14 de janeiro de 2019

Projeto Pratchett: Nation



“Somewhere out there, flying to him from the edge of the world, was tomorrow. He had no idea what shape it would be, but he was wary of it. They had food and fire, but that wasn’t enough. You had to find water and food and shelter and a weapon, people said. And they thought that was all you had to have, because they took for granted the most important thing. You had to have a place where you belonged.”

Mau está no mar, voltando para casa após superar os desafios da Ilha dos Meninos, quando a grande onda surge, deixando em seu caminho um rastro de destruição quase apocalíptico. Levada à Nação - a ilha da tribo de Mau - pela mesma onda, Ermintrude (ou Daphne, como ela prefere ser chamada) é a única sobrevivente do navio Sweet Judy, que a levava para encontrar o pai na sede das colônias britânicas na região. E, embora ainda não saiba, ela acaba de se tornar princesa herdeira do trono inglês, após a peste dizimar boa parte da família real do outro lado do mundo. E é assim que começa Nation, livro que Pratchett considerava o melhor que já escrevera: dois jovens sobreviventes numa ilha deserta, após um cataclisma que eles bem poderiam considerar o fim do mundo.

Nation não é parte da série que tornou Pratchett famoso. Em vez de Discworld, temos aqui um universo muito próximo do nosso, no período vitoriano, e a ação se divide entre personagens do Império Britânico e um pequeno arquipélago no Pacífico. Se eu fosse compará-lo com outras obras de sir PTerry (nota curiosa: ele foi condecorado cavaleiro logo depois desse livro ser publicado, por serviços prestados à literatura), o mais próximo seria Pequenos Deuses; com ecos de Tiffany Aching em Daphne. Esse paralelo, contudo, fica aquém do peso da história. É possível reconhecer o estilo de Pratchett, seus turnos de frase, e há momentos de leveza e humor, mas a tragédia de Mau, sua ira, desespero e busca por respostas perpassa todo o texto. Diferente dos livros da série Discworld, Nation não é uma paródia e nem se regozija em procurar as situações mais absurdas para apresentar ao leitor.

Porém, não se deixe enganar: se os dois protagonistas são personagens tocados pela Morte e movidos por um forte código de ética e dever, isso não significa que só haja lágrimas e ranger de dentes. Para além da inconfundível capacidade irônica do autor, também estão presentes o otimismo, a crença de que o ser humano é capaz de realizar coisas estupendas (e não apenas estúpidas), e de que conhecimento e tolerância são a chave para uma sociedade mais justa, temas que são intrínsecas à obra pratchettiana.


Quando Mau está prestes a caminhar nos passos de Locaha - o deus da morte de sua tribo -, encontrar Daphne e salvar a vida da ‘garota-fantasma’ lhe dão um novo senso de propósito. Nas palavras dele, “uma pessoa é nada. Duas pessoas são uma nação”. Daphne é a primeira, mas logo depois virão Ataba, o sacerdote; a Mulher sem Nome e seu bebê faminto; Pilu, Milo e Cahle… E mais de uma vez, a cada uma dessas chegadas, Mau tem de brigar com a morte e desafiar os deuses. Seu mantra se torna “does not happen”: não acontece. Ele se nega a perder qualquer um de seus companheiros, ainda que isso signifique eterna vigília até o ponto da exaustão.

Mau faz tudo isso numa espécie de estado de transição. De acordo com os costumes da tribo, ele deixou sua infância para trás, na Ilha dos Meninos. Até voltar para casa e passar pelos ritos finais para se tornar um Homem da Nação, ele é como um caranguejo eremita que deixou sua casca antiga e está vulnerável até encontrar uma concha nova. Trocando em miúdos, Mau é um ‘sem alma’, ou talvez um demônio ocupando sua mente frágil, na opinião de Ataba. Isso não o impede, porém, de ser o chefe da Nação e, a cada novo refugiado que desembarca na ilha, Mau reconstrói um pouco de sua alma.

