5 de outubro de 2018

Livros são Prejudiciais? Réplica de uma Leitora


O post de hoje começou como resposta a um comentário que recebi questionando se comédias românticas são um tipo de conto de fadas, arrematado com uma referência ao gênero como algo ‘prejudicial’. Minha réplica acabou ficando grande demais para postar lá; mas mesmo que assim não fosse, eu provavelmente usaria o que escrevi como gancho para um post sobre o assunto - porque, no cerne da questão, há uma ideia importante que precisa ser discutida.

Antes de começar, quero dizer para a pessoa que me fez a pergunta levar em consideração que uma resposta escrita é atonal e não tenho intenção de brigar, nem de depreciar sua opinião (se é que é sua opinião, já que o comentário diz 'ter visto em outro lugar'. Não sei qual foi sua intenção, se de crítica ou questionamento, ou mesmo apenas uma referência, mas, enfim, cá estamos). O disclaimer é necessário porque vivemos tempos difíceis, com um bocado de intolerância, e eu prefiro restringir a possibilidade de conflitos.

Primeiro de tudo, contos de fadas e comédias românticas são bem diferentes. Embora muitos dos contos de fadas tenham sido escritos e publicados por autores individuais, eles foram disseminados numa tradição oral, modificados de acordo com as necessidades das comunidades que os liam. Eles são anteriores ao conceito social de infância (crianças eram vistos como adultos em miniatura até meados do século XVIII e início do século XIX) e, em suas versões originais, são histórias bastante violentas e sem qualquer romance. Muitas vezes eram usadas como um alerta, como uma forma de ensinar os perigos que existiam no mundo. Ou então eram fonte de humor, com uma abundância de piadas escatológicas rasas. Escrevi há muito tempo um artigo falando dessas versões originais e a quem interessar a curiosidade, pode ler aqui e aqui. Aviso de logo que elas podem causar pesadelos e estômagos revirados.

Contos de fadas eram coisa de adultos até os vitorianos se apropriarem dessas histórias e transformá-las em bibelôs a serem colocados no quarto das crianças. Talvez se possa fazer uma relação entre comédias românticas e contos de fadas 'disneyficados', mas aí estamos falando das adaptações da Disney, não dos verdadeiros contos de fadas.

Eu já escrevi bastante sobre o assunto, inclusive foi tema de um dos especiais de aniversário aqui do blog. Toda minha pesquisa histórica sobre contos de fadas, bem como análise de significados e da evolução do conceito podem ser encontradas na série de ensaios chamada “Era uma Vez…” e lá está bem mais explicado. Então, em vez de me repetir e deixar esse texto monstruosamente enorme, deixo o link como referência a quem se interessar.

Tendo esclarecido essa parte... não entendo qual seria o problema das comédias românticas. Eu gostaria de ler o artigo ou ensaio ou post ou o que quer que seja que a pessoa que fez o comentário leu, o qual diz que comédias românticas são prejudiciais, porque, honestamente, não consegui pensar em como elas podem causar algum prejuízo. Prejuízo a quê exatamente? À saúde? À sociedade? Ao patriarcado? Ou qualquer que seja a palavra de moda do momento?

Cigarros são prejudiciais. Telhados de amianto são prejudiciais. Papéis de parede verdes feito com pigmentos de arsênico são prejudiciais. Livros, por si sozinhos, não causam prejuízo. A não ser que o prejuízo seja o escapismo, e aí você pode condenar toda a literatura do mundo como escapista. E como C. S. Lewis muito bem respondeu certa vez, ‘as únicas pessoas que odeiam o escapismo são os carcereiros’.

Talvez uma pessoa possa fazer um uso errado a partir da interpretação de uma história (os suicídios dos leitores de Os Sofrimentos do Jovem Werther me vêm à mente), mas, nesses casos, o problema já existia entre esses leitores (cronicamente deprimidos talvez?), e o livro foi uma desculpa conveniente, não a causa primeira. Acho inclusive que é uma desculpa forçada, porque li Werther e não verti sequer uma lágrima, nem senti cócegas nos pulsos para coçar com uma lâmina. O livro, afinal, não obrigou ninguém a se matar.

