27 de março de 2020

Os Livros em Tempos de Quarentena


Completei oficialmente uma semana de isolamento. Aqui em casa temos conseguido manter uma rotina mais ou menos normal. D. Mãe e eu dividimos o trabalho de casa e todos temos conseguido trabalhar sem sair. Papai faz exercícios pela manhã e de tarde maratona séries na Netflix (ele começou agora La Casa de Papel). Comprei lápis de cor e livros de colorir, porque falam que é antiestressante e comecei a escrever meu próprio diário da quarentena (porque escrever, para mim, sempre serviu como válvula de escape). Mas seguimos preocupados.

Boa parte da família se encaixa nos grupos vulneráveis: minha avó é idosa, diabética e hipertensa; quase todos os meus tios têm problemas de diabetes ou hipertensão, para não contar os que têm histórico de doenças respiratórias; e há uma primarada sem fim de médicos e enfermeiros. Tenho uma tia que está internada desde o mês passado com complicações de uma trombose e que agora está sozinha no hospital porque uma filha é enfermeira e a outra está com suspeita do covid. Outra tia, que luta contra um linfoma há sete anos, recebeu diagnóstico de metástase no estômago e no intestino exatamente no dia anterior ao início dos pedidos de isolamento - e a filha dela, médica, está de quarentena também por ter tido contato com duas colegas que estavam com o vírus. Meu irmão trabalha na área de transplantes do Hospital das Clínicas em São Paulo, mas embora ele nos diga que está tudo bem, que não é nada que tenha a ver diretamente com a área em que ele trabalha, o fato é que ele está todo dia o dia inteiro dentro de um hospital que tem recebido vários casos.

Enfim, como diz a velha maldição chinesa, vivemos tempos interessantes.

Nesse contexto, não sei se é uma impressão minha, mas me parece que estamos mudando nossas prioridades. Cuidar daqueles que amamos, buscar formas de interagir mesmo distantes, valorizar a família e a comunidade. Nos últimos dias, meus vizinhos se reuniram às janelas para bater palmas, agradecer, cantar “parabéns pra você”. Vimos pessoas se oferecendo para fazer compras para idosos e pessoas vulneráveis, para que elas não saiam de casa. Milhares de pessoas atenderam, em vários lugares, chamados para trabalhar, de forma voluntária, no combate à doença.

Claro que existem as exceções… mas não é sobre isso que quero falar hoje, ou vou querer quebrar alguma coisa. Estou falando de valores e de prioridades. Sim, é disso que quero falar.

No grande vazio que ficou a rotina de muitos, incertos, talvez em pânico, a arte talvez seja uma possível resposta às dificuldades. As pessoas cantam, tocam e dançam em suas varandas. Muitas empresas de streaming disponibilizam gratuitamente seus conteúdos, filmes, séries, documentários. Há uma infinidade de possíveis tours virtuais por grandes museus e monumentos pelo mundo. Além de cursos sobre todo e qualquer assunto que você possa imaginar, de programação à filosofia.

E, claro, há livros.

Podemos compartilhar nossas leituras (pessoal do clube do livro que o diga), podemos debater, trocar ideias, mas o ato de ler é uma ação ainda solitária, perfeita para tempos como os nossos. Por algumas horas, podemos nos perder em outros mundos, viajar para outras realidades. Ler nos ensina empatia, nos serve de aprendizado e é um conforto nas horas difíceis. Não importa muito, num momento como esse, se estamos lendo por desejar um escape, um divertimento ou se estamos usando essas leituras para reflexão e à busca de um sentido: toda forma de lidar com o isolamento e manter a sanidade nesse período é válida.

Pensando nisso, plantei-me na frente da estante e comecei a catalogar mentalmente livros que serviam para essa época. Livros que eu poderia reler ou recomendar por aqui por um motivo ou outro.

