31 de maio de 2021

Conversas sobre o Tempo #02 - Aquele em que começamos com livros perdidos


Dia desses estava procurando por um livro sem conseguir achá-lo. Revirei prateleira por prateleira, escarafunchei por trás das fileiras de volumes, saí remexendo pelas outras estantes da casa e fucei até os locais mais insuspeitos, sem sucesso. Ao final, tive de me dar por vencida e prostrada no chão fiquei, esbaforida, despenteada e no meio de uma crise alérgica, pernas e braços para todos os lados, como uma estrela do mar demente.

Busquei na memória o que poderia ter acontecido com aquele bendito. Será mesmo que eu o possuíra algum dia, ou minha lembrança de tê-lo lido sentada na varanda me fizera esquecer que ele era emprestado? Ou será que eu o tinha emprestado e esquecera de pegar de volta? Não, impossível, eu tenho registro dos livros que empresto. Mas e se não registrei? Ou se, na verdade, eu o doei em alguma das levas que volta e meia saem daqui quando arrumo a estante? Ou se simplesmente foi… perdido?

A essa altura dos acontecimentos, impossível chegar a uma conclusão. Posso apenas me resignar com a perda. Não seria a primeira vez, provavelmente não será a última.

Enquanto continuava lá, estendida em minha encenação de cena do crime, fiquei pensando em outros livros desaparecidos ao longo dos anos e um título me veio imediatamente à lembrança: o Contos da Condessa de Ségur. Esse título foi um presente de Dona Mãe no ano em que meu irmão nasceu, quando ela assinava o Círculo de Livro e todo mês chegava um volume novo do catálogo. Tenho vívida a imagem dele, com sua capa dura cor de rosa, belas gravuras de Gustave Doré, e meu nome em letras de garrancho na folha de rosto.

Ele sumiu no meio da mudança, quando viemos para Recife (já notou como sempre se perdem coisas em mudança e, normalmente, quando você vem notar o sumiço, descobre que tinha um apego sentimental àquele objeto?). Algumas caixas se extraviaram na transportadora e a Condessa de Ségur foi uma das vítimas de tal acontecimento. Não sei dizer hoje se havia outros livros naquelas caixas; o único que realmente me ficou marcado foi este pequeno volume de contos de fadas.

Faz muito tempo que li o Contos da Condessa de Ségur. Quando penso nele, contudo, tenho a sensação de luminoso encantamento. Não sei encontrar outra maneira de explicar para além da certeza de ter encontrado algo de uma beleza do tipo que nos toca a alma. O que é engraçado porque, se você me perguntar do que se tratam esses contos… o que sei te dizer, sem ter de pesquisar, é que pelo menos um deles se encaixava no ciclo do “noivo animal” (o que talvez explique minha paixão posterior por A Leste do Sol e a Oeste da Lua), e que a palavra que mais associo ao livro (embora eu não tenha uma justificativa para tanto) é “metamorfose”.

Eu poderia providenciar uma nova edição dele (ele foi relançado em 2017 pelo que estou vendo aqui) ou mesmo procurar em sebos um volume igual ao que possuí. Se eu realmente quisesse, não seria difícil encontrá-lo para ler online: a obra da condessa está em domínio público há tempos. Mas acho desnecessário fazê-lo.

Veja, ainda que eu tenha falado no Coruja da importância de ler livros infantis quando já adulto, não acho que uma releitura da condessa seja capaz de recapturar a experiência quase numinosa de tê-la encontrado na infância. Seria impossível fazê-lo sem o peso da expectativa que minha memória coloca sobre ela - e tanta expectativa tem potencial de estragar aquela recordação tão querida para mim. Para não dizer nada do quanto eu mudei com o passar dos anos, e minha perspectiva crítica também.

Assim, prefiro pensar nesse livro como parte da minha “Biblioteca de Alexandria”; um mito pessoal que ganha ainda mais estatura justamente por estar inalcançável.

Perdemos objetos, lugares, memórias, até pessoas. Perde-se o rumo, a inspiração, a coragem, a vergonha (para observar este último fenômeno, basta sintonizar na TV Senado dias de terça, quarta e quinta, a partir das nove horas. Tem acontecido com certa constância). Nos últimos tempos, não tem sido difícil perder até a esperança. Mas talvez seja o caso de olhar o outro lado da moeda aqui.

Volto alguns parágrafos atrás e àquela memória de metamorfose. Crescemos, amadurecemos, e pode-se dizer que pelo meio do caminho vamos perdendo pedacinhos de nós mesmos enquanto nos encaixamos nas novas formas que vamos habitar. Mas não estamos simplesmente passando por perdas: estamos também nos transformando. Ganhando compreensão do mundo. Passamos a questionar aquilo que, na infância, era inquestionável.

