21 de outubro de 2017

All Hallow’s Read: Romance Gótico, Uma História


É difícil traçar as origens do Horror como gênero literário porque, sendo derivado de uma emoção primeva (talvez uma das primeiras que o Homem, saindo das Cavernas, sentiu), nossas histórias de terror têm suas raízes numa tradição oral, religiosa e folclórica. O desconhecido nos causa medo e, durante muito tempo, tudo o que nossos olhos alcançavam nos era desconhecido. Ou, como Lovecraft muito bem resume no ensaio Horror Sobrenatural em Literatura, “a mais antiga e poderosa emoção da humanidade é o medo, e o tipo de medo mais antigo e forte é o medo do desconhecido”. A mitologia nasceu da necessidade de explicar o mundo ao nosso redor e é óbvio que parte dessas explicações passam pelo ciclo da morte - gerando, muitas vezes, contos de espanto e repulsa. Afinal, quantos não são os heróis mitológicos que descem ao mundo dos mortos? E não são todas essas jornadas caminhos feitos no escuro, sob forte tensão, capazes de causar lágrimas, desespero e, claro, horror?

A carne devorada por vermes, os ossos, demônios, bruxas e outras criaturas inexplicáveis; necromantes, castigos divinos e corpos ressuscitados; assassinatos, guerras, incestos, estupros, abominações; possessões por espíritos e o que mais houver para além do véu. O mito e a religião, ao tratar de confronto do humano com a morte e com o desconhecido, estão cheios dos exemplares iniciais daquilo que viríamos a chamar de Horror. Leia o Antigo Testamento ou o Apocalipse: você certamente vai encontrar muitas histórias para te causar arrepios - não é coincidência que narrativas como a de O Exorcista ou A Profecia, emblemáticas do gênero, bebem dessa fonte.

Gregos e romanos gostavam de histórias com transmutações, situações sexuais de caráter duvidoso (Zeus engravidou diferentes mortais usando disfarces de Touro, Cisne, e - oh, céus... - Chuva de Ouro), bruxas e passeios agradáveis pelos campos de Hades. Mas, na grande maioria dessas histórias, tudo terminava bem ou então, se alguém fosse, talvez, quem sabe, dilacerado num bacanal ou queimado vivo por um veneno aspergido na pele de leão, sempre havia a possibilidade de se transformar numa constelação nos céus. O público medieval, contudo, não estava interessado em debates filosóficos ou na catarse do teatro ao assistir uma tragédia, ou na poesia de uma longa odisséia: olhe para a arquitetura de uma Igreja da época, seus vitrais - a principal forma de contar histórias para uma população que, em sua maioria, não sabia ler - seus sermões, e verá que essa é uma sociedade que vivia em constante terror, eternamente ameaçada com o fogo do inferno e uma miríade de outros castigos demoníacos, coroados por uma possibilidade muito distante de salvação.

Satã e seus asseclas eram personagens extremamente reais e presentes na Idade Média, assim como as hostes angelicais e todas as outras criaturas entre os dois extremos, com seus servos e adoradores. Aquilo que lemos como ficção, para eles era o cotidiano: padres exorcistas e a ameaça do anticristo, por exemplo. Personagens como Vlad Tepes, o Empalador e Erzsebet Báthory viveram no período. Levemos ainda em consideração a sujeira, as doenças, a Peste… a Idade Média é uma constante narrativa de horror, ainda que ignoremos os exageros arrogantes dos renascentistas.


O horror pula então o Renascimento, porque, afinal, esse é um gênero que se regozija na ignorância e no desconhecido, e os renascentistas (diziam eles) viveram num período de iluminação e sabedoria, uma grande era de luzes. Ignoremos as revoltas populares, a pobreza, as epidemias, a fome endêmica: os renascentistas eram otimistas e como Voltaire muito bem trata em seu Cândido, vivemos no melhor dos mundos.

