31 de janeiro de 2022
Conversas Sobre o Tempo #10 - Aquele em que fazemos muito barulho por alguma coisa
No conto Ado, da Connie Willis, uma professora de literatura tenta encontrar uma das peças de Shakespeare para ensinar em sua classe. Várias injunções protocoladas por organizações diversas - como a Real Sociedade para a Restauração do Direito Divino dos Reis, a Aliança das Mulheres Furiosas, a Liga Anti-Difamação e os Agentes Funerários Internacionais - proíbem o debate de palavras, falas ou peças inteiras, extirpando tudo o que possa haver de minimamente ofensivo nas histórias até que sobre pouco mais que algumas frases soltas em Hamlet.
Já tinha lido esse conto uns anos atrás e por acaso o reli agora em janeiro, quando peguei a antologia dela, Impossible Things. Ele ainda estava na minha cabeça alguns dias depois, quando vi a notícia da proibição de Maus, do Art Spiegelman por um conselho escolar no Tennessee, uma decisão unânime que teve como justificativa a existência de uma cena de nudez e alguns palavrões na história.
Maus é uma obra ímpar, única história em quadrinhos até hoje a receber o prêmio Pulitzer - um das mais importantes premiações literárias do mundo. Spiegelman apresenta aqui o relato do pai, um sobrevivente judeu antes, durante e depois do pesadelo do Holocausto. Ponto interessante é que ele identifica os diferentes povos com animais, sendo os judeus ratos e os alemães, gatos, o que significa que uma das razões da censura foram ratinhos nus.
Parece piada, não é?
Imagino que substituam Maus por algo insípido como O Menino do Pijama Listrado. Li esse livro uns dez anos atrás para um debate de um clube do livro e lembro de como me senti desconfortável com o esforço de inocentar o protagonista e o sentimentalismo deliberado para nos fazer chorar - embora eu não tivesse então a visão crítica necessária para colocar em palavras o que me incomodava tanto na fábula. Acompanhando a polêmica da obra de Spiegelman, deparei-me com um fio no twitter que enumera todos os pontos necessários ao assunto.
Coincidentemente ou não, a decisão foi revelada no dia 27 de janeiro, Dia Internacional em Memória das Vítimas do Holocausto, data da liberação do campo de Auschwitz-Birkenau por tropas soviéticas, em 1945. Difícil não enxergar o escárnio. E é difícil de engolir.
O conto da Willis foi publicado originalmente em 1988 na Isaac Asimov's Science Fiction Magazine. Era um comentário bem humorado sobre a busca pelo politicamente correto, com uma situação tão absurda que arrancava risadas - mas que parece bem menos absurdo à luz do que tem acontecido. Não consegui rir nessa releitura.
A censura de Maus não é um ponto fora da curva. Assino uma newsletter da Book Riot que fala especificamente de assuntos bibliotecários e praticamente todo dia tem uma nota sobre tentativas de retirar livros diversos de bibliotecas públicas e escolares, ou simplesmente extirpar de vez o assunto em currículos de uma maneira geral. A última que acompanhei foi de um prefeito no Mississippi está retendo verbas superiores a cem mil dólares devidas ao sistema de bibliotecas da cidade até que sejam removidos todos os materiais homossexuais das estantes.
Lembrei, claro, de And Tango Makes Three, um livrinho que quase sempre aparece na lista de mais censurados do ano nos Estados Unidos - um volume de trinta páginas, com mais ilustração que texto, e que trata da história real de dois pinguins machos do zoológico de Nova York que adotam um ovo abandonado (situação que já se repetiu em zoológicos em Berlim e Sidney). And Tango Makes Three não tem ilustrações anatomicamente fiéis nem nada inerentemente sexual - nem mesmo um beijo esquimó disfarçado -, sendo um conto muito simples sobre família, acolhimento e tolerância. E chegou ao topo dos mais censurados por quase uma década.
Fale sobre prioridades…
Não sei exatamente em que pé estão as coisas aqui no Brasil - nunca vi nenhuma lista de livros censurados nas bibliotecas brasileiras, questionados por associações de pais ou coisa parecida. Não sei o quanto os pais conseguem de fato interferir nesse aspecto por aqui, ou se alguém está preocupado com o fato de lermos Jorge Amado e Capitães da Areia, por exemplo. Os americanos provavelmente ficariam de cabelo em pé com ele.
Claro, tivemos aquela cena lamentável na Bienal do Rio em 2019, quando o prefeito mandou recolher livros com temática LGBTQ+ após se horrorizar com um quadrinho que mostrava um beijo entre dois garotos. E não vamos esquecer que uma das bandeiras de campanha do atual presidente em 2018 foi contra um mítico kit gay distribuído nas escolas. Mas, bem, há outras formas de censura.
Num país em que o Ministro da Economia afirma que só rico lê e por isso devemos acabar com as isenções para o mercado editorial, fica óbvio como a coisa acontece: em vez de tirar os livros ofensivos das prateleiras, ataque o mal pela raiz, para que investir em leitores, não é mesmo? Temos que criar consumidores, e não cidadãos capazes de refletir e interpretar o discurso de quem está disputando o poder. E assim, mantemos o status quo. Ou, melhor ainda, reescrevemos a História, desfazemo-nos daquilo que nos incomoda, que nos acusa, que nos pesa na consciência.
E assim chegamos àquela realidade aparentemente disparatada do conto da Willis, sem barulho, sem memória, sem História, sem nada.
Ou então, fazemos barulho. Marcamos o passo. Denunciamos a imbecilidade dessas ações de censura. Por que o mundo, como escreveu a poetisa austríaca Ilse Aichinger, “é feito daquilo que exige ser observado”. De uma memória coletiva que a literatura nos ajuda a preservar. Façamos barulho, pois. E não nos esqueçamos.
No Escaninho. Ainda no tema de hoje… é sempre uma boa ideia resgatar esse artigo do Gaiman sobre a importância das bibliotecas e do acesso a leitura. Na Tor. com tem um artigo sobre o uso de um personagem pratchettiano como nome de um novo index para demonstrar o impacto da inflação real sobre a população mais pobre (pessoal do Discworld Brasil traduziu o artigo também).
E no Catarse está rolando uma nova campanha da editora Wish para a coleção dos Contos de Fadas, dessa vez do Leste Asiático. Tenho os volumes anteriores, que apoiei nas campanhas de financiamento coletivo e sou apaixonada por todo o cuidado com os detalhes - da tradução ao projeto gráfico - desses livros.
Previsão do Tempo para Hoje. Como a Willis serviu de gancho a crônica de hoje, vou lembrar uma citação não escrita por ela, mas usada por ela como epígrafe em O Livro do Juízo Final, retirada dos Anais da Irlanda, de John Clyn. Sei que já usei ela ad nauseam por aqui, mas parece-me sob medida para a tempestade em torno de Maus:
"E, para que coisas que devem ser lembradas não sucumbam ao tempo nem se desvaneçam da memória dos que virão depois de nós, eu, vendo tantos males e vendo o mundo, por assim dizer, sob a garra do Maligno, e estando eu próprio como se já entre os mortos, eu, esperando pela morte, deliberei colocar por escrito todas as coisas que testemunhei."
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