Para Daphne, Mau é epítome do “bom selvagem”. Seu primeiro encontro oficial com ele é uma cena típica de histórias do ‘branco civilizado encontra índio para colonizar’. Mas, diferente de Robinson Crusoé, ela não demora a abandonar estereótipos, tampouco tenta evangelizar seu Sexta-Feira. Com uma natureza prática e questionadora, Daphne se adapta às necessidades da ilha, seja aprendendo a língua de Mau (e lhe ensinando a sua própria em troca), seja fazendo cerveja ou servindo de parteira, ainda que nada em sua educação de nobre vitoriana a tenha preparado para isso.

Ainda que não tenha sofrida uma perda tão completa quanto a de Mau, Daphne também foi tocada pela morte de forma devastadora. Quando a mãe morre no parto - e o irmão logo a segue -, o pai, que lhe era próximo e a encorajava a pensar por si mesma, levando-a a palestras científicas sobre todos os assuntos (incluindo Darwin!), perde-se no próprio luto. A avó dominadora se muda para a casa deles a fim de cuidar da neta e, onde antes Daphne encontrara espaço para crescer de forma livre, agora qualquer outro interesse que possa ser maléfico ao seu molde de como uma Dama deve se portar é podado. À mercê da avó, Daphne cresce isolada e entediada, até o pai - que se afogou no trabalho para esquecer - aceitar o posto de Governador-Geral das colônias britânicas no Pacífico. É a caminho de Porto Mercia, o posto dele, que ela está quando o tsunami atinge a região.

“Sewing, provided you weren’t doing it to make something useful, was one of the few things a girl “who was going to be a lady one day” was allowed to do, at least according to her grandmother.”

Bons modos e algum talento com a agulha são tudo o que a neta necessita, na opinião da avó. Ironicamente, serão duas habilidades de suma importância quanto Daphne encalhar com o Sweet Judy na Nação. Mas, antes que ela se dê conta disso, Daphne considerará sua educação prática bem inútil para a sobrevivência na ilha.

“You are very clever,” said the old man shyly. “I would like to eat your brains, one day.”

For some reason the books of etiquette that Daphne’s grandmother had forced on her didn’t quite deal with this. Of course, silly people would say to babies, “You’re so sweet I could gobble you all up!” but that sort of nonsense seemed less funny when it was said by a man in war paint who owned more than one skull. Daphne, cursed with good manners, settled for “It’s very kind of you to say so.”

Modos, empatia e disponibilidade para aprender ajudam-na a superar o primeiro obstáculo: a comunicação. Daphne e Mau ensinam um ao outro os rudimentos de suas linguagens, mas a fluência que terão um com outro virão não das palavras, mas do caráter; afinal, em seu reconhecimento de dever, ambos são muito parecidos. Aqui, Nation poderia, talvez, ter se transformado em mais um romance adolescente, mas Daphne não existe para se tornar interesse amoroso do herói. Como Mau, ela também passa por sua jornada de crescimento, e é tão movida pelo dever e pelas responsabilidades que um final feliz de contos de fadas seria obviamente impossível.

De novo, é um bocado irônico (bem, Pratchett sempre se superou nesse aspecto), mas Daphne, que passara os últimos anos sendo lembrada pela avó de qual era o lugar de uma dama e se sentindo péssima com isso, encontra seu espaço no Lugar das Mulheres, espaço barrado aos homens da tribo. Ali ela desvenda os mistérios da vida e da morte e escuta os ecos de gerações de mulheres, aprendendo que, para além do método científico, também é necessário ouvir a própria intuição.

“It was a sacred place, and not because of some god or other. It was just…sacred, because it existed, because pain and blood and joy and death had echoed in time and made it so.”

Se Mau a salva de se afogar no início da história, Daphne também o salva - de si mesmo, e mais de uma vez. Ela não é uma mocinha indefesa aguardando resgate. Também não é a salvadora branca de uma tribo de selvagens. Talvez a melhor forma de pensar em Daphne é como uma facilitadora de ideias - uma que ensina e aprende na mesma medida -, sua atitude sendo uma resposta à grande dualidade do livro: a questão da ciência versus a religião.

Quando Mau desembarca na Nação, após a passagem do tsunami, ele tem de lidar com a morte de, não apenas sua família, mas todo o seu povo. É uma perda que vai para além das pessoas: com elas desaparecem costumes, segredos, os rituais em que Mau ainda não fora iniciado; a identidade dele como um membro da tribo. Não é à toa que tal situação faça com que ele dissocie das escolhas que tem de fazer a seguir, enquanto recolhe cadáveres e os conduz para o mar, para serem levados pelas correntes profundas e se transformarem em golfinhos, conforme as crenças da ilha. À apatia segue-se a inação, e então, à ira. E a quem estaria destinada essa ira, se não aos deuses, que falharam em protegê-los?

