28 de dezembro de 2017
La Belle Sauvage: Enchentes, Contos de Fadas e Épicas Jornadas na volta ao mundo de Fronteiras do Universo
Não sei exatamente quando foi que li a série Fronteiras do Universo pela primeira vez, mas lembro de folhear o livro no portão, enquanto esperava a condução escolar, então isso foi ainda na década de 90. Sei que devorei os três volumes compulsivamente e tão logo terminei, queria recomeçar. Por causa de Pullman, aventurei-me a ler O Paraíso Perdido, o poema épico de Milton sobre a Queda de Lúcifer, Adão e Eva; e até me aventurei a escrever meus próprios enredos emprestando contos da mitologia judaico-cristã. Lyra e Will, a guerra pessoal de Lorde Asriel contra a Igreja e o Magisterium, a figura sedutora e manipuladora de Mrs. Coulter - tudo isso me fascinava. Ao terminar A Luneta Âmbar, eu não sabia explicar como Pullman conseguira me deixar de coração completamente partido e, ao mesmo tempo, tão satisfeita com a história.Mas o tempo não estava ajudando: a enchente consumia tudo, e a confusão era generalizada. Além disso, lorde Nugent logo se viu questionando se aquele dilúvio era inteiramente natural. Ele e seus companheiros gípcios achavam que a inundação tinha uma fonte mais estranha que o clima, pois começara a gerar ilusões e se comportar de maneira inesperada. A certo ponto, eles perderam de vista absolutamente toda a terra; era como se estivessem no oceano. Em outro ponto, Nugent teve certeza de ter visto um animal parecido com um crocodilo, ao menos tão comprido quanto o barco, a segui-los como uma sombra, sem nunca se revelar inteiramente. Certa noite, também viu luzes misteriosas se movendo abaixo da superfície, e escutou uma orquestra tocando de uma maneira que nenhum deles jamais tinha ouvido.
Fronteiras do Universo foi uma leitura tão marcante que, quando fui a Oxford para um tour quase que inteiramente literário, uma das minhas prioridades era visitar o jardim botânico e encontrar o banco com as iniciais de Lyra e Will. E sim, eu confesso: ali me sentei e passei bem uma meia hora, lembrando de uma história que tinha lido quase duas décadas antes e que ainda mexia comigo.
Não faço ideia de quando foi que ouvi falar que haveria uma continuação para essa trilogia. Por um lado, voltar ao mundo que nos tinha sido apresentado naquelas primeiras histórias era um sonho - há tanta coisa interessante, tantos personagens fascinantes, com suas próprias narrativas, que poderiam ter sua vez no enredo... por outro, por mais doloroso que fosse o final da saga, ele era perfeito e arranjar as coisas para dar um 'e eles viveram felizes para sempre' aviltaria os sacrifícios, a importância de tudo o que tinha acontecido até aquele ponto.
Seja como for, desde a primeira vez que ouvi falar que haveria uma nova trilogia chamada The Book of Dust (que aqui no Brasil foi traduzido como “O Livro das Sombras”, porque provavelmente não pegaria bem chamá-lo de “O Livro do Pó”), e que Pullman desenvolveria melhor aqui suas explicações sobre as ligações entre o Pó e a consciência, fiquei na expectativa. Nada se falava em Will, mas sabíamos que Lyra voltaria a aparecer e isso também me deixou mais empolgada, porque Lyra é uma das minhas mais queridas personagens de todos os tempos e isso me dizia que cada um continuava em seu mundo.
Bem, o Goodreads me diz que marquei o livro para ler em 2013, então isso significa que estou esperando por ele há, pelo menos, quatro anos. Quatro anos para esperar, até para esquecer, e aí relembrar e roer as unhas e especular.
E aí a primeira pergunta que não pode calar aqui: valeu à pena a espera? E eu vou ser extremamente sincera - eu ainda não sei.
La Belle Sauvage é, na verdade, um prequel para os acontecimentos de Fronteiras do Universo. Lyra aparece, sim, mas como um bebê. Ela é o centro do conflito entre facções da Igreja e grupos contrários ao poder que os religiosos têm ganho, além de ser, aparentemente, nome importante em uma das profecias das Bruxas do Norte. Mas, na prática, até esse ponto, ela é um objeto, mudando de mãos, sendo perseguida e disputada e protegida desesperadamente pelos verdadeiro protagonista do enredo: Malcolm Postead.