Lembrei-me agora de um ensaio de Philip Pullman para o livro Daemon Voices, no qual ele fala do tema da tentação-e-queda de Adão e Eva; episódio que comumente associamos com a ideia de perda da inocência; a perda daquela qualidade inefável que temos quando crianças, de acreditar num mundo mais misterioso e repleto de magia. Pullman escreve:
“A história de Adão e Eva me parece o mito fundamental de por que somos como somos. Tendo comido o fruto da árvore do conhecimento, estamos separados do mundo natural por ter adquirido a capacidade de refletir sobre ele e sobre nós mesmos - somos expulsos do jardim do Paraíso. E não podemos voltar, porque um anjo com uma espada de fogo está no caminho; se quisermos recuperar a felicidade que sentimos quando fazíamos parte daquele mundo, não podemos voltar, mas sim seguir em frente, diz Kleist, até dar a volta ao mundo, e reentrar no Paraíso pela porta dos fundos, como agora somos. Em outras palavras, temos que esquecer a inocência - ela se foi; não adianta lamentar nossa infância perdida e ficar intoxicado pela potência doentia de nossa própria nostalgia; temos que crescer. Temos que deixar para trás a graça espontânea da infância e ir em busca de outra qualidade, a qualidade da sabedoria. E isso significa envolver-se com todo tipo de experiência humana, fazendo concessões, sujando as mãos, sofrendo, labutando, aprendendo.

A inocência não é sábia; a sabedoria não pode ser inocente. E é muito doloroso e muito difícil, mas é o único caminho a seguir, e no final, se continuarmos tentando, teremos adquirido uma compreensão mais profunda, mais plena e mais rica do que jamais tivemos antes de saborearmos o fruto do conhecimento do bem e do mal.”

Para o autor, perder o Paraíso e a inocência da infância (da humanidade, no conto bíblico; da criança, de forma geral) é necessário para que possamos atingir nosso potencial e ‘construir a República do Céu no lugar em que estamos’.

Como tudo isso se encaixa no fim das contas? Confesso que nem eu tenho muita certeza. Era para essa carta ter sido uma crônica bem humorada sobre livros perdidos, mas, como de hábito, uma vez que comecei a escrever, as palavras deixaram as minhas rédeas. O que posso dizer é que não lamento a perda dos Contos da Condessa de Ségur, por mais importante que ele tenha sido para mim. Como disse antes, ele provavelmente não teria se transformado nessa lembrança tão querida se não tivesse sido perdido. Minha imaginação aumenta seu encanto.

Talvez, um dia, eu decida relê-lo (nunca diga que “dessa água não beberei”). Se o fizer, não lamentarei a inocência perdida, mas aceitarei as mudanças de perspectiva; o conhecimento ganho e acumulado que me fará enxergar os contos com outros olhos. Outros livros serão perdidos, mais histórias serão encontradas. E assim vamos seguindo o caminho e seja o que Deus quiser...

(Em tempo, se você ficou curioso: quem começou todo esse escarcéu foi Os Crimes ABC, da Agatha Christie. Continuo sem encontrá-lo. Talvez um dia ele reapareça, quando eu menos esperar…)

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No Escaninho. Recomendo dar uma olhada no editorial do Washington Post (em inglês) sobre o Museu-Casa da Jane Austen, em Chawton, ter passado a tratar da questão da escravidão em sua mostra. Esse ponto sempre surge quando debatemos Mansfield Park. No canal Modista do Desterro tem um ótimo vídeo sobre a tintura verde de arsênico que matou gente na era vitoriana (nada como um vestido assassino para compôr a toalete do dia!).

O Momentum Saga tem dois artigos bem legais sobre por que ler os clássicos e como começar a ler os clássicos. E o pessoal da editora Morro Branco preparou um guia de viagem da Biblioteca Invisível que, mesmo se você não leu a série, tem muita informação legal sobre bibliotecas pelo mundo.

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Previsão do Tempo para Hoje. De Kazuo Ishiguro em Não me Abandone Jamais, um dos romances mais tristes que já li na vida:
“'Vejam só, pelo fato de estar entalado ali, bem ao leste, naquela corcova que se projeta para o mar, Norfolk não é caminho para nada. As pessoas que viajam para o norte e para o sul não passam por lá. Por esse motivo, é um cantinho muito sossegado e simpático da Inglaterra. Mas é também meio que um recanto perdido do país.'

Um recanto perdido. Foi o que ela disse, e foi também o que desencadeou a história toda. Porque em Hailsham tínhamos nosso próprio "Recanto", no terceiro andar, onde eram guardados todos os objetos encontrados nas dependências da escola; se você perdesse ou achasse alguma coisa, era para lá que deveria se dirigir. E alguém - não consigo me lembrar quem - falou, depois da aula, que Miss Emily havia dito que Norfolk era o "recanto dos perdidos" da Inglaterra, o local onde todos os objetos encontrados no país inteiro iam parar.

[...] O importante para nós, como bem disse Ruth certa tarde, quando estávamos sentadas naquele quarto azulejado de Dover vendo o sol se pôr, era que 'quando perdíamos algo precioso e não conseguíamos encontrá-lo, mesmo depois de ter procurado por tudo quanto é canto, não precisávamos ficar completamente arrasados. Porque restava aquele último pingo de consolo de pensar que um dia, quando fôssemos grandes e livres para circular pelo país, poderíamos ir até Norfolk e recuperar o objeto perdido'."




A Coruja


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