Existe certo alento em ler sobre pandemia em tempos de pandemia. Talvez porque quando você compara a realidade com os cenários quase apocalípticos pensados pelos escritores, dê para perceber que a coisa podia ser muito pior (os infectados poderiam virar zumbis, por exemplo…). Ou porque acompanhar a superação dos personagens nos inspire a seguir o mesmo caminho.


Assim é que eu não poderia começar essa lista por nenhum outro título que não fosse O Livro do Juízo Final, da Connie Willis. Num universo em que historiadores viajam no tempo para observar de perto a História acontecendo, temos não uma, mas duas epidemias, uma no passado e outra no presente. Apesar disso - ou mesmo do título - o livro tem também muito de humor e nonsense. Há cenas que te fazem gargalhar loucamente, e outras que te levam às lágrimas. O final é catártico, com contrastes que te fazem refletir bastante sobre o que significa uma sociedade civilizada; o que acontece numa comunidade que busca se unir em solidariedade contra outra que se fragmenta em busca de culpados. São mais de quinhentas páginas, tem bastante para ocupar seu tempo aqui.

Também da Willis, tem o conto A Letter from the Clearys, que, embora não seja uma história de pandemia, trata de isolamento e sobrevivência. Ainda no terreno dos contos, O Baile da Morte Vermelha (ou A Máscara da Morte Rubra e variantes, depende da tradução, mas ambas estão corretas), de Edgar Allan Poe, vai sob medida para tratar de governos irresponsáveis que acreditam estar a salvo da doença em seus castelos fechados (ou por, quem sabe, seu histórico de atleta). O Gaiman fez uma excelente releitura desse conto com a Morte dos Perpétuos, que pode ser lida na coletânea Morte: Edição Definitiva ou em Sandman: Noites sem Fim.

Aliás, é um excelente projeto de quarentena pegar toda a saga de Sandman. A jornada de Sonho dos Perpétuos merece ser chamada de clássico moderno, costurando mitologias e criando um arco de tragédia, redenção e renascimento simplesmente genial. São vários volumes, tem material para ocupar bastante do seu tempo aqui.

Outros dois romances que recomendo que tratam de pandemias e suas consequências são Minha Vida Fora dos Trilhos, de Clare Vanderpool e Estação Onze, da Emily St. John Mandel.

O primeiro é um Young Adult que traz recordações da gripe espanhola. É uma bela história sobre amizade e amadurecimento, mas também sobre intolerância e crueldade. E sim, temos o dono de uma mina que acha perfeitamente natural manter as coisas funcionando mesmo quando os trabalhadores começam a morrer. Parece familiar?

Estação Onze, por sua vez, trata do que vem depois e do papel da arte na reconstrução de uma sociedade. É um ponto de vista diferente para a temática, mas feito de forma muito sensível, muito inteligente. Não é um livro fácil, a narrativa é fragmentada, com vários personagens se revezando para contar sua história, mas vale à pena. E tem também montes de Shakespeare nas montagens da trupe teatral “Sinfonia Itinerante”, que é outro autor para ler na sua quarentena.

No período de vida do bardo, Londres passou por várias surtos de peste bubônica; a famosa Peste Negra. Em 1606, com teatros fechados, Shakespeare escreveu Macbeth, Antonio e Cleópatra e Rei Lear - essa última uma peça recheada de referências à peste. Para quem não estiver interessado em mais tragédia, o bardo tem sempre alguma outra opção, entre comédias e peças históricas, curtinhas, mas que se prestam a serem lidas em voz alta: por que não fazer uma montagem amadora de Muito Barulho por Nada (só com os diálogos de Beatrice e Benedict) ou treinar a oratória com o discurso de São Crispino em Henrique V? Opções não faltam, para todos os gostos e muitas das peças têm adaptações cinematográficas. Se não quiser ler, pode assistir o filme.

