31 de outubro de 2021

Conversas Sobre o Tempo #07 - Aquele em que cometemos ficção


A Troca

- Uau! Parece tão antigo!

- Não é? Nem dá para acreditar que foi comprado num desses bazares beneficentes, e mais barato que um lanche no aeroporto. Parece uma daquelas peças de antiquário, né? Enfim, assim que eu bati o olho, me lembrei de você.

Penélope passou os dedos delicadamente pelas bordas da xícara de porcelana. Os detalhes pintados ao longo da superfície eram de uma delicadeza ímpar. Seria fácil acreditar que se tratava de uma peça autêntica, uma daquelas peças de museu, pintada a mão em tempos remotos, únicas no mundo.

- Você tem certeza que quer me dar ela de presente?

Eulália revirou os olhos.

- ‘Lopes, assim que eu bati o olho nela, só lembrei de você. Quem mais eu conheço que apreciaria tomar um chá numa xícara como essa? Eu trouxe um monte de miudezas de lembrança da viagem, nem sei onde vou colocar tudo. E ainda estava te devendo um presente de aniversário, então…

A moça sorriu, depositando seu presente de volta na caixa que Eulália trouxera. A próxima hora foi passada trocando figurinhas sobre a viagem da amiga, e todas as praias paradisíacas que ela tinha visitado nas últimas semanas.

A tarde já ia finda quando Penélope voltou para casa. Havia alguns prazos para analisar do trabalho, mas deixaria isso para o dia seguinte. Tomou um banho quente, jantou em frente à televisão e já perto da hora de dormir, desempacotou a xícara novamente. Era realmente linda - do tipo que poderia até ser usada como peça de decoração. Gostava, contudo, da ideia de usá-la para o que fora feita e não simplesmente deixá-la acumulando poeira no aparador da sala.

Enquanto a água fervia na chaleira, ela lavou a xícara com cuidado e procurou uma de suas misturas de ervas apropriadas para relaxar - uma infusão de valeriana, camomila, hortelã e lavanda, que amava tanto pelo aroma quanto pelo efeito calmante. O próprio ritual de preparar o chá a acalentava e foi com um sorriso que ela derramou a água e inspirou o perfume.

O sono não demorou a chegar, profundo, e, com ele, o sonho.

Estava num porto. Vozes se misturavam no vento e o barulho das ondas. O cheiro de maresia se misturava com suor e especiarias. Estava cansado - tinha passado o dia conferindo e despachando caixas para abastecer o navio -, mas satisfeito. Aquela carga de porcelana faria sua fortuna e, quando chegasse em casa… quando chegasse em casa, poderia pagar as dívidas do pai, limpar o nome da família, e se tudo certo, se ela tivesse mantido a promessa, se ainda o esperasse, então…

O dia amanheceu tranquilo e Penélope acordou com o barulho do despertador. O sol escorregava por entre as frestas da cortina e ela se sentou na cama, ainda desnorteada pelo sono. Pensou ter ouvido uma voz próxima e gaivotas - mas logo riu para si mesma. Estava no meio da cidade, longe do mar, como poderia ter ouvido gaivotas?

Provavelmente fora algo que sonhara. Não se lembrava direito, mas a certeza do canto das gaivotas - algo que ela nunca ouvira e não tinha ideia se sequer seria capaz de identificar na vida real - tinha de vir de algum lugar. As histórias de Eulália provavelmente tinham impressionado seu subconsciente mais do que se dera conta.

- Ou então é um sinal para eu também tirar férias. - ela riu para si mesma, levantando-se.

Os dias seguintes seguiram sua rotina e, mais de uma vez, Penélope se pegou pensando em tirar férias. Estavam em meio a uma grande aquisição no escritório, mas talvez pudesse se planejar para um descanso quando a operação terminasse. Vinha se sentindo tão cansada… e havia algo com os sonhos que andava tendo, que não era capaz de recordar, mas tinha quase certeza que tinham se tornado recorrentes.