Malcolm é filho do casal que administra A Truta, uma taverna próxima a um convento de freiras. É lá que ele conhece Lyra, acolhida após o julgamento de seu pai, Lorde Asriel, pelo assassinato do marido de sua amante e mãe de Lyra, a bela e infame Mrs. Coulter. Malcolm é filho único e quase imediatamente se encanta com a menina, a quem passa a tratar quase como uma irmã. Mas outras coisas estão também acontecendo em Oxford, outras forças misteriosas, como uma mensagem secreta encontrada dentro de uma noz de carvalho… de forma que a vida de Malcolm passa a ser observar Lyra, ajudar as freiras, manter sua estranha rivalidade com Alice, a garota que ajuda sua mãe na cozinha e… servir de espião para um grupo secreto de políticos e intelectuais que trama contra o Magisterium.
A primeira metade do livro prepara o terreno para uma tempestade violenta - no sentido literal e metafórico. Malcolm vai descobrindo coisas, pessoas estranhas chegam a Oxford, conspirações são sussurradas e, no meio de tudo isso, o dilúvio parece retornar à Inglaterra, com uma enchente que destrói tudo por onde passa, tragando o convento e levando em sua corrente a canoa de Malcolm, a ‘La Belle Sauvage’, com o menino, Alice e a pequena Lyra dentro. Só que não se trata de uma tempestade normal: coisas são vistas na água, criaturas surgem das profundezas e o próprio Pai Tâmisa, a personificação do rio, pode estar envolvido no que está acontecendo.
A primeira trilogia de Pullman se concentra bastante na mitologia judaico-cristã. Há as bruxas e os ursos de armadura, harpias e, claro, os daemons, mas o que fica em destaque são os anjos, serafins e querubins, Metraton e o próprio Deus. A questão religiosa está completamente entranhada no enredo, é a causa e o objetivo de todos os personagens, seja representando seus papéis num ciclo de tentação e conhecimento (a repetição da história da Serpente, Adão e Eva), seja na figura bastante sinistra e opressora que a Igreja assume no Universo de Lyra. Nesse livro, embora a ameaça do Magisterium ainda esteja presente, Pullman nos leva a encontrar criaturas de contos de fadas, outras mitologias - como se a enchente tivesse aberto as comportas para Faërie. O que faz sentido, considerando que o mundo de Lyra é apenas um universo entre milhares de outros mundos paralelos.
Faz sentido, mas, confesso, pegou-me de surpresa. Especialmente porque tais criaturas são desnecessárias como obstáculos a Malcolm, Alice e Lyra; há riscos muito maiores nas crianças da Liga de Santo Alexander, doutrinadas para serem vigias e delatoras (até dos próprios pais); na presença dos homens do TCD, o Tribunal Consistorial de Disciplina (que me faz pensar na KGB…) e na figura dissimulada de Gerard Boneville. Todos eles são - ou foram - pessoas comuns, que, por ideologia, interesse, loucura ou vingança, tornam-se vilões. O fato de serem de carne e osso os torna, ao menos na minha opinião, muito mais aterrorizantes. A violência que eles perpetram é tangível; especialmente sufocante nos confrontos com Boneville e seu daemon hiena.
Eu achava que Pullman não conseguiria fazer um vilão mais angustiante que Mrs. Coulter, mas Boneville me embrulhou o estômago. Com sua bela aparência, seus modos corteses e sedutores e suas alterações de humor entre ira e desdém, Boneville consegue enganar e conquistar mesmo tendo sua alma exposta na figura de seu daemon.
La Belle Sauvage é um livro que quase não te dá tempo para tomar fôlego; tanta coisa acontece que ele parece até maior do que realmente é. É um bom livro, uma aventura fantástica, que pode até ser lida sem conhecimento prévio de Fronteiras do Universo… mas é o primeiro de uma série e não parece ter uma resolução. Esse é meu motivo para não ser capaz de dizer que tanta espera valeu à pena. Colocamos Lyra em Jordan, que é o local em que vamos encontrá-la no início de A Bússola Dourada; descobrimos já a existência dos aletiômetros; Mrs Coulter e Lorde Asriel apareceram de relance e temos pistas para tentar entender o que é o Pó (afinal, a trilogia se chama “O Livro do Pó”, então ele tem de aparecer em algum lugar…). Contudo, tudo isso parece um grande prólogo… com exceção da resolução do conflito entre Malcolm, Alice e Boneville, que é uma cena bem pesada, mas muito real e definitiva.