“They may have plans for you,” said the priest cheerfully.

“Plans,” said Mau, his voice as cold as the dark current. “Plans? Yes, I see. Someone must be alive to bury the rest, was that it?” He took a step forward, his fists clenched.

“We cannot know the reasons for all that happ—” Ataba began, backing away.

“I saw their faces! I sent them into the dark water! I tied small stones to little bodies. The wave took everyone I love, and everything I am wants to know why!”

“Why did the wave spare you? Why did it spare me? Why did it spare that baby which will die soon enough? Why does it rain? How many stars are in the sky? We cannot know these things! Just be thankful that the gods spared your life!” shouted the old man.

“I will not! To thank them for my life means I thank them for the deaths. I want to find reasons. I want to understand the reasons! But I can’t because there are no reasons. Things happen or do not happen, and that is all there is!”

The roar of the Grandfathers’ anger in Mau’s head was so loud that he wondered why Ataba didn’t hear it.

YOU SCREAM OUT AGAINST THE GODS, BOY. YOU KNOW NOTHING. YOU WILL BRING DOWN THE WORLD. YOU WILL DESTROY THE NATION. ASK FORGIVENESS OF IMO.

“I will not! He gave this world to Locaha!” roared Mau. “Let him ask forgiveness of the dead. Let him ask forgiveness of me. But don’t tell me that I am supposed to thank the gods that I’m alive to remember that everyone else died.”

Se os deuses eram responsáveis pela Nação e falharam, então é necessário buscar outras alternativas. É isso que Daphne e o Sweet Judy - com sua abundância em ferramentas e materiais úteis - representam de início. A Nação se tornara uma sociedade passiva, dependente dos deuses e de velhas ideias; nesse momento então é necessário buscar novas ideias, ideais maiores, que respondam suas perguntas com algo mais que ‘porque sim’ ou ‘foi providência divina’.

“We never thought of pliers because we didn’t need them. Before you make something that is truly new, you first have to have a new thought. That’s the important thing. We didn’t need new things, so we didn’t think new thoughts.”

É interessante acompanhar a transformação de Mau, como no começo ele tenta não questionar, porque perguntar como as coisas funcionam, como elas são possíveis, ‘são perguntas de criança’, ‘tolas ou erradas, e se você pergunta o porquê muitas vezes, eram-lhe dadas tarefas para fazer e dito que era assim que o mundo funcionava’. Então, à medida que a narrativa avança, ele deixa de se esquivar de inquirir, objetar, debater. Ele exige respostas. E, uma vez que os deuses não lhe dão respostas, Mau se volta para a ciência.

“No! You don’t believe that—I can hear it in your voice! I don’t understand the nature of a bird, but I can watch it and listen to it and learn about it. Don’t you do this with the gods? Where are the rules? What did we do wrong? Tell me!”

“I don’t know! Don’t you think I haven’t asked them?” Tears started to roll down Ataba’s cheeks. “You think I am a man alone? I haven’t seen my daughter or her children since the wave. Do you hear what I say? It is not all about you! I envy your rage, demon boy. It fills you up! It feeds you, gives you strength. But the rest of us listen for the certainty, and there is nothing. Yet in our heads we know there must be…something, some reason, some pattern, some order, so we call upon the silent gods, because they are better than the darkness. That is it, boy. I have no answers for you.”

Não é que Mau deixe de acreditar que os deuses existem - é difícil não crer quando você tem conversas com o deus da morte e quando os fantasmas de seus ancestrais gritam de dentro de sua caverna -, mas sim que ele se recusa a crer que os deuses podem fazer alguma coisa por eles. O que ele aprende é que é necessário tomar conta de seu próprio destino, ser responsável por suas próprias escolhas, em vez de esperar sinais divinos.

