30 de março de 2023

Livros para ler no Outono


Enfim terminou o verão e chegou o outono, com toda a sua graça - ou talvez não tanta graça, porque, por aqui, a mudança da estação veio com tempestade, raios e trovões, após vários dias ameaçadoramente nublados. Hoje, felizmente, o sol saiu e uma brisa gostosa sopra da varanda. Olhando pela janela, para o mar de folhagem lá embaixo, fiquei pensando sobre folhas secas e páginas viradas e, uma piscadela depois, estava me sentando para escrever.

Já é tradicional cá no Coruja as recomendações literárias por estação. Normalmente, quebro um pouco a cabeça pensando em cada escolha para o tema e, talvez por isso mesmo, não estava planejando me liberar do sabático para tratar do assunto. Mas, como disse anteriormente, às vezes a gente se derrama na página sem sequer notar e foi isso que aconteceu hoje.

De toda forma, farei o Livros para ler no Outono um tico diferente do padrão, porque são livros que não têm resenha prévia no blog, e todos os três, li bem recente.


Começo por Bambi, a história de uma vida na floresta, de Felix Salten. Estava com ele há bastante tempo na fila, meio esquecido no kindle, até passar os olhos pelas efemérides literárias desse ano e descobrir que o livro completava centenário de publicação em 2023. Tal aniversário era uma desculpa perfeita para afinal puxá-lo às prioridades.

A primeira coisa que tenho a dizer sobre Bambi é que não se trata de uma leitura fácil. É uma história de perdas: da inocência, da juventude, da família. É uma fábula, com animais fofinhos falantes; mas é também uma história sobre a natureza em sua forma mais crua, com toda a violência que se espera da cadeia alimentar. Ao mesmo tempo, é um conto sobre o Homem contra o Ambiente, algo que tanto pende para o horror assassino quanto para a angústia existencial.

Bambi começa relativamente protegido pela mãe, que lhe ensina as primeiras lições; aos poucos é deixado sozinho - e o tema da solidão é um dos pontos centrais na jornada de crescimento do personagem -, e tem de começar a confiar no próprio instinto; conhece a morte que chega no cheiro do suor d’Ele, no som de trovão de uma arma que não é capaz de compreender, no furor de uma caçada que tem a floresta inteira por presa. Por um breve período, descobre o orgulho de sua força e juventude, e a doçura do amor. Mas é apenas um momento de deleite - a necessidade de continuar a espécie -, antes que a dor e a solidão retornem, de mãos dadas com a velhice.

Não tenho certeza se, por mim sozinha, classificaria Bambi como uma história infantil. Ou acharia uma ideia particularmente genial fazer uma animação que traumatizasse uma inteira geração de crianças - especialmente se tiver a mesma quantidade de vísceras e sangue do livro. Mas, se há algo de brutal no desenvolver do enredo, há também valiosas lições e reflexões a serem tiradas da leitura - especialmente quando consideramos a destruição que o ser humano vem infligindo ao meio ambiente.

[Aliás, depois de fazer muitos esforços de memória, cheguei à conclusão de que não assisti a adaptação da Disney pois não tenho o correspondente trauma à situação: a morte de Mufasa ainda hoje me assombra; os acontecimentos de Bambi certamente teria o mesmo efeito.]

Para um livro centenário, Bambi tem muito a dizer de atual. É um conto melancólico, mas poderoso, que merece seu status como clássico. Parodiando Roberto Carlos, se chorei e se sofri (e tive o coração arrancado do peito), o importante é que emoções eu vivi.


Seguindo na verve melancólica, a segunda recomendação de hoje vai para All the Living and the Dead: From Embalmers to Executioners, an Exploration of the People Who Have Made Death Their Life's Work. Esse título da Hayley Campbell diz tudo o que você precisa saber sobre o livro: uma amálgama de investigação jornalística e memória pessoal numa série de capítulos que tratam da morte e dos profissionais que lidam com ela no dia a dia.

Morte se tornou um assunto tabu na cultura ocidental no último século, com um afastamento cada vez maior dos enlutados com o falecido, mediada por uma indústria funerária que, por vezes, parece saída de um dos contos de Bradbury (mais sobre o assunto alguns parágrafos abaixo). O que é decididamente irônico, a se considerar que a morte é a única coisa da qual podemos ter certeza na vida.

All the Living and the Dead explora tudo aquilo que é adjacente ao luto, à face mais óbvia e lembrada da morte - o funeral, o enterro, a despedida -, procurando os trabalhadores que, muitas vezes, são invisíveis em meio a nossa dor. Diretores funerários, embalsamadores, responsáveis pelos cadáveres em departamentos de anatomia, técnicos peritos em autópsias, especialistas em acidentes e desastres, detetives da área de homicídios, agentes penitenciários responsáveis pela execução em casos de pena de morte, limpadores de cenas de cenas de crime, cremadores, coveiros, até mesmo uma parteira especialista em fazer partos de bebês natimortos ou sem viabilidade extra-uterina compartilham suas histórias e experiências.