Talvez a questão seja que os acontecimentos da primeira trilogia ocorrem numa escala épica, numa aventura que abrange mundos e que trata de amadurecimento, consciência, questionamento, sacrifício. É difícil superar isso e Pullman não tentou fazê-lo. La Belle Sauvage é uma história bem mais contida, um drama menor no grande esquema das coisas. Não é uma história ruim - bem longe disso, na verdade - mas me deixou com a sensação de que poderia ser mais.
O segundo volume da trilogia, A Commonwealth Secreta ainda não tem data de publicação, mas Pullman afirmou que já estava editando o texto. Considerando o título, acredito que ele nos oferecerá mais respostas, até porque esse é o termo utilizado pelos gípcios nessa história para explicar as criaturas reveladas na enchente. Vi uma sinopse dizendo que o novo livro se passaria vinte anos depois de La Belle Sauvage - e dez anos após A Luneta Âmbar, o que significa que vamos encontrar Lyra já adulta; somando tudo isso, porém, confesso que não sei o que esperar. Vamos ver, se tudo der certo, talvez saia ano que vem...
Nota:
(de 1 a 5, sendo: 1 – Não Gostei; 2 – Mais ou Menos; 3 – Gostei; 4 – Gostei muito; 5 – Excelente)
Ficha Bibliográfica
Título: O Livro das Sombras - La Belle Sauvage
Autor: Philip Pullman
Tradução: José Rubens Siqueira
Editora: Suma
Ano: 2017
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A Coruja
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Livros, viagens, filosofia de botequim e causos da carochinha: o Coruja em Teto de Zinco Quente foi criado para ser um depósito de ideias, opiniões, debates e resmungos sobre a vida, o universo e tudo o mais. Para saber mais, clique aqui.
Hey, Owl... conclui a minha leitura de La Belle Sauvage hoje e abri meu email para encontrar esta maravilhosa resenha me esperando. Minha experiência com a trilogia Fronteiras do Universo também foi deveras marcante; não imaginava, porém, que o banco existia em Oxford... que mágico deve ter sido pra você... consigo apenas imaginar como teria me sentido.
ResponderExcluirFoi um choque saber que Pullman estava retornando para o nosso tão querido universo e não resisti. Parei a outra leitura que estava fazendo e simplesmente devorei o livro. Apaxonei-me pelo Malcolm e foi tão gostoso reviver toda a mitologia acerca dos deamons, o sincretismo religioso do universo e mesmo o breve reencontro com as feiticeiras... rever Marisa Coulter e Asriel, quando sabemos seus destinos... valeu muito pela nostalgia.
Foi bem como você disse: um prólogo. E espero saber mais sobre Malcolm e Alice no próximo, porque considerei o final bastante abrupto; parar justamente ali, daquela forma. Não em questão de arco, pois concordo que houve um desfecho bastante pesado para o drama vivenciado por eles com Boneville, no entanto, esperava mais... mais direção ao final? Não sei ao certo, mas desejo revê-los no próximo!!
Adorei a resenha e as imagens <3
xoxo, ana.
Foi sim, Ana; Oxford foi uma viagem inesquecível - fiz uma lista dos autores e histórias que tinham a ver com a cidade e pesquisei para montar um roteiro todo literário. Foi uma surpresa pra mim também descobrir sobre o banco... Eu não podia deixar de passar por lá, porque o final de Fronteiras do Universo, com a promessa de Will e Lyra de sempre se 'encontrar' naquele lugar foi uma das cenas mais tocantes que lembro de ter lido.
ExcluirEu adorei o Malcolm e a Alice e fiquei me perguntando onde eles estavam enquanto Lyra vivia sua aventura da primeira trilogia. Após acompanhar tudo o que eles fizeram por Lyra, eu fiquei "mas como assim, eu não os vi em A Bússola Dourada? Eles tinham que estar lá!" Quero muito ver os dois de novo e, mais, quero ver eles com a Lyra crescida, sabendo o que eles fizeram por ela. Vamos torcer para que essas expectativas sejam respondidas no próximo livro. Obrigada pelo comentário!