“What do I really believe? The world exists, so perhaps Imo exists. But He is far away and does not care Locaha exists—that is certain. The wind blows, fire burns, and water flows for good and bad, right and wrong. Why do they want gods? We need people. That is what I believe. Without other people, we are nothing. And I believe I am more tired than I can remember.”

Numa certa medida, Nation me fez lembrar de Fronteiras do Universo, do Philip Pullman. Mas Pratchett não é um iconoclasta, que impõe o racionalismo de forma absoluta. Sim, ele nos leva a questionar dogmas ao longo de suas páginas, mas ele não nega a importância da religião, dos mitos e das histórias. E, como nossos protagonistas descobrirão (um pouco aos tropeços), as histórias têm seus grão de verdade. Está nas estrelas. E não, não são aliens, por mais que o pessoal do History Channel insista.

“It’s just a story.”

“No! It’s been turned into a story. The moons are real! So are the rings! Your ancestors saw them, and I wish I knew how. Then they made up these songs and mothers sing them to their children! That’s how the knowledge gets passed down, except that you didn’t know it was knowledge!"

Nos dias de hoje, ver um livro intitulado Nation nas prateleiras talvez leve muita gente a dar um passo para trás, pensando se tratar de alguma leitura ‘nacionalista’; palavra que parece ter virado um sinônimo de ‘fascismo’ e que, juntas, formam um imbróglio tão grande que eu teria de tratar do assunto em outro artigo. Nada poderia estar mais longe da verdade, é claro. O que se apresenta aqui é uma história que questiona o tempo todo o que faz uma nação. É o lugar? É o povo? Para os ancestrais que ribombam com cobranças e acusações na cabeça de Mau, a Nação é apenas o menino solitário que tem o sangue da tribo. Mas para o garoto, são todos aqueles que procuram a ilha como um porto seguro: ele receberá todos os refugiados e, com cada um deles que chega, aquele se torna um lugar ao qual pertencer. Se a Nação (e Mau) perdeu a alma com a morte da tribo, então cada novo residente devolve à Nação (e a Mau) um pouco de sua essência.

Por entre trocadilhos e absurdos, Pratchett costuma ser um autor bastante filosófico. Praticamente todos os seus livros convidam o leitor à reflexão, tanto em temas mais práticos quanto metafísicos. Nation não foge a essa regra e, como se passa numa realidade mais próxima da nossa, num mundo redondo em que podemos reconhecer no mapa os países citados, parece ser ainda mais afiado quando nos cutuca e nos põe a matutar. Não é um volume que nos dá risos fáceis, como boa parte da série Discworld. Mas é, sem dúvidas, um fantástico exemplo da genialidade e do talento de sir Terry para contar boas histórias.

Somos, afinal, fascinados por histórias de ilhas desertas e náufragos. De sobrevivência. Nation segue essa tradição, mas é mais que isso. É um livro que fala de companheirismo e sobre mudar o mundo. Sobre pensar fora dos padrões impostos. Sobre as dores do crescimento, sobre reconstruir, e sobre esperança. É uma narrativa que às vezes incomoda, que desafia pontos de vista, sem respostas fáceis, que se impõe, demanda ser ouvida. Não é uma história de finais felizes, não, mas é verdadeira como toda boa literatura - aquela que te faz acreditar de verdade em tudo que é contado - pode ser. É um livro poderoso, divertido e emocionante - como o melhor de Pratchett, sem dúvida.

Sim, e, antes que eu me esqueça, aqui vai um bônus: um pequeno vídeo em que o próprio Pratchett explica a sinopse do livro!


Nota:
(de 1 a 5, sendo: 1 – Não Gostei; 2 – Mais ou Menos; 3 – Gostei; 4 – Gostei muito; 5 – Excelente)

Ficha Bibliográfica

Título: Nation
Autor: Terry Pratchett
Editora: HarperCollins
Ano: 2008

Onde Comprar

Amazon


A Coruja


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3 comentários:

  1. Um excelente artigo, que me fez desejar ler o livro com todas as forças. Como você o adquiriu? Foi pelo Kindle? Abraço!

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    1. Na época eu usava o lev, da saraiva; substituí pelo kindle depois. Acho que, por conta da crise, a Saraiva não vende mais e-books. Ou, se voltou,não sei, lembro de ter havido uma confusão nesse sentido. Enfim, agora, só no kindle.

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