30 de setembro de 2021

Conversas Sobre o Tempo #06 - Aquele em que falamos de tempos interessantes


Eu tinha acabado de completar quinze anos. Ganhei um monte de anéis (nunca entendi exatamente de onde vinha essa tradição…) e também O Senhor dos Anéis, que comecei a ler no dia seguinte. Fazia parte de um programa da escola que estendia minhas aulas em período integral por metade da semana - naqueles dias, estava às voltas com a preparação que o grupo de física faria na Feira de Ciências. Estava também ensaiando para o Festival de Setembro, um evento grandioso do colégio, que juntava todos os departamentos de artes - eu era membro do coral.

O ensaio era logo depois do almoço, e pouco depois começava o turno de aulas da tarde, de forma que não havia tempo para ir almoçar em casa. Quando saí do colégio, ainda não tinha ouvido falar sobre nada do que estava acontecendo. Foi só quando cheguei no restaurante, algumas quadras depois do colégio, que vi cenas dos ataques na televisão. Nem me toquei, de princípio, que aquilo era o jornal, e não um filme.

Eu gostava desse restaurante. Não tinha placa com nome do lado de fora, de forma que o conhecíamos só como ‘o restaurante do americano’, já que o dono - que ficava no caixa e sempre nos recebia rindo e disposto a nos deixar treinar nosso inglês com ele - era, bem, americano. Não consigo me lembrar do nome dele, mas tenho seu rosto bem vívido na memória, e a expressão de quem acaba de perder o chão que ele carregava naquele dia. Foi quando entendi que o que estava assistindo era real e me peguei pensando que o mundo como eu conhecia tinha acabado de desabar.

Assistindo a cobertura dos vinte anos dos atentados de 11 de setembro de 2001, vi mais de um jornalista comentar sobre a memória daquele dia, do tipo ‘você pode até não se lembrar do que almoçou ontem, mas certamente se lembra de onde estava naquele dia’. De fato, quando parei para pensar no assunto, achei espantoso o número de detalhes que me vieram à mente de tudo o que fiz naquele dia.

Sempre gostei muito de História e, mais nova, perguntava-me como seria viver enquanto ‘A História Está Acontecendo’, em meio a algum evento relevante que muda toda a nossa perspectiva de mundo. Naquele dia, descobri exatamente o que significava ‘viver a História’ e também entendi a razão da frase “que você viva em tempos interessantes” ser uma maldição.

É curioso perceber nesses eventos cataclísmicos como a nossa memória pessoal se enreda com a memória coletiva, assumindo o papel de testemunhas de um registro histórico. Pensar que, num futuro, alguns séculos à frente, as lembranças que guardamos poderão servir de documentos históricos. Fotos, cartas, gravações, diários - todos esses fragmentos de memória que vamos deixando de forma física ou virtual, em caixas guardadas em armários ou na nuvem.

Lembrei-me aqui de John Clyn e seu diário, que termina abruptamente em 17 de junho de 1349, quando ele provavelmente sucumbiu a peste - fato que descobri lendo O Livro do Juízo Final, da Connie Willis - com a seguinte entrada:
“E, para que coisas que devem ser lembradas não sucumbam ao tempo nem se desvaneçam da memória dos que virão depois de nós, eu, vendo tantos males e vendo o mundo, por assim dizer, sob a garra do Maligno, e estando eu próprio como se já entre os mortos, eu, esperando pela morte, deliberei colocar por escrito todas as coisas que testemunhei.”

Clyn é importante aqui por que, vinte anos depois, estamos no meio de outro acontecimento daqueles que parecem tirar nosso mundo dos eixos. Diferente dos atentados em 2001, que embora tenham mexido com toda a geopolítica que conhecíamos, não chegou a afetar de forma significativa meu círculo de convivência, a Pandemia tem sido algo muito mais pessoal. Não conheço ninguém que não tenha tido sua rotina afetada de alguma maneira - não creio que mesmo a turma mais negacionista tenha conseguido continuar a vida como se nada estivesse acontecendo.