Algumas histórias de terror me causam pesadelos (embora eu goste dos mestres clássicos do horror…). Nesse contexto, eles são prejudiciais para mim, e tendo a evitá-las, mas isso é uma particularidade minha, que nada tem a ver com as obras. Elas não me perseguem e me forçam a lê-las.

Alguém talvez pudesse dizer que uma pessoa com uma dieta só de romances água com açúcar cria expectativas irreais sobre relacionamentos. Mas, de novo, acho forçado colocar a culpa no objeto “livro”. É meio como um Complexo de Dom Quixote: porque o nobre cavaleiro lia demais romances de cavalaria, acabou enlouquecendo e decidiu sair pelo mundo enfrentando moinhos de vento. Porque fulana lê comédias românticas demais, ela não consegue enxergar o valor do ‘cara legal’ que está do lado. Seria esse o problema?

Eu poderia ficar calada se tivessem dito que comédias românticas não têm mérito literário. Não concordo, mas é uma questão de opinião. Inclusive, já fiz uma defesa bem apaixonada sobre a necessidade eventual de folhetins e doses de açúcar direto na veia. Mas talvez seja isso mesmo. Talvez devêssemos reclamar com Shakespeare - que é, basicamente, o inventor da comédia romântica - ou com Austen - que levou o gênero do teatro para a literatura. Tudo o que veio depois, mesmo os enredos mais bizarros de chick-lit começaram com eles. Num longo encadeamento de ‘de quem é a culpa’, eu poderia dizer que a existência de Crepúsculo ou 50 Tons de Cinza é culpa da Emily Brontë.

Mas, bem, não estou aqui para julgar. Posso não gostar e até torcer o nariz, mas não julgo ninguém por aquilo que elas leem. Que autoridade tenho para isso? E, se isso serve como porta de entrada para outros autores, quiçá outros gêneros e voos literários, quem pode dizer que foi uma oportunidade perdida? Não estou interessada em ditar moda e costumes. Mas, voltemos ao assunto.

Comédias românticas têm em sua essência (como fica óbvio do nome) o riso e os relacionamentos amorosos - muitas vezes, os encontros e desencontros dos personagens, até um eventual final feliz. E sim, finais felizes também são parte importante das comédias românticas. Do contrário estaríamos tratando de tragicomédias. Ou humor negro, depende do enredo. Nesse contexto, repito, não vejo como comédias românticas possam ser ‘prejudiciais’.

Prejudicial é uma palavra de conotação muito forte. Significa algo que causa dano ou perda. É mais que um desperdício; é um malefício. Aplicado à literatura, é uma palavra que costuma prefaciar censura. Eu lido com palavras todo dia, o dia todo, não apenas como hobby, aqui no blog, mas também no meu trabalho. Talvez por isso, assusta-me ver o peso de uma palavra como 'prejudicial' ligado a algo que significa, repito, riso e romance.

Semana passada foi a semana dos livros banidos, uma campanha anual de conscientização promovida pela American Library Association e pela Anistia Internacional, que “celebra a liberdade de ler, chama a atenção para livros proibidos e desafiados e destaca pessoas perseguidas" [por serem autores ou defenderem a liberdade de pensamento e de ler o que quiserem ler]. Lá há uma lista dos livros mais banidos dos últimos anos e quando você lê as justificativas para que eles sejam retirados de escolas e bibliotecas públicas, o argumento que costuma aparecer é justamente sobre o prejuízo que eles podem causar.

Livros são considerados controversos e banidos porque discutem questões como suicídio (Os 13 Porquês), violência e racismo (O Sol é para Todos), pinguins gays que adotam ovos abandonados (And Tango Makes Three), bruxaria e, aparentemente, satanismo (a série Harry Potter), porque são anti-cristãos (não sei se é de rir ou chorar que a obra do devoto católico Tolkien seja banida sob esse argumento), porque promovem o Islã, porque trazem sexo, ou palavrões ou personagens fumando e, sério, no momento em que você começa a pensar em como a história de um livro pode ser usada, você provavelmente vai achar mil e uma justificativas para censurá-los. Vide Fahrenheit 451. Queime o primeiro livro e logo haverá necessidade de mais fogueiras. Afinal, papel é inflamável e queima que é uma beleza.