(Juro que não tenho preconceito com os renascentistas; boa parte das minhas obras de arte favoritas são desse período e, bem, Shakespeare faz parte do renascentismo inglês! Minha cisma com eles é só a mania de quererem jogar toda a Idade Média num mesmo fosso de ‘Era das Trevas’. Viver na Europa Medieval não era um mar de rosas, mas não houve uma completa falta de inteligência, conhecimento e avanço no período…)

Fato é que não há grandes expoentes do terror ligados ao renascentismo. E assim, em nossa pequena História do Horror como Gênero Literário, pulamos para o século XVIII, quando nasce, em todo o seu esplendor, com paisagens sombrias e mansões tenebrosas, o Romance Gótico.

O Romance Gótico é um marco dentro da história do terror na literatura porque, antes disso, encontrávamos o choque e o susto, o medo e os calafrios típicos do gênero, em mitos, no folclore, na religião, ligados à realidade. O medo era real, por que demônios e monstros debaixo da cama, lobos na floresta e o Barba Azul, todos eles eram reais. Mas quando Horace Walpole, em 1764, publicou seu romance O Castelo de Otranto, o livro era exatamente isso: um romance, ficção, usando de elementos sobrenaturais, mas sem se preocupar em produzir sermões sobre a danação. Outros o seguiram, com variado sucesso, até a coisa explodir em 1794, com Os Mistérios de Udolpho de Ann Radcliffe e em 1796, com O Monge, de Matthew Gregory Lewis.

Na primeira edição do livro, o autor começa seu romance explicando que os fatos ali narrados são uma tradução de um manuscrito napolitano do século XVI encontrados na biblioteca de "uma antiga família Católica do norte da Inglaterra"; o manuscrito, por sua vez, contaria fatos ainda mais antigos, do tempo das Cruzadas. Walpole não seria o primeiro a se utilizar desse recurso, tanto para esconder sua identidade, como dar ares de mistério e veracidade à história. Fato é que muitos críticos acreditaram na invenção e elogiaram aquela peça de literatura medieval; quando Walpole reconheceu que a história era de sua inteira autoria, os mesmos críticos foram rápidos em desdenhá-lo, chamando o romance de absurdo.

Seja como for, O Castelo de Otranto mescla elementos reais com fantasia e sobrenatural, trazendo muitos elementos que se confundiriam para sempre com a própria noção do que seja romance gótico: portas que se fecham sozinhas, passagens secretas e alçapões escondidos, pinturas que parecem se mover, fugas através de túneis subterrâneos. Há filhos perdidos, pais perdidos, noivas perdidas, profecias, vingança campos cobertos pela névoa e, claro, um castelo amaldiçoado - porque no gótico, os lugares onde a história se passa não são apenas importantes: eles são também personagens da história.

Na verdade, Walpole gostava tanto de castelos góticos que até mandou construir o seu próprio - e considerando que ele foi filho do primeiro primeiro-ministro da Inglaterra, ele tinha dinheiro para isso -: Strawberry Hill começou a ser construída em 1749 e foi quando já morava em seu novo castelo que Walpole teve a inspiração para começar a escrever seu romance. Se algum dia você for à Londres e quiser dar um pulinho por lá, Strawberry Hill é aberto ao público, sempre tem várias exposições acontecendo e ainda conta com visitas noturnas guiadas com leitura de trechos de O Castelo de Otranto. Fantasmas, creio eu, não estão incluídos no pacote.

