21 de janeiro de 2021

Projeto Agatha Christie: O Misterioso Caso de Styles


O intenso interesse despertado no público pelo que ficou conhecido, na época, como “O caso Styles”, agora caiu um pouco no esquecimento. De qualquer modo, em virtude da notoriedade mundial alcançada, solicitam-me, tanto meu amigo Poirot como a própria família, que eu escreva meu testemunho sobre toda a história. Acreditamos que meu relato fará silenciar os rumores sensacionalistas que ainda rondam os fatos. Assim, farei uma breve disposição das circunstâncias que acabaram me ligando ao caso.

Final do ano passado li o Dicionário de Venenos de Agatha Christie e Agatha Christie's Poirot: The Greatest Detective in the World e os dois me deixaram com vontade de retomar minhas leituras da Dama do Crime. Somado ao fato de que estamos em pleno centenário de publicação do primeiro livro da autora, que desculpa melhor para iniciar aqui o Projeto Agatha Christie?

Christie começou O Misterioso Caso de Styles em 1916, em plena Primeira Guerra, movida por uma aposta com sua irmã. À época, ela trabalhava como enfermeira voluntária para a Cruz Vermelha, tendo tratado de refugiados belgas no Torquay Town Hall, sendo posteriormente destacada para o dispensário do hospital. Dessa experiência veio a aquisição de um amplo conhecimento sobre venenos - o que serviria como base para vários de seus livros - e também a inspiração para criar o detetive belga Hercule Poirot.

O livro passou por um verdadeiro périplo até ser publicado - em outubro de 1920 nos Estados Unidos e janeiro de 1921 na Inglaterra -, mas foi bem recebido pela crítica. De seus romances, talvez seja o mais datado, com referências específicas à guerra, como o status de Hastings retornando do front; a própria condição de Poirot como refugiado e várias menções ao racionamento. A narração é em primeira pessoa, na voz do Capitão Hastings; uma narração que, embora te dê todas as pistas necessárias, também carrega o leitor por muitos rastros falsos.

Hastings, afinal, está longe de ser o colosso intelectual que se imagina. Ele não chega a ser propriamente arrogante, mas seus preconceitos, sentimentos, e inflada opinião de si mesmo acabam nos levando a dar a ênfase errada a certas palavras e atitudes de Poirot - ele, sim, dono de vigorosas células cinzentas. Não que eu possa dizer alguma coisa sobre o assunto, porque, embora tenha acertado algumas apostas que fiz ao longo da investigação, errei completamente a verdadeira identidade do assassino.

Christie tem o enorme talento de nos fazer ignorar o óbvio. Quando a solução é apresentada, você tem vontade de se estapear e exclamar “como não percebi isso antes?”. De certa maneira, ela faz de todos nós um pouco Hastings.

Enfim, adianto-me. Vejamos do que se trata a história.

Convidado a passar uma temporada convalescendo numa mansão de campo pertence a amigos - Styles Court - Hastings acaba sendo transformado em testemunha do assassinato de sua anfitriã, Emily Inglethorp. O que parece à primeira vista um violento ataque cardíaco, revela-se um envenenamento por estricnina. O suspeito natural é o marido bem mais jovem com quem ela se casou recentemente.

A verdade, contudo, é que todos os membros da casa - os dois enteados, John e Lawrence Cavendish; a esposa de John, Mary (por quem Hastings tem uma admiração temerária); Cynthia Murdoch, protegida da falecida e até o médico toxicologista vizinho, o doutor Bauerstein - têm motivos e chance para cometer o crime, para não falar nada da abundância de estricnina disponível na mansão. Traições conjugais, testamentos e heranças estão em jogo aqui - seguir o dinheiro ainda é a melhor chance de resolver o caso em meio a tantas pistas confusas.

Comparações com a criação de Conan Doyle são, claro, inevitáveis. À época em que Christie publicou seu primeiro livro, Doyle continuava a escrever - Histórias de Sherlock Holmes, seu último livro publicado, reúne contos originalmente lançados entre 1921 e 1927. A condição de Hastings (capitão do exército retornando ferido da guerra) e seu papel de narrador lembram muito a do bom doutor Watson. Sua parceria e amizade com o detetive belga também ecoam a relação entre Watson e Holmes. Há até um inspetor detetive da Scotland Yard para participar das investigações.

Tais semelhanças, contudo, são superficiais. Christie teve um estilo próprio desde o início. Hercule Poirot é muito mais instintivo e sentimental que Sherlock Holmes, bem mais consciente de convenções sociais, da imagem que projeta. Holmes preocupa-se sobretudo com fatos, ao passo que Poirot se interessa pelas pessoas.

Muitos dos temas que se tornariam marca registrada de Christie já estão presentes nesse seu primeiro livro. Assassinatos por envenenamento, mansões senhoriais, ressentimentos familiares, fortunas disputadas e a tradicional resolução num espaço familiar, para o núcleo de testemunhas, suspeitos e assassino. É interessante, aliás, que esse último item tenha sido solicitado quando da revisão do livro: Christie escrevera um final mais tradicional, em que Poirot revelava tudo no tribunal (que está como um capítulo extra na edição que li).

O enredo é diabolicamente inteligente. Fiquei realmente de queixo caído quando chegamos ao final, não apenas pela maneira como o crime foi concebido, mas por todo o planejamento do que viria depois, com o uso dos próprios meandros do sistema jurídico para beneficiar o assassino. E sim, é possível chegar à conclusão real se você não se deixa tapear pelas conjurações do Hastings. Ainda estou com raiva de mim mesma por não ter acertado a solução.

Daquelas leituras que você praticamente não consegue largar, ansioso por saber o fim, O Misterioso Caso de Styles é uma leitura envolvente, uma fantástica estreia para aquela que viria a ser chamada Rainha do Crime.

Nota:
(de 1 a 5, sendo: 1 – Não Gostei; 2 – Mais ou Menos; 3 – Gostei; 4 – Gostei muito; 5 – Excelente)

Ficha Bibliográfica

Título: O Misterioso Caso de Styles
Autor: Agatha Christie
Tradução: Ive Brunelli
Editora: Globo Livros
Ano: 2014

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