro e grande amor de Lyra, a quem ela ainda é emocionalmente fiel, e que está em outro mundo, inalcançável para ela.

O que Pullman quer fazer com isso? Fazer Lyra se aproximar de Olivier - que deseja matá-la - porque ele tem a mesma cara do Will? Transformar a coisa num triângulo amoroso com o Malcolm? As coisas já não estão confusas o suficiente?

Depois de tudo isso, tem ainda a questão da violência sexual. Aconteceu em La Belle Sauvage: Gerard atacou Alice, por nenhuma outra função de roteiro além de dar razão para Malcolm, então aos onze anos, matá-lo. Àquela altura dos acontecimento, já ficara bastante claro que Gerard era clinicamente insano, que não ia largar a perseguição até matar Lyra. Havia ampla justificativa de legítima defesa sem necessidade do estupro de Alice.

Aí, já perto do final de A Comunidade Secreta, a própria Lyra é atacada num vagão de trem por uma companhia de soldados, numa cena que é tão brutal, como também aparece de lugar nenhum. É total e completamente desnecessária para o enredo, servindo apenas para chocar o leitor. Fiquei remoendo o porquê de Pullman ter escrito isso e a única resposta que consigo pensar é que ele queria mostrar mais violência, que há mais riscos nesse mundo em que a Lyra está, que as coisas estão mais “adultas”. Convencer o leitor que era adolescente quando encontrou Fronteiras do Universo na estante de literatura juvenil, e que se tornou uma geração de espectadores de A Guerra dos Tronos, que sua protagonista original cresceu.

Dois livros, duas cenas de violência sexual desnecessária. Se essas cenas tivessem sido tiradas da trama, não consigo enxergar nenhuma perda essencial ao plot. Dentre todas as críticas que eu poderia fazer ao Pullman aqui, essa violência gratuita foi das que mais me incomodou. É algo tão injustificado quanto a falta de coerência e coesão entre as duas trilogias.

Para ser sincera, não é a primeira vez que Pullman me desaponta assim. Eu lembro de ter ficado sem ação, perguntando-me se tinha pulado alguma parte, se estava faltando páginas na minha edição ou se eu simplesmente lera dormindo o trecho que faria o enredo fazer sentido ao final de A Borboleta Tatuada, que li logo depois de terminar Fronteiras do Universo pela primeira vez. Existe uma razão para o fato de que, embora tenha escrito alguns dos meus livros favoritos, o Pullman não está na minha lista de autores preferidos.

Há coisas interessantes acontecendo em A Comunidade Secreta, o suficiente pelo menos para ele não ser uma decepção total - o mistério por trás das rosas; a questão da comunidade secreta que dá ao livro seu título, os esquemas para fortalecer o Magisterium, os agentes de Oakley Street (que foi minha parte favorita em meio a tantas subtramas). Lyra e Pan me deram vontade de arrancar os cabelos em mais de um momento, mas eu cheguei à conclusão de que gosto muito do Malcolm. Há um forte sentimento de tensão permeando o enredo, uma impressão de que um barril de pólvora está para estourar a qualquer momento, e isso é um ponto para o autor.

Com tudo isso, talvez Pullman ainda tire coelho da cartola e consiga fazer as coisas ganharem sentido chegando ao terceiro e último volume - ainda sem título ou previsão de publicação. Quem sabe? A esperança é a última que morre. Com certeza vou lê-lo, porque detesto deixar as coisas incompletas; e quero saber qual a solução final para todas as pontas soltas que ele deixou. Ainda assim, não posso negar, meu interesse a essa altura é mais teimosia que o desejo real de ver esse final…

Nota:
(de 1 a 5, sendo: 1 – Decepção; 2 – Mais ou Menos; 3 – Interessante; 4 – Recomendo; 5 – Merece Releitura)

Ficha Bibliográfica

Título: O Livro das Sombras - A Comunidade Secreta
Autor: Philip Pullman
Tradução: José Rubens Siqueira
Editora: Suma
Ano: 2020

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