O problema, portanto, vai além das comédias românticas - que foi o gancho que usei para escrever esse post - e atinge algo muito mais amplo. Sempre vai existir alguém para dizer que algum gênero literário é danoso. Foi o argumento que Hitler usou para queimar livros e outras obras de arte cujos autores eram judeus. Aliás, não só judeus, mais um bocado de outros livros. Talvez houvesse algumas comédias românticas no meio também.

Esse provavelmente também foi o motivo que levou algum celerado a rasgar livros de direitos humanos na UnB - notícia com que amanheci o dia hoje.

Meu longo post pode parecer de princípio uma tempestade em copo d’água, uma reação desnecessária numa época em que tanto mais parece estar desabando sobre nossas cabeças... Mas, no final das contas, a destruição de livros, da História, a intolerância, a censura, a violência social, tudo isso anda de mãos dadas. Sendo o Coruja um blog fundamentalmente sobre literatura, e tendo sido através dele que recebi o comentário/pergunta, é justo usar o espaço para sair puxando todos esses fios que parecem soltos, mas se entrelaçam numa realidade muito maior. E, se não convenci ninguém, ao menos deixei explicada minha opinião.

Livros, por livros, não são prejudiciais a ninguém. A não ser que você os esteja usando como projéteis. Como o leitor interpreta são outros quinhentos. Mas isso já é discussão para outro dia...


A Coruja


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3 comentários:

  1. Vou tentar explicar melhor a trancos e barrancos.
    O que eu falei não foi uma crítica, eu não sou criativo assim, foi um complemento. Você disse:
    “...como fez falta ter um modelo como Matilda quando eu era criança...”
    “...mas entendo bem a importância de se reunir com pessoas que gostam de ler e falar dos livros que leram. Não é à toa que o clube do livro de que cuido tem quase uma década de debates, e segue firme e forte.”
    Possibilidades perante o real é o caso de ter a Matilde como um exemplo, uma possibilidade de agir no mundo. Criar um clube do livro abre essas possibilidades para outras pessoas.
    Em relação as comédias românticas você pode começar por aqui:
    “Contos de fadas eram coisa de adultos até os vitorianos se apropriarem dessas histórias e transformá-las em bibelôs a serem colocados no quarto das crianças. Talvez se possa fazer uma relação entre comédias românticas e contos de fadas 'disneyficados', mas aí estamos falando das adaptações da Disney, não dos verdadeiros contos de fadas.”
    Eu acho que tenho um problema de não gravar fontes e fico no diz que me disse. Mas quando li algo sobre contos de fadas prejudiciais era relacionado com uma pesquisa que mostrava a frustração de pessoas que adotavam como modelo de vida comédias românticas ‘disneyficadas’. Talvez prejudicial pode ser trocada por frustração. É mais ou menos isso. Consegui responder? Posso tentar de novo.
    :-D

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    1. Sim, entendi agora e concordo sobre a questão dos usos da literatura. Isso me lembra um pouco o que Alberto Manguel escreve em "Uma História da Leitura", sobre como inicialmente a leitura era algo social, no sentido de que leituras eram feitas em voz alta, compartilhadas; e só depois tornou-se uma ação introspectiva, solitária, de reflexão. São dois lados, mas dois lados que se complementam, porque você pode ler sozinho e refletir sobre o que leu, e depois trazer essa leitura para uma discussão, que não apenas vai enriquecer o entendimento com a apresentação de outros pontos de vista, como também resgatará esse papel de sociabilização.

      Também entendi melhor agora o segundo ponto, apresentado o contexto. Sim, frustração faz sentido; talvez a melhor palavra aliás seria 'iludido'. E aí, sim, eu concordo, há quem se deixa iludir pelas promessas das comédias românticas. Mas, nesses casos, não acho que a culpa sejam das histórias, mas é algo que faz parte da natureza ou criação do leitor. Se a pessoa é mais suscetível a se deixar levar por um mundo visto através de um filtro cor-de-rosa, se ela escolhe adotar como modelo de vida algo que se apresenta como ficção, é uma escolha dela. E é ela que irá atrás dos livros (ou filmes) que preenchem essa necessidade dela. Culpar as histórias, isso na minha opinião, é como culpar o mensageiro pela mensagem.

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