Após Walpole, foi a vez de Anne Radcliffe aparecer em cena, com seu Os Mistérios de Udolpho. Mais castelos assombrados, mais vilões afagando bigodes, mais mocinhas desmaiadas. E, embora O Castelo de Otranto tenha inaugurado o gênero, o romance gótico começou a fazer grande sucesso de público com a Radcliffe. A mocinha do romance, Emily St. Aubert, fica órfã após a morte do pai, torna-se prisioneira no castelo de Udolpho, à mercê da tia manipuladora, Madame Cheron e o marido dela, Signor Montoni, que, por sua vez, tentar forçar Emily a casar-se com seu amigo, o Conde Morano - ao menos, até descobrir que o amigo está à beira da falência e ele não vai ganhar nada com isso. Madame Cheron morre, deixando suas propriedades, que legalmente deveriam ir para Emily, para Signor Montoni, que continua com a moça sequestrada em seu castelo italiano.

Além disso há assassinos, herdeiras perdidas, identidades roubadas, prisioneiros em masmorras e vários outros eventos inexplicáveis, incluindo melodias que tocam sem se saber de onde elas possam vir. Porque não há que diga melhor que você está em apuros quanto uma boa trilha sonora fantasmagórica soando ao fundo.

Fechando a tríade setecentista de pais do romance gótico, temos Matthew Gregory Lewis, que continua a tradição do edifício gótico onde a história se passa, exceto que em vez de um castelo sinistro, temos um monastério sinistro no centro da ação. E, se em Otranto e Udolpho tivemos, após muitos perigos, finais felizes, o mesmo não se pode dizer dessa história. Em O Monge há criptas e pactos demoníacos, incesto, estupro, tortura pela inquisição e todas as perversões possíveis e imagináveis. Começa com um jovem monge virtuoso que foi abandonado bebê na porta do monastério - e ali foi criado e por décadas, conheceu apenas aquela realidade. Ambrosio, nosso amigo monge, recebe uma confissão de uma freira grávida que planeja fugir com seu amante e, em vez de guardar o segredo (afinal, foi revelado em confissão!), entrega a jovem freira para sua superior, que, por sua vez, antes de ser levada para seu castigo, amaldiçoa o rapaz. Pelo meio do caminho, Ambrosio descobre que seu melhor amigo monge é na verdade uma mulher disfarçada que entrou no monastério para seduzi-lo. Não demora muito para que o monge caia em pecado - e não estamos falando apenas do sexo, mas também de rituais secretos em cemitérios, espelhos que mostram jovens virtuosas se banhando, e Lúcifer em pessoa para coletar o combinado em contrato.

Walpole, Radcliffe e Lewis não são tão conhecidos fora de certos nichos hoje em dia, mas eles pavimentaram o caminho para os autores do século XIX, aqueles que continuamos a ler e reler e até debater na escola, os grandes clássicos, que ainda influenciam o horror na literatura, no cinema, nas artes. Lorde Byron, Mary Shelley, Emily e Charlotte Brontë, Edgar Allan Poe, Louis Stevenson, Bram Stoker, todos esses e muitos mais, são herdeiros diretos dos góticos do século XVIII.

Mas o que faz, afinal, um romance gótico? Quais são os temas comuns a todas essas histórias? E por que somos tão fascinados por esses contos?


De forma geral, o romance gótico parece espelhar o que há de pior na sociedade - e, considerando que as grandes obras do gênero nasceram em períodos bastante reprimidos, não é acaso que boa parte dos vilões dessas histórias possam ser lidos como predadores sexuais; mesmo quando não estão ostensivamente atrás da virtude da mocinha, mas só de sua herança. Da sensualidade que perpassa Drácula ao amor tóxico de Heathcliff, não é difícil enxergar que Luxúria é um dos pecados capitais favoritos dos góticos. E, quando não há donzelas em perigo para resgatar, há sempre a sensação de violência mal contida, prestes a entrar em erupção; combinada com ganância e avareza.