Assim é que as imagens que produzimos ao longo desses quase dois anos estarão um dia nos livros de História. Afinal, vivemos, mais uma vez, tempos interessantes.

[Pior é que são tempos interessantes tanto no nível internacional quanto no nacional. Caramba, o que eu não daria para voltar a viver em tempos entediantes…]

É irônico pensar que alguns historiadores consideravam a Queda do Muro de Berlim, em 1989, como “o fim da História” (alô, Fukuyama), quando um período de longa estabilidade e progresso coroaria a sociedade capitalista ocidental como o pico evolutivo da humanidade. Não sei qual deve ser minha reação a isso - gargalhar até chegar às lágrimas histéricas? Desde então, pouco mais de trinta anos após a data que marcaria o tal final, o mundo já explodiu literal e figurativamente com pelo menos dois potenciais marcos de ruptura histórica.

Bem, considerando o pouco tempo entre um e outro, talvez eles sejam no futuro bandeados sob um único título de ‘declínio e queda’, para se juntar aos vários outros impérios e sistemas esfacelados desde Gilgamesh. Ou ainda, pensando no potencial apocalíptico das alterações climáticas (estou lendo A Terra Inabitável e me convencendo cada vez mais que o inferno é aqui mesmo), estamos no início de uma inteira Era (oi, Hobsbawm) não do fim da História, mas sim do Mundo.

Será por isso que não aguento mais ler distopias? E estou sendo otimista ou pessimista no meu acúmulo de ansiedades e pensamentos paranóicos? Guardarei o tópico para discutir na terapia. Enquanto isso, aguardemos o que vem por aí nesses tempos tão interessantes que estamos vivendo.

[p.s.: acabo de me dar conta que a nossa próxima conversa será em pleno dia das bruxas! Preciso pensar em alguma coisa para celebrar a data. Talvez eu cometa um ato de ficção na próxima newsletter, o que me dizes?]

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No Escaninho. Semana passada rolou o festival TUDUM, da Netflix, e entre inúmeros conteúdos bem empolgantes, destaco o trailer de Sandman, que me deixou morrendo de vontade de reler a série em quadrinhos do Gaiman; e o teaser de Anthony e Kate se enfrentando na segunda temporada de Bridgerton, inspirada em O Visconde que me Amava. Como controlar a ansiedade agora?

Para quem é fluente em inglês, o pessoal do Book Riot organizou uma lista maravilhosa de cursos literários online gratuitos. Pessoalmente, recomendo o Crash Course, que é o primeiro da lista deles. Assisti há tempos todos os vídeos do John Green no Crash Course Literature e vários dos cursos de História e eles não apenas são excelentes para pegar pontos de vista diferentes (e temas para debate do clube do livro), como servem como uma boa ferramenta para treinar o inglês. Não vi nenhum dos outros ainda, mas fiquei bem tentada a entrar em boa parte deles. Haja tempo...

O Ficções Humanas trouxe um artigo sobre a diversidade da literatura de gênero contemporânea e a resposta de de núcleos conservadores a isso. Achei excelente, concordo com tudo o que foi dito e sim, Gideon, the Ninth está há tempos na minha lista.

No Quatro Cinco Um comecei num artigo sobre a mulher desobediente de Shakespeare (bem, considerando quantos dos heróis são completos babacas, não é de se surpreender) e acabei indo parar em outro texto mais antigo, mas ainda mais fascinante, sobre as heroínas crossdressers do bardo, como desconstrução de estereótipos e de identidade de gênero. Adoro!

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Previsão do Tempo para Hoje. No espírito dos Diários de Virginia Woolf, na expectativa de receber a segunda dose da vacina e retomar algumas das rotinas daquela vida anterior que os tempos não trazem mais:
"Sim, eu mereço uma primavera - não devo nada a ninguém."



A Coruja


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