29 de outubro de 2014
Para ler: Ardil-22
Só havia um ardil, e este era o Ardil-22, que dizia que a preocupação com a própria segurança, em face de perigos reais e imediatos, era o processo de uma mente racional. Orr estava doido e podia ter baixa. Tudo o que ele tinha a fazer era pedir. Mas, assim que pedisse, não mais estaria doido e teria que voar em novas missões. Orr seria doido se voasse em novas missões e são se não o fizesse. Mas se estivesse são, teria que voar novamente em missões de combate. Se voasse, então estaria doido e não teria que fazê-lo. Mas se ele não quisesse fazê-lo, então estaria são e teria que fazê-lo. Yossarian ficou profundamente impressionado com a absoluta simplicidade dessa cláusula do Ardil-22 e deixou escapar um assovio de admiração.
Esse livro já estava na minha lista de desejados fazia um tempo – em virtude do número de vezes em que o vi citado em outras listas falando de clássicos contemporâneos – quando o ganhei de presente da Tábata. Demorei um pouco para começar a ler, considerando o número de volumes à espera na estante, mas, enfim, estamos aqui...
Ardil-22 lembrou-me bastante Matadouro 5 do Kurt Vonnegut por dois motivos: primeiro, o tema, que em ambos os casos trata da Segunda Guerra Mundial e segundo, pela forma de contar a história, aonde o ridículo e o humor nonsense escondem um profundo desespero e criticam a insanidade da guerra.
É uma narrativa que continuamente nos provoca o riso – mas um riso amargo, às vezes até constrangido, de quem se vê caminhando para a tragédia.
As aventuras e desventuras do protagonista, John Yossarian, tentando conseguir uma licença para ser dispensado do combate e poder voltar para casa chegam, muitas vezes, ao ponto do surrealismo. A sua covardia é, contraditoriamente, o maior ponto de coragem da história. Cercado por outros personagens tão tragicômicos quanto ele, Yossarian é talvez o único homem são em meio à insanidade representada pela guerra.
Aliás, é irônico pensar que ele tenta a todo custo ser creditado como maluco, num ambiente tomado por loucos raivosos e mansos, generais que não conseguem entender simples pontos de estratégia e que, tomados pela vaidade, lançam seus soldados em missões suicidas ou estão mais preocupados em organizar paradas militares, médicos hipocondríacos e enviados paranóicos.
Rimos, sim, durante todo o livro, mas é um riso doloroso. Rimos porque rir é talvez só o que nos resta dentro de um mundo dominado pelo ardil-22: o paradoxo kafkaniano em que a burocracia inepta perpetua a existência caótica dos personagens, impedindo-os de sair do ciclo de batalhas e pesadelos – a guerra não tem lógica, apenas caos. Se você é capaz de dizer que a guerra o está deixando louco, então você é perfeitamente são.
O livro às vezes se torna um tanto repetitivo – mas essa repetição também faz parte da história, é necessária para compreender o que faz Yossarian e seus companheiros agirem da forma como agem.
Ardil-22 é um livro para ler e reler em anos vindouros. Para divertir – porque, de fato, os esquemas de Yossarian para manter-se vivo são desesperadamente cômicos – mas, sobretudo, porque nos obriga a pensar em nossas próprias prisões burocráticas e na loucura contemporânea que nos cerca.
A Coruja
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