Pecado, tentação, arrogância e queda - todos esses são temas religiosos e a religião é quase onipresente nessas histórias. Conflitos morais estão na essência do gótico e o sobrenatural, nessas histórias, é muitas vezes decorrente da quebra de todas as regras que nos permitem viver em sociedade. Os vilões góticos são imperdoáveis, incapazes de sentir culpa, vorazes em seus apetites sem se importar com quantos corpos fiquem pelo caminho (às vezes os corpos até fazem parte do passeio, já que necrofilia também é matéria para muitos romances do tipo). Ironicamente, esses vilões são muitas vezes católicos ou auxiliados por pessoas ligadas ao catolicismo (vide O Monge). Considerando que a tradição do gótico na literatura surgiu na Inglaterra, a vilanização da Igreja Católica não é uma surpresa.

E como a arrogância não é um atributo só de vilões, há muitos heróis caídos no gênero; ou, talvez melhor seria dizer, anti-heróis. Jogando por suas próprias regras, personagens como Victor Frankenstein e Edward Rochester atraem a própria ruína. Poe tem muitos protagonistas desse tipo, embora seus narradores não possam exatamente ser classificados como heróis: O Coração Delator, A Máscara da Morte Rubra, O Gato Preto são histórias que podem entrar aqui.

Os góticos também adoram um bom mistério. Heróis ou donzelas geralmente têm uma origem desconhecida, para em algum momento descobrir os segredos de seu nascimento e se revelar algum herdeiro perdido. Há os mistérios envolvidos nos crimes cometidos, na identidade dos vilões, na própria exploração dos ambientes que cercam os personagens - passagens secretas, alçapões secretos, sótãos, porões, túneis, criptas… um labirinto de caminhos que podem levar à morte ou à salvação. Tudo isso é bem melodramático, mas, bem, melodrama, sensacionalismo, tudo isso são características do romance gótico - e dos escritores góticos também, já que muitos deles foram figuras escandalosas em seu tempo (olá, lorde Byron).

A arquitetura e o ambiente em que as histórias se passam são também uma marca do gênero. Considerando o quanto os personagens - em especial as heroínas - costumam aparecer isolados dentro do enredo, à completa mercê do vilão, sem uma família sequer para saber que a pobre criatura foi sequestrada para um castelo na Itália; não é difícil compreender esse fato: o ambiente como personagem será quem mais vai interagir com a protagonista. A paisagem em que os personagens estão inseridos refletem seu humor, os perigos que sofrem, dificultam ou escondem sua fuga. E assim temos os prédios de arquitetura gótica - que são, muitas vezes, assustadores por si só - as ruínas, os pântanos, os morros uivantes, os campos ermos. Jane Austen brinca muito com isso em seu A Abadia de Northanger - que é todo ele um romance parodiando romances góticos -, a ponto de colocar Henry Tilney debatendo com Catherine Morland sobre paisagens pitorescas ou as revelações por trás do mais novo romance de Mrs. Radcliffe.

Por último, o gótico se interessa tanto pelo sobrenatural (óbvio) quanto pelo sublime - e o sublime, não como beleza ou perfeição, mas como um sentimento que se eleva, o clímax emocional, aquele momento em que nosso coração parece paralisar dentro do peito para então voltar a pulsar loucamente, até que é só isso que você é capaz de ouvir dentro dos próprios ouvidos. O horror pode levar à reflexão, à introspecção, ao confronto com um mundo cruel e com as nossas próprias tendências mais sombrias e, com isso, a uma profunda catarse. Essa eventual reflexão, contudo, vem depois que você já terminou a história, quando teve tempo de digeri-la; antes disso, ele está interessado em provocar uma resposta no leitor, - reação física, visceral, verdadeira.


Ainda hoje pulamos da cadeira ou nos encolhemos junto do balde de pipoca; fechamos os olhos brevemente, para então forçá-los a abrir porque é impossível não querer saber o que vai acontecer a seguir: a dúvida provocará loucura e pesadelos. Enfrentamos o horror nas histórias, e, através deles, confrontamos nossos próprios medos. O sol nasce, as sombras desaparecem e nos sentimos vitoriosos.

Ao menos, até o próximo capítulo...

 
 A Coruja


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