8 de outubro de 2018

All Hallow’s Read: Elfos, Bruxas, Reis e Rainhas em mais uma história de Discworld


"- (...) Mesmo um caçador, um bom caçador, pode sentir pela presa. Isso é o que faz com que seja um bom caçador. Elfos não são assim. São cruéis por diversão, e não entendem coisas como misericórdia. Não entendem que algo além deles próprios possa ter sentimentos. Eles riem muito, especialmente se pegarem um humano solitário, um anão ou um troll. Trolls podem ser feitos de rocha, Majestade, mas estou dizendo a você que um troll é seu irmão em comparação com os elfos. Na cabeça, quero dizer.

- Mas por que eu não sei de nada disso?

-
Glamour. Elfos são bonitos. Eles têm, - ela cuspiu a palavra - estilo. Beleza. Graça. Isso é o que importa. Se os gatos parecessem rãs nós perceberíamos os bastardinhos desagradáveis e cruéis que são. Estilo. Isso é o que as pessoas lembram. Elas se lembram do glamour. Todo o resto, toda a verdade vira... contos de fadas da carochinha."

Não é preciso ir muito longe para perceber que Lordes e Damas é uma paródia de Sonho de uma Noite de Verão (com algumas pitadas de A Megera Domada e até Henrique V). Está tudo lá afinal: amores trocados, casamentos reais, travessuras, elfos e encantamentos; mas temperado com alguns detalhes picantes pelo meio, um sabá de bruxas e, claro, o humor bastante afiado de Pratchett.

Embora seja uma continuação imediata de Quando as Bruxas Viajam, com Vovó Cera do Tempo (eu me acostumei com a tradução da Conrad e não consigo pensar nela de outra forma), Tia Ogg e Magrat retornando a Lancre de suas aventuras no exterior, não é realmente necessário ter lido o volume anterior para entender o que acontece aqui. Contudo, eles (lembrando que as bruxas já tinham aparecido em Estranhas Irmãs) adicionam detalhes saborosos à compreensão dos fatos, como a história de Verence ascendendo de sua posição como bobo da corte para rei, o desenvolvimento da relação bastante conturbada da tríade de bruxas protagonistas, algumas varinhas de condão e a verdade por trás do gato Greebo.

Em suma… As bruxas retornaram ao lar e o fazem bem a tempo de lidar com a próxima crise: a barreira entre mundos está mais fina e há criaturas interessadas em chegar ao universo do Disco. Convenientemente, Magrat, a mais nova e mais crédula das bruxas, foi pedida (ou talvez ordenada) em casamento pelo rei e, após mais uma discussão com a vovó, decide abandonar a profissão. E isso é conveniente porque os seres que estão tentando invadir Lancre são… elfos. E Magrat, tão ingênua e branda, não teria a espinha necessária para enfrentar essa realidade.

Então... quando pensamos em elfos hoje em dia, a primeira imagem que nos vem à mente é, muito provavelmente, Legolas surfando em objetos e animais ou pontes desabando, que, teoricamente, não teriam a aerodinâmica necessária à ação. Mas, bem, é o Legolas, então o que são as leis da física para ele?


Dobby também seria uma opção, mas Dobby é um elfo doméstico e devem ser guardadas as devidas proporções. E, antes de Tolkien, havia Flor-de-Ervilha, Teia-de-Aranha e Semente-de-Mostarda, do séquito de Titania, e Puck, claro, servo de Oberon - o elenco élfico de Sonho de uma Noite de Verão. É irônico pensar que Tolkien detestava a representação shakesperiana dessas figuras folclóricas, como pequenos e delicados bibelôs, infantis e usadas para fins cômicos, quando sua própria interpretação de sabedoria, imortalidade e incrível beleza - hoje muito mais difundida por conta dos filmes - também não se aproxima muito da tradição.

É justamente essa contradição que Pratchett utiliza muito bem em Lordes e Damas, trazendo os elfos do folclore medieval, criaturas mercuriais que tanto podem trazer sorte a uma casa (como os brownies) como roubar humanos, trocando bebês no berço por criaturas de sua corte; ou homens e mulheres adultos que de alguma forma prendem sua atenção, levando-os para dançar até a exaustão em seus salões subterrâneos (a balada de Tam Lin é um bom exemplo desse caso, e Susanna Clarke também aproveitou essa ideia em Jonathan Strange e Mr. Norrell).

