19 de janeiro de 2021
Um Chapéu Cheio de Céu: A Alma e o Centro de Cada Um
Sempre enfrente o que você teme. Tenha apenas dinheiro suficiente, nunca em excesso, e um pouco de corda. Mesmo que não seja sua culpa, é sua responsabilidade. Bruxas lidam com as coisas. Nunca fique entre dois espelhos. Jamais cacareje. Faça o que deve fazer. Nunca minta, mas você nem sempre tem que ser honesta. Nunca faça desejos. Sobretudo, não faça desejos a uma estrela, o que é astronomicamente estúpido. Abra os olhos e, então, abra os olhos novamente.
Continuando minha tradição de começar o ano com Pratchett, comemorei a chegada de 2021 relendo Um Chapéu Cheio de Céu, segunda aventura de Tiffany Dolorida. Tinha várias vagas lembranças da história (que li pela primeira vez em 2011), mas há sempre algo mais a ser dito e visto em cada releitura que fazemos - além de observações sobre a tradução, visto que minha leitura anterior foi do original em inglês.
De pronto observo que não vi grandes problemas de tradução (Pratchett é difícil de traduzir, com seus trocadilhos e ironias intertextuais), mas vários de revisão. Conectivos faltando, artigos num gênero com substantivo em outro, letras comidas… Fiquei desapontada, especialmente comparando com o cuidado das edições mais antigas da série, publicadas pela Conrad. Faltou um pouco mais de atenção.
Dito isso… tratemos da história.
Após derrotar a Rainha das Fadas com uma frigideira, uma boa dose de talento natural para a bruxaria e a ajuda dos Nac Mac Feegle, chegou o momento de Tiffany começar a aprender o quê, de fato, significa ser uma bruxa. Para tanto, ela deixa sua casa e as colinas de Giz, indo se empregar como aprendiz com a senhorita Plana - criatura peculiar, que possui uma única alma dividida entre dois corpos.
Tiffany havia feito mágica, mágica de verdade. Até fazer, ela não sabia que era capaz; quando estava fazendo, ela não sabia que estava; e, depois, ela não sabia como acontecera. Agora, teria que aprender como fazer.
Não demora muito para Tiffany perceber que sua noção do que é ser bruxa é algo bem diferente - e muito menos glamouroso - da realidade. Longe de suas raízes, ela precisa compreender e descobrir a si mesma e como se encaixar no mundo ao seu redor.
Um Chapéu Cheio de Céu - na verdade, todos os livros da Tiffany na série maior de Discworld - é uma típica história de amadurecimento, embora leve a questão do conflito de identidade ao extremo. Tiffany, ridicularizada pela ‘clique’ em que tanto deseja se encaixar, acaba se tornando vulnerável a uma entidade predatória - o Enxame - que literalmente invade seu corpo e tenta absorver sua personalidade em si.
O que o Enxame realmente faz, contudo, não é simplesmente tomar para si a vida de seu hospedeiro. O Enxame não tem exatamente uma vontade; ele é praticamente apenas medo e instinto. Ao encontrar uma mente em que se instalar, ele absorve a essência - e os desejos sem censura e sem barreiras sociais - daquela criatura.
Desejos é a chave da questão e é por isso que o que mais horroriza Tiffany é perceber as ações do Enxame enquanto está no controle de seu corpo como um reflexo dos desejos egoístas que ela possuía - os quais não tinha coragem de vocalizar por não serem social ou moralmente aceitáveis. De um certo ponto de vista, o Enxame é uma representação do Id de Tiffany e é por isso que ela se sente responsável pelos malfeitos dele, ainda que ela tenha uma desculpa perfeita para justificá-los (o famoso “eu não estava em plena posse das minhas faculdades mentais”).
Era muito fácil ter um lapso de pequenas crueldades descuidadas, só porque você tinha poder e outras pessoas não; muito fácil pensar que as outras pessoas não importavam; muito fácil pensar que ideias como certo e errado não se aplicam a você.
Para resolver essa questão, lidar com sua culpa e responsabilidade - e também resolver de uma vez por todas o problema com o enxame - Tiffany precisa encontrar o que a vovó Cera do Tempo chama de “a alma e o centro”, o que faz de Tiffany a pessoa que ela é. Algo que tem muito a ver com suas raízes: com as colinas do Giz, com as memórias de vovó Dolorida, o trabalho com as ovelhas e o queijo, um ritmo, um ideal, uma imagem de algo que vai para além do real, ainda mais verdadeiro do que aquilo que podemos apenas ver.
Se levados aos extremos, os conflitos de Tiffany ainda assim são típicos da adolescência. Ela deixa o universo do que lhe é familiar, tenta se conformar ao que é esperado dela, tenta se encaixar com a turma das populares e, à deriva num mar de incertezas, encontra um porto seguro nas memórias de família - nesse caso, a avó -, na tradição do trabalho das colinas, na liberdade de aceitar-se exatamente como ela é, independente das expectativas dos outros.
Na introdução de A Slip of the Keyboard, Neil Gaiman fala que as pessoas tinham a impressão de Pratchett, baseado em seus escritos, como um homenzinho simpático e repleto de humor; mas o que ele era realmente era um homem furioso com as injustiças do mundo.
Há algo dessa fúria em muitos dos personagens do Discworld. Sam Vimes, Reg Shoe, Vetinari, William de World, Brutha, Susan St. Helit, Angua, Vovó Cera do Tempo e, sim, Tiffany. O fato dessa subsérie do Disco ser considerada infanto-juvenil não diminui nem um pouco o peso que os temas apresentados possuem.
Pratchett sempre nos faz rir, mas, às vezes, é um riso nervoso, reflexivo. Ele não é simplesmente um colecionador de ideias absurdas, mas, acima de tudo, um questionador. Em sua melhor forma - e os livros da Tiffany estão nessa categoria -, Pratchett vai para muito além do simples escape de que muitos críticos acusam a fantasia. Não que isso faça diferença visto que, como bem disse Tolkien, quem se preocupa com fugas são os carcereiros da prisão.
Com sua irreverência, otimismo e tremenda humanidade, Pratchett nos faz um constante convite à reflexão, sem ser pedante ou didático. Responsabilidade, identidade, amadurecimento, compaixão, a diferença entre o que desejamos fazer e o que é necessário fazer, nosso papel dentro de uma comunidade são algumas dessas reflexões em Um Chapéu Cheio de Céu: a alma e o centro que buscamos em cada um de nós.
Por que você parte? Para que possa voltar. Para que possa ver o lugar de onde veio com novos olhos e cores diferentes. E as pessoas de lá veem você de forma diferente também. Voltar ao ponto de partida não é a mesma coisa que nunca partir.
Nota:
(de 1 a 5, sendo: 1 – Não Gostei; 2 – Mais ou Menos; 3 – Gostei; 4 – Gostei muito; 5 – Excelente)
Ficha Bibliográfica
Título: Um Chapéu Cheio de Céu
Autor: Terry Pratchett
Tradução: Alexandre Mandarino
Editora: Bertrand Brasil
Ano:2016
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