Falando em leitura em voz alta, minha releitura desses dias foi A Princesa Prometida; terminei no início da semana. Já tinha lido esse livro há tempos, numa edição do Círculo do Livro que tinha até outro título (O Noivo da Princesa), mas essa reedição da Intrínseca não apenas é linda como vem com vários extras. Esse é um romance delicioso de fantasia, capa e espada, muito humor e metanarrativa. O autor-narrador afirma que a versão que o leitor tem em mãos é edição da obra de outro famoso escritor e que todos os acontecimentos ali narrados são inteiramente históricos. E ele descobriu A Princesa Prometida pelo pai, que leu o livro enquanto ele, criança, se recuperava de uma pneumonia. A leitura de convalescência foi o que me fez decidir colocá-lo na lista, mas isso é um detalhe pequeno na maravilha que é se perder nessa história. E sim, tem o filme, que também é excelente.


Tenho só mais três livros para colocar na lista: Robinson Crusoé de Daniel Defoe, Ardil-22 de Joseph Heller e Cama de Gato, do Kurt Vonnegut.

Crusoé me parece óbvio: ele é o romance por excelência dos náufragos e isolados. Li esse livro pela primeira vez quando tinha onze, doze anos e ele deixou uma marca indelével na minha imaginação. Já li muitas críticas ao espírito colonialista do livro e imagino que se fizer uma releitura dele agora, teria ressalvas a fazer. Mas não posso negar que exista algo inspirador no narrador, que consegue sobreviver isolado por vinte e oito anos, boa parte disso dependendo apenas de seus conhecimentos e esforço. Defoe também escreveu Um Diário do Ano da Peste, uma reportagem sobre a peste de 1665, uma das muitas ressurgências da epidemia.

Cama de Gato é uma narrativa delirante que, como muitos livros de Vonnegut, trata da insanidade da guerra. É engraçado por apresentar situações absurdas, mas incômodo por desmascarar a falta de empatia e arrogância de pessoas que estão no poder e preferem a destruição à perda de sua autoridade. Vonnegut, aliás, é minha leitura atual: estou bem no começo de As Sereias de Titã.

Ardil-22 é também um livro que te faz chorar de rir e incomoda como todos os elefantes da cantiga infantil. Da mesma forma que Vonnegut, Heller usa o humor nonsense para criticar a guerra. O paradoxo apresentado no ardil 22 é de que um soldado pode pedir para sair do exército se alegar que o combate afeta sua saúde mental; mas, no momento em que ele faz esse pedido fica provado que ele está perfeitamente são e pode continuar combatendo. Em suma, perde se ficar e perde também se quiser sair. Isso é algo que parece ecoar na nossa situação atual, nas escolhas que estamos sendo forçados a fazer: ficar em casa para não se contaminar e ficar sem sustento, ou sair para trabalhar porque precisa e, assim, contaminar-se.

Há vários livros que não estão nessa lista mas bem poderiam entrar: O Decamerão de Boccacio; A Peste de Albert Camus; Ensaio sobre a Cegueira, de José Saramago, O Amor em Tempos do Cólera, de Gabriel García Márquez… mas como são livros que não li ainda, não tenho como escrever recomendações sobre eles. Enfim, fica a lembrança.

Para terminar por hoje, me despeço com um poema Kitty O’Meara, em livre tradução minha (desculpem qualquer coisa), inspirado na pandemia, mas com um toque de esperança que bem estamos precisando.

"E as pessoas ficaram em casa. E leram livros, e ouviram, e descansaram, e se exercitaram, e fizeram arte, e jogaram jogos, e aprenderam novas maneiras de existir, e se apaziguaram. E ouviram mais atentamente. Alguns meditaram, alguns rezaram, alguns dançaram. Alguns conheceram suas sombras. E as pessoas começar a pensar diferente.

E as pessoas convalesceram. E, na ausência de pessoas vivendo de maneiras ignorantes, perigosas, irracionais, e impiedosas, a terra começou a se recuperar.

E quando o perigo passou, e as pessoas se uniram novamente, elas lamentaram suas perdas, e fizeram novas escolhas, e sonharam novas imagens, e criaram novas maneiras de viver e curar a terra completamente, como elas tinham sido curadas.”


A Coruja


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