Na história, há muitos anos os elfos não caminham pelo Disco, de tal forma que a memória de sua existência entrou para o terreno da fantasia e superstição. As pessoas se lembram de colocar um pires de leite do lado de fora da janela e uma ferradura sobre suas portas, mas não sabem por qual motivo o fazem. Elas sabem que elfos são belos e elegantes, que eles têm estilo - mas se esquecem que eles são predadores. Pior que isso até: os elfos são como parasitas cujo poder vem da crença, das histórias e tradições, da imaginação das pessoas. São conquistadores cruéis, criaturas amorais feitas de instinto e desejo.

Elfos são admiráveis. Eles despertam admiração.
Elfos são maravilhosos. Eles provocam maravilhamento.
Elfos são fantásticos. Eles criam fantasias.
Elfos são glamourosos. Eles projetam
glamour.
Elfos são encantadores. Eles tecem encantamento.
Elfos são terríveis. Eles geram terror.
O caso das palavras é que os significados podem se torcer como uma cobra e, se você quiser encontrar cobras, procure-as por trás das palavras que mudaram o seu significado.
Ninguém nunca disse elfos são
bons.
Elfos são
maus.

Não me parece coincidência que as bruxas sejam seus ‘inimigos naturais’, vez que ambos habitam o mesmo espaço do imaginário popular. As bruxas do Discworld entendem o poder da 'cabeçologia', algo que vai para além do efeito placebo de convencer uma pessoa doente de que uma poção mágica vai curá-la: é a lei da causalidade narrativa, a concepção de que estamos todos dentro de uma história e somos personagens com seus devidos papéis. É por isso que palavras e contos de fadas têm capacidade de aumentar ou diminuir a influência da Rainha dos Elfos quando ela invade Lancre; é daí que vem a magia da armadura que Magrat - desafiando o que outros acreditavam dela - veste para salvar seu noivo real.

Claro que Pratchett subverte de muitas maneiras os limites que aparentemente impõe a si mesmo. A lei da causalidade narrativa é, para o Disco, algo como a nossa lei da gravidade - mas é bom lembrar que em Discworld, mesmo a lei da gravidade não é algo absoluto.

Sendo criaturas da tradição, dos contos de fadas, das superstições, fácil também entender o motivo de o ferro ser a principal arma contra os elfos: junto com o fogo, o ferro é um dos principais agentes da civilização. A sociedade nasce com a domesticação do fogo e se divide em diferentes eras: a Idade da Pedra, seguida pelos metais: Cobre, Bronze e, claro, Ferro. Cada avanço desses representa uma evolução tecnológica - mais que isso, é a superação do medo das coisas que vagam na escuridão. Um ponto a mais para a razão… e um ponto a menos para o sistema de crenças que alimenta os elfos.

Não é à toa que é através de uma peça de teatro, da dança, do repetir de seus nomes com suspiros de encantamento, que os elfos são capazes de entrar no Disco. Deslizando pelas brechas do faz-de-conta, eles se fazem presentes quando são chamados.

Nesse sentido, Lordes e Damas brinca com versões da realidade. Mas, se em Sonho de uma Noite de Verão, os personagem têm dificuldade em aceitar os acontecimentos daquela noite e acham mais fácil interpretá-los como um sonho confuso e razoavelmente agradável, Pratchett nos apresenta um pesadelo. Mais que diferentes interpretações dos acontecimentos, o que temos são mundos conectados, memórias que escorrem de um universo ao outro, criaturas alienígenas (afinal, os elfos não são do Disco), unicórnios enlouquecidos e a promessa de uma caçada selvagem - uma caçada na qual os humanos serão as presas.


Mas as diferentes versões da história apresentadas pelos personagens não decorrem apenas da potencial invasão de Lancre: ela está presente também na forma como eles se lembram de fatos passados e de relacionamentos.

Em Sonho de uma Noite de Verão, Shakespeare nos fala da natureza do amor romântico, que nos faz irracionais, tolos, melodramáticos. A peça, em si, é um pouco como a quadrilha de Drummond: Helena que amava Demétrio, que amava Hérmia, que amava Lisandro, que amava Hérmia de volta mas não era o favorito do pai da moça. Aí aparece Puck para colocar lenha na fogueira e poções do amor nos olhos dos amantes. Lordes e Damas não tem tantos amores trocados… mas há questões de relacionamentos ligadas a cada uma das bruxas protagonistas.