Finalmente, o final de semana chegou e, com ele, a possibilidade de relaxar um pouco mais. Passou o dia no sofá, deixando-se anestesiar pelo que passava na TV. Perto da hora de dormir, preparou seu chá, e mais uma vez se demorou admirando os desenhos da xícara que Eulália lhe trouxera.

O sonho, aquela noite, mudou, embora Penélope não tivesse consciência de tal fato.

A tempestade, quando chegou, veio sem aviso, violenta. Eles lutaram em vão, tentando enfrentar os elementos, sem se dar conta de estar em meio a um furacão. O barco praticamente voava por cima das ondas cada vez mais revoltas, a água lavava o convés tomando todas as aberturas, saturando as galerias e o porão. O porto não estava tão longe, mas uma linha de pedras ardilosas se espalhavam na região, tornando difícil retornar com segurança. Agarrado ao timão, ele praguejou contra a própria ambição, que o levara a sobrecarregar o navio com caixas e caixas de cobiçada porcelana.

Seus olhos se encheram de terror ao perceber o vagalhão que avançava na direção deles. Seu último pensamento, antes de o navio virar e sumir sob as ondas - deixando famílias condenadas a uma espera de angústia e esperanças perdidas e nenhum rastro ou notícia - foi uma maldição.

Maldito fosse ele, e maldita fosse aquela carga que o carregara para um túmulo sem lápide no fundo do mar.


Dessa vez, quando Penélope acordou, foi com marcas de lágrimas pelo rosto, e uma sensação de desespero impotente apertando o peito. Ela precisou de três tentativas para se levantar da cama, quando o mundo rodou e ela despencou sentada no chão, sem conseguir se ancorar em canto algum, sem noção de onde era para cima ou para baixo.

Encostada no móvel, respirando fundo para acalmar o estômago embrulhado e cabeça latejante, Penélope concluiu que o cansaço dos últimos dias de fato fora o prenúncio de alguma virose ou coisa parecida. Era improvável que conseguisse ir para o trabalho do jeito que estava.

Demorou para conseguir se firmar nas pernas. Lavar o rosto ajudou um pouco, assim como a batida que bebeu direto do liquidificador, sem paciência para tirar um dos copos do armário. Uma ligação para o escritório avisando que estava doente liberou o resto do dia para se encolher no sofá ou de volta na cama. Mesmo sem apetite, colocou algumas fatias de pão para torrar. Um tablete de vitamina C e um analgésico depois, e ela se sentou na sala, coberta com a manta que tirara da cama, observando o céu nublado pela janela.

O resto do dia se passou numa modorra intranquila. Penélope tentou dormir, mas uma angústia que não tinha ideia a que atribuir não a deixou fechar os olhos. Felizmente, pouco depois do almoço, começou a se sentir um pouco melhor. No fim do dia, com a prática de uma rotina que era já memória muscular, ajeitou o jantar, separou o que precisaria para o dia seguinte e, antes de seguir para a cama, preparou uma última xícara de chá.

O sono veio tão rápido que ela sequer guardou as coisas na cozinha. A xícara ficou na pia, por lavar, e Penélope seguiu de volta para o quarto, mergulhando num torpor tão logo se cobriu.

Quantos anos se passaram desde o naufrágio seria algo difícil de precisar. Mas, um dia, um mergulhador descobriu os restos do navio. Havia caixas fechadas espalhadas por entre os destroços e cacos de porcelana cobertos de areia. Algumas peças ele recuperou inteiras e levou consigo, antes de informar às autoridades o que descobrira. Houve conversas sobre fortunas, museus e colecionadores privados.

Uma xícara se tornou algo como herança de família, orgulhosamente exibida e depois esquecida numa caixa, num sótão empoeirado, passando por gerações até um dia quente, objetos antigos recolhidos para um bazar na igreja, turistas no pátio.

Milhas e séculos de distância, a água quente usada na infusão se derramou dentro da xícara, e, sem se dar pela falta de algo... ele inspirou profundamente o perfume do chá.