De princípio, a ideia do livro pode parecer um tanto mórbida - e posso apostar que o cidadão médio pensa que alguém que escolhe uma carreira dessas, no mínimo, tem alguns traços de sociopatia. Mas, na quase absoluta maioria dos casos, é exatamente o contrário: o que se encontra são pessoas com profunda empatia, com um anseio de acolher e servir o próximo.

Isso é interessante porque, a princípio, a própria autora parece ter escolhido o tema do livro por uma curiosidade mórbida fria - confesso que fiz algumas caretas ao longo do primeiro capítulo e das descrições de Campbell sobre sua infância: animais mortos no caminho da escola, fotografias das vítimas de Jack, o estripador (ela é filha de Eddie Campbell, que à época estava trabalhando com Alan Moore em Do Inferno) e uma fascinação febril com o caixão fechado de uma colega de turma. Há espaço para humor quando se fala de morte (digo isso depois de ter lido o que podia da Caitlin Doughty), mas não para insensibilidade.

Lá pelas tantas, contudo, cheguei à conclusão que essa frieza tinha a ver com o fato de que Campbell começara tentando explicar de forma lógica sua escolha de escrever sobre a morte, e também manter o sangue-frio… mas tudo aquilo que testemunhou não apenas minou sua tentativa de distanciamento, como causou um impacto, em certa medida, traumático. E é aí, quando a autora tenta desencavar as raízes de sua reação e as repercussões de toda a experiência de pesquisa para All the Living and the Dead, que a tese motora por trás do livro funciona, envolve, transforma a nossa própria experiência de leitura.

Essa abertura que Campbell dá para os seus próprios pensamentos, ansiedades, tristezas foi o que tornou o título memorável para mim - não é simplesmente mostrar o que acontece por trás dos muros do IML, do cemitério e de outros lugares afins; mas trazer à tona as contradições de trabalhos extremamente necessários, que se fazem invisíveis por preconceitos sociais, e que exigem do indivíduo que neles atua profunda compaixão e olhar clínico (um equilíbrio que nem sempre se é capaz de alcançar e pode terminar em cinismo e dissociação).


Para terminar minhas indicações de hoje, como já mencionado, vamos de Bradbury, que é um autor, por excelência, outonal.

Ray Bradbury é um dos autores que tenho por planos um dia terminar a leitura de toda a bibliografia. Eu tenho paixão pela forma como ele consegue misturar fantasia e ficção científica com temas de necessária reflexão, ao mesmo tempo em que imbuí suas narrativas com uma linguagem incrivelmente, deliciosamente poética, daquelas que te assombram por tempos mesmo após a última página.

Assim é que baixei Prazer em Queimar pelo Skeelo e embarquei no volume. Acho que praticamente todos os volumes dele lançados pela Biblioteca Azul em português estão disponíveis lá (incluindo o mais recente, A morte é um negócio solitário, que será minha próxima leitura no aplicativo).

Eu conhecia alguns dos contos que aparecem aqui de outras antologias e, como vários têm a mesma temática ou mesmo são variantes de Fahrenheit 451, a leitura pode se tornar um pouco repetitiva. É um exercício interessante, contudo, para acompanhar a evolução da ideia e como Bradbury trabalhou os mesmos elementos em cenários por vezes completamente distintos.

Em Fahrenheit 451, os livros são queimados, mas em vários dos contos de Prazer em Queimar, são pessoas - ou melhor dizendo, corpos - que vão para os fornos. Em mais de uma história temos um falecido que retorna num mundo obcecado por uma assepsia que não é apenas física, mas também da memória. Cemitérios estão sendo destruídos, cadáveres e restos mortais de todos os tipos são cremados e sua destruição é também um símbolo de destruição do passado.

Dou um destaque especial para o conto O Sorriso, que li alguns dias após os eventos do oito de janeiro em Brasília - e que me fizeram pensar muito no que aconteceu durante a invasão, especialmente no ataque a obras de artes e objetos históricos expostos nos prédios dos Poderes (que são, afinal, museus públicos também). Teria sido uma história dolorosa de toda maneira, por falar do processo de descida da civilização ao nível da barbárie, mas o momento em que dei de cara com o conto tornou-o ainda mais amargo.

Bradbury, ao final das contas, é muito político e atual, uma leitura sempre necessária e cativante.


A Coruja


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