Vovó Cera do Tempo, tia Ogg e Magrat formam uma tríade clássica que parece diretamente saída de um estudo de arquétipos: Magrat, a Donzela; Tia Ogg, a mãe e a Vovó, a Anciã. As três, contudo, saem dos limites tradicionalmente impostos a cada um desses ‘ícones’.

Magrat está de casamento marcado com Verence, prestes a deixar seu papel de Donzela para assumir a personagem de rainha - e, por boa parte do enredo, Magrat se digladia com a ideia de estar, justamente, vestindo uma personagem. Acostumada a uma existência como bruxa, suas pesquisas, seu jardim de ervas, seu trabalho em Lancre, ela tenta se conformar com uma existência de brocados, tapeçarias e a feitura de bebês. Seu romance com Verence, que começou com Estranhas Irmãs, nunca chegou a grandes arroubos românticos, algo de que ela se ressente em alguns momentos, afinal, Magrat é uma sonhadora. O pragmatismo, a velocidade com que as coisas estão acontecendo - até a falta de um pedido de casamento claro - espantam-na.

Contudo, não é difícil enxergar o afeto entre Magrat e Verence nas (poucas) cenas em que estão estão juntos; e o quão compatíveis ambos realmente são (especialmente em sua crença de que o mundo pode se fazer de forma correta se seguirem as instruções do livro). O grande problema dos dois são os terceiros a se meter no caminho - em específico, vovó Cera do Tempo forçando os acontecimentos a andarem. Afinal, ela é uma bruxa, e decidir o que é melhor para os outros parece fazer parte do pacote.


Tia Ogg é menos complicada, no sentido de ela não ter neuras sobre poder, posição social ou sexo. Tia Ogg simplesmente é, e aproveita todas as oportunidades, vivendo a vida ao máximo. O fato de ser fisicamente parecida com um daqueles ídolos antigos de fertilidade também não é uma coincidência. Tia Ogg é uma mãe orgulhosa de uma prole numerosa; uma avó amorosa, além de uma sogra aterrorizante… e também está aberta à possibilidade de ser seduzida pelo anão Casanunda, ‘o segundo melhor amante do mundo’.

Mais complexa é a figura de Vovó Cera do Tempo. Nesse livro, temos alguns vislumbres de seu passado e aquilo que descobrimos parece bem diferente da imagem que ela projeta no presente. Jovem, Esme foi algo como um espírito livre, que se deixava perseguir nas florestas por rapazes como… Mustrum Ridcully - que cresceria para se tornar o Reitor da Universidade Invisível. Ela desafiava o status quo, enfrentando as bruxas mais velhas para fazer valer sua opinião, confrontando até a própria Rainha dos Elfos. Em certos aspectos, ela não estava assim tão longe de Magrat, ou mesmo Diamanda.

A Vovó, porém, parece encarar tal passado como uma tolice; que o melhor para ela foi, de fato, ter corrido mais rápido e não se deixado capturar, ter ignorado as cartas que um jovem em Ankh-Morpork lhe enviava até ele se cansar de não receber respostas - e, com isso, a possibilidade de uma vida completamente diferente, uma vida que ela vislumbra como um “vazamento” nas “pernas” do multiverso.

É no encontro de Esme e Mustrum, aliás, que existem ecos de A Megera Domada.

Se influenciado pela chegada dos elfos ou pela causalidade narrativa, fato é que Mustrum não esqueceu de Esme. Mas, se bruxas podem casar e ter filhos (embora isso não parece de interesse da Vovó), o mesmo não se pode dizer dos magos, que costumam ser celibatários, preenchendo suas existências com excelentes banquetes e eventuais ocasiões de possível destruição do mundo.

Essas análises de relacionamentos desembocam, claro, em outro tema que permeia não apenas esse livro, mas praticamente todos os volumes em que as bruxas aparecem, em maior ou menor grau: diferenças de gênero.

Pratchett já falara um pouco do assunto no ensaio Porque Gandalf Nunca Casou. Suas bruxas são uma contínua resposta às questões levantadas nesse texto. A magia delas pode parecer à primeira vista muito pequena, um tanto falsa até, do tipo que é boa apenas ‘para causar verrugas’. Não há os círculos taumatúrgicos, os números e símbolos místicos, ou pentagramas dos magos. Nada de explosões e faíscas brilhantes na ponta dos dedos ou de cajados.