O despertador tocou, escandaloso, várias vezes. Penélope não se mexeu. Se houvesse alguém no quarto com ela, poderia ter observado o estranho efeito que a luz, derramando-se pela janela com as cortinas abertas, fazia nas linhas do seu corpo, tornando-o curiosamente translúcido.

Na cozinha, um homem terminava de beber seu chá. Suas roupas pareceriam antiquadas nos dois últimos séculos. Mas haveria tempo para se trocar. Haveria tempo para muitas coisas agora.

Ele olhou para o fundo da xícara e o borrão que se formara. Com alguma imaginação, poderiam dizer que era um navio de cabeça para baixo. Deu um sorriso zombeteiro para si mesmo, antes de deixar a xícara cair e se espatifar no chão. Com o salto da bota, terminou de esmigalhar os cacos de porcelana fina.

- Do pó vieste, ao pó voltarás. - ele murmurou consigo mesmo, pensando nas cinzas de ossos usadas para fabricar porcelana.

Satisfeito, seguiu para a saída, assobiando uma canção que ninguém mais lembraria da letra, embora tivesse sido um sucesso nas tavernas de sua época. Para trás ficou uma cama por forrar, molduras de fotos vazias e uma poeira que logo foi varrida pelo vento.

O apartamento vazio seria colocado para alugar em breve.

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No Escaninho. Outubro, mês das bruxas! Esse ano, não preparei nenhum artigo especial para o All Hallow’s Read, mas, em compensação… escrevi um conto supostamente aterrorizante como presente aqui na newsletter. E minha artista favorita, a Dani, desenhou uma corujinha exclusiva para servir de cabeçalho para as nossas conversas. Enfim, gostosuras ou travessuras para você?

Como hoje é Halloween, recomendo a leitura de um dos primeiros artigos que escrevi no tema, Romance Gótico, uma História. No Quatro Cinco Um, um ótimo artigo sobre Frankenstein, uma história que sempre vale à pena revisitar, pelos dilemas éticos e pelo pioneirismo de Mary Shelley. E para quem gosta de História, fotografia e sustos, tem uma coletânea de fotos arrepiantes ao longo dos tempos que não recomendo aos fracos do coração (eu, claro, culpo os vitorianos).

No Frock Flicks tem uma análise especial do Drácula de Coppola que me deixou ansiosa para rever o filme (está disponível no Netflix, já tenho programa para hoje!). O Atlas Obscura publicou uma série de artigos sobre a monstruosa mitologia de vários lugares do mundo. No History Today, uma matéria sobre polarização política e… fantasmas. Achei a ideia perfeitamente hilariante e fiquei pensando se esse não vai ser o próximo tema a aparecer nas polêmicas do dia, depois da bissexualidade do filho do Superman (que, por sinal, apareceu logo depois de um dos Robins do Batman também se assumir bissexual).

O The Guardian trouxe também um artigo sobre o porquê de lermos histórias assustadoras. Por fim, no Tor.com, recomendo dois artigos: Fear of Desire, sobre elementos religiosos em histórias de horror e Becoming the Thing That Haunts the House, que trata de vários temas do romance gótico.

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Previsão do Tempo para Hoje. Hoje é dia das bruxas, e eu não poderia deixar de marcar a data com minha citação favorita do Ray Bradbury, no aterrorizantemente lírico Algo Sinistro Vem Por Aí:
"Para esses seres, o outono é a estação normal, o único clima que eles conhecem, sem nenhuma outra escolha. E de onde eles vêm? Da poeira. E para onde vão? Para a sepultura. Será que o sangue corre em suas veias? Não, o que corre é o vento noturno. [...] Eles vasculham a tempestade humana em busca de almas, comem a substância da razão, enchem as tumbas com pecadores. E eles avançam, rastejando como besouros, infiltrando-se, fazendo todas as luas ficarem sombrias e toldando todas as águas claras. A teia de aranha os percebe, treme e se rompe. Assim são as pessoas do outono."



A Coruja


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