No entanto, enquanto os magos estão sempre prestes a puxar o fio do tecido do universo para ver tudo degringolar, as bruxas agem como guardiãs, protetoras, guias. Elas enxergam os sinais de perigo. Presidem nascimentos e auxiliam na passagem da morte, cuidam das viúvas, dos doentes, das crianças. São líderes de suas comunidades e mesmo os reis se curvam a seus conselhos. Elas têm poder ao seu alcance, mas sabem que existe um preço por usá-lo. E, mais que qualquer outro ponto, elas compreendem seu papel nas histórias.

As pessoas respeitam e temem as bruxas em igual grau. O nome da Vovó Cera do Tempo é o suficiente para fazer muito homem adulto tremer nas botas. Mas todos sabem também que, quando precisarem, elas estarão lá. Elas enfrentarão a escuridão por eles. As bruxas são o coração da terra em que vivem e não é à toa que, quando mais precisam, é a própria terra que lhes empresta poder.

Vovó Cera do Tempo, Tia Ogg, Magrat: todas elas são aquilo que são e elas se recusam a ser qualquer outras coisa (ainda que algumas delas possam ter dúvidas em alguns momentos). Elas não foram Escolhidas: foram elas que fizeram a escolha. Não estão preocupadas em serem heroínas, mas em fazer o precisa ser feito, seja cuidar das unhas de um idoso que não tem mais ninguém para lhe fazer companhia, seja salvando o mundo. De certa maneira, essa é a essência de Lordes e Damas, porque onde os elfos se escondem por trás do glamour, da imagem mais sedutora possível, as bruxas são, descaradamente, elas mesmas e ai de quem ache ruim.

“Era preciso pagar, bem ou mal. Havia mais de um tipo de obrigação. Isso é o que as pessoas realmente nunca entendiam, dizia a si mesma enquanto andava de volta para a cozinha. Magrat não tinha entendido isso, nem aquela nova garota. As coisas tinham que se equilibrar. Você não podia se propor a ser uma bruxa boa ou uma bruxa má. Isso nunca funcionava por muito tempo. Tudo o que você podia tentar era ser uma bruxa, o mais forte que conseguisse.”

Lordes e Damas é, de certa forma, uma conclusão à trilogia iniciada com Estranhas Irmãs, seguida por Quando as Bruxas Viajam. Embora exista um livro anterior e outro posterior a esses três volumes, eles não têm o mesmo núcleo de personagens, nem o mesmo nível de intertextualidade. Há uma costura com a série da Tiffany Aching, mas o principal da história das bruxas está aqui; a fundamentação para o que representam as bruxas no universo do Disco está toda neles.

No já citado ensaio Porque Gandalf Nunca Casou, Pratchett observa que Merlin é o arquétipo maior do mago, mas que não existe qualquer equivalente feminino. Ao contrário do grande conselheiro do rei Arthur, as mulheres com acesso a magia costumam ser “o grupo mais malévolo de anciãs que você pode imaginar”. Com Vovó Cera do Tempo e as outras bruxas que desfilam por suas páginas - Tia Ogg, Magrat, Tiffany, Agnes e tantas outras -, Pratchett reverte essa lacuna e subverte todos os estereótipos. E, de quebra, nos dá algumas das melhores heroínas e modelos que poderíamos ter.

Nota:
(de 1 a 5, sendo: 1 – Não Gostei; 2 – Mais ou Menos; 3 – Gostei; 4 – Gostei muito; 5 – Excelente)

Ficha Bibliográfica

Título: Lordes e Damas
Autor: Terry Pratchett
Tradução: Alexandre Mandarino
Editora: Bertrand
Ano: 2015

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Um comentário:

  1. Esse livro é ótimo. Adoro a evolução das bruxas ao longo dos livros onde elas aparecem.
    O que não gostei foram das mudanças na tradução da Bertrand. A tradutora da Conrad foi muito mais ousada e, talvez por isso, mais condizente com o tom que o Pratchett adota nos livros dele. Mas isso é questão de gosto pessoal, não atrapalha em nada o divertimento de ler.

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